Narrativas



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Versão completa de uma das narrativas do livro Fora de forma & outros foras, lançado em 2015 pela Editora Ibis Libris.

Catorze passos com barreiras


Primeira estação

Veio a névoa, densa neblina obliterando formas. Teu rosto ainda não existia no retrato, tua voz dormia cantatas em dias de chuva, e o desejo sequer latejava remotíssimo sabor futuro. Minha pele encerada por cerdas ásperas de nostalgia, pergaminho em caminho de rugas, solo intocado dos passos que um dia curvos. Tempo esvurmando minutos, grinaldando de grisalho pelos, cabelos, memórias. As palavras vieram depois, filtradas por máquinas de sucção de impurezas e excessos sintáticos. Os filtros eram falhos como as letras do manual de instruções. Uma vegetação luxuriosa saltava do coração da noite âmbar e ambivalente. Incenso de vigília e tempestade exalava-se em espera. Corria um rio invisível entre os móveis ofertados aos cupins na sala, ouvia-se o ritmo das corredeiras e quedas d'água saltando do pulso. Tudo um fluxo, tudo um continuum, mas nada apontava a possibilidade do legível. Nada de limpidez, toda geometria desmanchava-se em sombras no horizonte a anos-luz de distância. Tudo se tingia de pardo-obnubilante. Linhas voláteis desenhavam um chão de nuvens. Fugidios e movediços, os objetos afirmavam-se como um não-é-para-mim, algo latente num sempre-além, fora das circunstâncias, da vida e suas adjacências entrevistas como relâmpagos apenas em pesadelos. Aéreas fotomontagens as pessoas, nenhuma ascese, nenhum princípio de transcendência ou aproximação, redomas metafísicas. Longe, sempre longe o campo do real objetivo, a latência de formas vivas, a irrupção de sujeitos. Assim, caminhar e tateio operavam sinonímia, entendimento erigia-se em obscuridade, existir era um território de avessos. O trajeto vertical descendente radicalizava perdas e recusas. Mas algo atravessou a névoa, uma instalação desviou o sangue das entranhas para uma baía de águas vivas. Teu corpo, teu corpo, teu corpo, por isso todas as heresias em cântico, todas as blasfêmias abertas em chagas na carne viva. A tua voz do outro lado do impossível explodia o universo. 

Segunda estação

O amor talvez fugisse ao se abrir um guarda-chuva, enquanto a cabeça, virada à esquerda, pensava em travessias. O amor faria bater artérias, portas e janelas, lançando-as do batente ao deserto? Faria cessar a névoa do existir às cegas, entronizando no vácuo uma claridade talvez insuportável, brilho paralisante em frestas pelas quais o vento invade a câmara mortuária onde os sonhos? Se falhos e incompletos, se lacunosos e obsoletos, como a tentativa de domínio sobre natureza diversa da nossa ou sobre aqueles que brotam de nossa urgência e abandono? Onde a possibilidade de circular entre vultos que nos escapam a tardes ensolaradas, lábios que recuam ao primeiro sinal de tangência? O arrepio, no entanto, levantava suspeitas sobre o incontrolável movimento da pele: sístole e diástole, narinas dilatadas, a pressão sanguínea em alfa. Impossível saber o que habita o outro lado, apenas o mergulho kamikaze, impulso.

Terceira estação

Entra-se por qualquer porta escancarada, penumbra fora de perímetro. Às vezes se volta de mãos vazias e com a alma morta. Sempre se alcança, no entanto, ao se erguer os pés além da entrada, mais que porta, nimbo fora de qualquer teologia, bunker de tijolos aveludados isolado no tempo. Por que maciez, champanhe e seda? Por que tantos espelhos e excesso de vermelho nas cortinas? E esse olhar falsificando atração, memória e gula? E essa indumentária incomum sobre a qual repousam aparelhos mecânicos e pílulas para performances guinnessianas? E a boca, sim, a boca, a boca esplêndida e viciosa, a boca, atelier da carne, centro de efeitos efêmeros que escapam ao provisório, aos prazeres-zumbis que se recusam à morte, mesmo confinados em poucos segundos? E a boca que já não diz por que inventa, a boca esponjosa cuja cegueira arremessa urgência nas paredes?

Quarta estação

Sou Judas e vim cravar punhal babilônio nos olhos da harpia tatuada em tuas costas, serviçal de Lilith, para que não vejas o tremor germinando no solo fértil da solidão dos que traem. Pertenço à legião daqueles de que nada sai sem o sacrifício de sangue e inocência. Sou da tribo dos possessos do espírito e devassos da carne que cruzam o deserto dos prédios para espalhar perversões em salas de cinema. Vim para devastar teu esfíncter banhado em azeite e lágrimas. Vim para calcinar o pântano maldito do teu clitóris, falso espelho de meu gládio, logo abaixo do terceiro círculo do inferno. Vim para enfiar em tua vulva uma carga de mágoas e rosas, pulsante navio transportando adubos, moedas, deuses, sucatas e sonhos. Para ti, serva libertina, o pau vibra qual um cometa ao tocar um ponto qualquer no universo após um século em órbita. Para ti, voz melosa ao telefone em falsas promessas, esta matilha de crimes implorando socorro.

Quinta estação

O que salta dos olhos não são imagens de pêndulos sobrevoando a orquestra de notas falhas, quando descemos dois tons ou quando o si bemol atravessa as paredes para auscultar corpos despojados de sonhos no madeirame tomado por cupins no cômodo ao lado. Também irrompem sobre as pequenas hortênsias desenhadas em lençóis noites de interferências e assimetrias entre tesão e batalha, noites em que saltamos tigres, atravessamos o vácuo e caímos de costas, sem garras, vendo o olhar de escárnio da presa que nos escapa. Tanta espera e urgência inscritas em coxas morenas anatematizam a lança que não alcançou o alvo. Uma cidadela de portas abertas na cama expele seu pavor mais fundo, os lábios grandes e pequenos da vulva secretam, em impura resina e rancor, todo o léxico uterino do inferno e, inflados de sintaxe homicida, sopram insultos ao falo. Os deuses e os homens brocham com a cara na lama.

Sexta estação

Desnudados num piscar de olhos, não reparamos a invasão de outros perfumes pretéritos aquém dos espelhos que nos arremessavam ao teto. Mentiras e gozos alheios permaneciam entre as paredes, fantasmas alongando excessos ao tempo de permanência. Meu rosto na toalha macia filtrava a respiração da rua em ablução ou batismo com o qual a pressa convertia-se em outro ritmo, sístole e diástole, fôlego erótico para atravessar túnel noturno. Bordadas na toalha com perfeição de fotografia as mãos de Verônica secavam mágoas e acariciavam a barba tão rala (no desenho eu negava três vezes a navalha sobre a bancada de aço inoxidável da pia). Um quarto sempre será estreito para o amor quando se rompe o lacre das aparências, quando desaba a blindagem de timidez e previsibilidade. Trouxemos de fora a tempestade, a saliva em temperatura de lava, a oleosidade incontrolável na zona erógena do corpo, a intumescência vergonhosa do pau saltando vexame na calça xadrez, o movimento de nos tocar como se acendêssemos febre no corpo inteiro. Então, arrancamos nacos de carne com as pontas dos dedos lambuzadas de felicidade, fabricamos solda de suor e seivas, inventamos moluscos bivalves, fístulas, dutos de perversão e santidade; abraçados em extremos tão voláteis, vibrando em jorro em nossos dentros, levitamos nossos nomes, desmanchando-os letra a letra lentamente sobre a cama incandescente que trouxemos da rua em nossos pulsos.

Sétima estação

Não cair pela segunda vez, mesmo que, íngreme demônio, o caminho à tua pele estendida no alto de tantos desencontros. O desejo e seus antigos afluentes latejam nas têmporas, correntezas sanguíneas, pressão máxima, tonta navegação armilar nos polos cranianos. Todos os líquidos corporais operam prodígios no campo magnético dos olhos, injetando-lhes uma luz alaranjada que alimenta cães selvagens na penumbra de seios à espera de ossos e areia. O sopro oriundo de cofres internos devasta, espera e amplia ao infinito o som da abertura do zíper, enquanto o mover-se inquieto das mãos, impuro balé tateando maciez e manhã em peles rasuradas de hiatos e perdas em teus pelos úmidos, em teus ocos, acende luzes de emergência entre as coxas. O tempo líquido, um mar anterior ao mundo, faz a armada ora levitar, ora ir ao fundo, mas todas as naus resistem completas à intensa travessia. As marés da carne, o enroscar-se de caramujos, a hibridez de rocha e esponja, tudo respira instante e eternidade. Alargar e contrair luas e pêndulos cravados na loucura mútua. Na ausência de centro, apenas alternância, ritmo, dança erótica; movimentos centrífugo e centrípeto. Corpos cerzidos, emendas afetivas, rascunhos amorosos, males da alma, tudo se evapora. Despidos de nós, o que somos vige exatamente agora quando gozamos estrelas de igual grandeza.

Oitava estação

Vieram as mulheres de Jerusalém para enxertar na minha pele devastada toda uma fome de bestas sem apocalipse, sem memória. Toalhas de linho sobre o criado-mudo e potes de barro ao pé da cama, as loucas de véu azul revezavam-se em fogo e fúria, excitadas com nacos de músculos e nervos entre os dentes de ouro. Com mãos gordurosas limpavam o excesso, depois usavam as próprias túnicas para extrair pequenos pedaços de vísceras entre os dedos viciados na solidão do sexo nas colinas. Aos risos, entoando palavras desconhecidas, jogavam em cestos de vime grandes flocos de algodão doce de sangue. Em meio à sofreguidão dos monossílabos do gozo, um nome soou acima dos lençóis rasgados pela luxúria, e era o teu nome flutuando em sílabas enlaçadas à memória da tua carne em noites de frio. Ao ouvi-lo as mulheres murcharam arroxeadas, as pedras de anéis presos à avidez de mãos calosas perderam o brilho, todos os véus caíram ao chão lançando melancolia em vestes lavadas em lágrimas, esperma e sangue. A mais louca paralisou interminável felatio para cuspir maldições pelas dezenas de cáries da boca, os olhos fuzilando crimes. Saíram em bando. As almas insaciáveis sumiram como farrapos ambulantes muito além das cortinas do sonho. Sim, possuo apenas um nome para o amor, e é teu ainda mais quando te ausentas.

Nona estação

A terceira queda no furor do corpo, três vezes o galo sobreposto à mudez, três cruzes no calvário acima do tórax, três vezes a água batendo no queixo. Levanta-te, Lázaro – e era como se um deus desconhecido rasgasse os estreitos limites do desejo, irrigando com o verbo canais secretos; talvez soprasse com desânimo uma das trombetas oxidadas após a queda das muralhas de Jericó. Sim, também os deuses aprenderam as margens noturnas dos homens, saem de pesadelos em bando para invadir a topografia afetiva fora do plano divino, sabem agora que todas as cidades são Sodoma e Gomorra. A desconhecida ria em sua nudez esplêndida, risos de puta, risos de quem abre as pernas às varizes e à exaustão das horas. Pela janela, infiltração da lua de cobalto. E, frenética loucura amorosa, gozava e ria a intervalos bem largos, na mesma frequência dos espasmos com os quais cobríamos nossos corpos gangrenados de carências. Os olhos, às gargalhadas, urravam: “Canalha! Filho da puta! Eu tô chapada, seu babaca!” A carne ulcerada já não sentia o prazer em excesso, muito além do preço combinado. A cidadela indefesa, a trompa de Falópio sitiada, uma legião microscópica condenada pela insânia de um comandante tarado. “Seu merda, lúcida eu não gozava”.

Décima estação

A voz estridulante chegou cinquenta passos à frente da sombra, estranho chamado ao interior de antro gorduroso, coalhado de objetos inúteis, móveis quebrados, velas e oferendas. Era Deus e seus dez desregramentos do outro lado da parede mofada. Mãos de dedos rugosos estenderam-se como punhal dentado numa exigência imperiosa de nomes, roupas e pertences. Antes que os olhos piscassem, abrupto puxão nas costas. O linho rasgado de cima a baixo, as calças dilaceradas por dentes em fúria, cães arrancando sapatos, pedaços de carne e tatuagens. Pequenos dados viciados, bilhetes amassados, moedas e retratos perdidos na recepção dos leões-de-chácara encapuzados. Despojado da película de ataraxia, o corpo esplendia viço e virilidade. A voz soou mais intensa, suplicando chagas, úlceras, doenças, arrependimentos, choro convulso, mas o corpo rijo e resistente lançou-lhe insultos no céu de álcool e feromônios; respiração ofegante, pressão alterada, circulação acelerada, brilho nos olhos, narinas dilatadas, o pau – lança rubra erguida por demônios. No chão as vestes impuras e as íris vermelhas de Bastet, testemunhas dos nomes que escorriam sílabas e cadáveres de boca em metástase.

Décima primeira estação

Na sala de comando do abrigo subterrâneo, câmeras registram um corpo sendo despojado de passado púrpura e império, as vestes no chão estraçalhadas por ratos. É preciso entrar nu em palavras gravadas para controle e tédio; é preciso enganar leitores de digitais, íris e quimeras; é preciso camuflar identidade, alma e vingança; guardar fôlego para atravessar o corredor polonês onde vozes eletrônicas distribuem instruções para performances de alto nível e questionários de riscos. Chega-se, por exaustão e aos pedaços, ao ponto extremo do movimento, após o qual tudo é indiscernibilidade e regurgitação. A face teriomórfica altera o perfil da sombra nos ladrilhos. Cornos bipartidos são projetados no azul e branco, orelhas cônicas escondem líquido esverdeado na penumbra, não se veem as fendas da cabeça intumescida de protuberâncias, as bactérias pulsando no centro. Vamos, sim, exatamente aonde nos querem domesticados, strippers infláveis, vamos, no entanto, para danificar todos os circuitos, borrar todas as imagens, queimar todos os fios, desmontar todas as palavras de fibra de vidro e silício. Vamos, sim, morrer com a lança erguida, reluzente, humano hissope cravado em abertura carnívora. Sim, pai, eles sabem muito bem o que fazem, ensinaste-lhes muito bem a crueldade.

Décima segunda estação

Na banheira, por asfixia; na cama, por infarto; em terreno baldio, por uniformes oficiais, ou em cruz de plástico; por cineastas amadores, a morte e seu séquito de banalidades: choro, hagiografia, totens, revelações escabrosas, faxina biográfica. Falsa proposição enunciar a causa mortis. A morte não. Desmoronar, parte da construção; afogamento, o próprio mar; sucumbir, outra manifestação do vigor; abandonar o porto, levá-lo nos dentes para ilhas distantes. A morte, não, a morte, porque nada nadinha reconfortante, o abandono das horas em que juntos, porque extraímos fungos e diamantes de horas mortas, porque caminhamos às tontas para nunca escapar ao deserto, porque é necessário palavras cumprirem destino de areia. Só mentiras alimentam a alma, as grandes e as infames. O amor selado em tonéis e desfaçatez, o último orgasmo a acender-se em fumaça na lama sagrada do corpo. A morte não. A alma infante não cabe no corpo mofado. Como a iniludível lavará as falsas promessas de amor urdidas mutuamente em noites úmidas de felicidade? A morte não. Salamandras venenosas ensaiam carícias no corpo morto, nunca a morte, porém, encontrará a sonoridade das palavras que perdemos. A morte que nos leva não sabe o que deixa. Alguns afirmam ver, do outro lado dos orifícios nas duas mãos, a sombra do paraíso (um pastor de cobras foi pregado em poste para multiplicação da fé e descrença). A morte não, o que vi foi aqui mesmo quando pisava em falso.

Décima terceira estação

Não há, depois da fermentação dos órgãos, da sutura dos tecidos, ponto de restauração de ossos e certezas. Nenhum fio materno virá redimir, ao amparar o corpo extinto, anos de barbárie no pântano. Vê: há certa beleza geométrica na floração de máculas espalhadas como semáforos por uma superfície já inavegável. E os olhos? Observe as cenas submersas, pulsando atrás das pálpebras inchadas: mãe abandonada em plantões hospitalares, pano, balde e rodo em sanitários infestados de pestilência; mãe de noites estendidas em pânico quando o filho conduzia uma gangue de hirsutos em farrapos pelas ruas do bairro apóstata; mãe em apneia escrita em livro de ocorrências paranormais; peixes multiplicados por asfixia na cortina d’água, x9 ressuscitado para clandestina execução sumária, putas inscritas em liturgia pornoangelical, cegos que se amplificaram em câncer e surdez. Eis a casa: janelas fechadas à passagem de anódino cortejo, portas trancadas a pavor pleno, crianças nos cômodos mais fundos. Vê: eis o morto em ângulo sólido. Não, não é o dedo médio que lavra insultos a sacerdotes-eunucos. Algo se monumentaliza por causa da pressão hidrostática causada por ingurgitamento venoso, o pau insurgente de Prometeu. A curvatura do corpo cavernoso atira mitos, nódulos e coágulos contra a eternidade. Príapo de volta aos braços maternos.

Última estação



Pula-pula a marafona sobre o abdômen do morto. O peso desproporcional afunda pouco a pouco a dissoluta carne arqueada, voluta ulcerada de volta ao útero, cornija para escoar lágrimas fingidas. Pisa-pisa a face teriomórfica entre touro e carneiro, vértebras partidas, a flácida barriga de estrias azuladas aberta aos domingos para expiação pública e taxonomia. Quase dobrado, agora folha rasurada. Bolas de pelo como amuletos macabros rolam ladeira abaixo pela goela do falso messias que proclamava proezas sexuais – pura fantasia para viúvas de homens mortos de tédio. Agora, o fêmur quase atravessando a garganta. Outras carnes mofadas prensaram as letras com as quais esquiara esperança e sordidez, também atiraram insultos e serpentes em seu peito. Dos pulmões sem pneuma vazavam vigílias alucinógenas e lamparinas para os dias de letras turvas. Os poemas em bacias entulhadas de sal e olhos-vigias perdiam a caligrafia de infâmias. Forjaram as amantes enraivecidas uma cruz para a morte, mas todos sabem que o rei apócrifo enforcou-se com palavras. As frases enroscaram-se, arame farpado, no pescoço roído por prazeres de aluguel, sílabas de pernas abertas esfregaram esponjas e xanas em sua face esquerda, enquanto a direita era todo o cenário do deserto. Para sempre lançado do lado de lá das palavras. Ainda que não existam deuses e não tenha alcançado o inferno, o morto não pode ser enterrado. Quem um dia calvário de um nome, nunca desnomeado.



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Este conto foi publicado no livro Fora de forma & outros foras, publicado pela Ibis Libris, em 2013.



A loja do outro lado da rua


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Uma fase muda, a galope, próxima. Tantas pétalas as fases, frases disfarces da rosa sem rosto. A leveza desejada, no entanto, turva-se ante o tumulto de dias pesados. Nunca se sabe de que lado a  página do próximo minuto cairá virada. Alguma corrente secreta de  ar anuncia recolhimento de luz em redes inquietas, impulso a cisternas anímicas, queda em aquíferos protegidos na área ao sul do pâncreas. Vou buscar um desenho perdido dentro do útero da linguagem impura. Tudo o que preciso fica agarrado às paredes do túnel, livro rupestre de falsa profundidade. Tempo moído, pele, película, pó. Logo você chega com esse cordãozinho de São Judas Tadeu balançando em ouro falso e tão redundante quanto o ondular ofegante daquilo que vejo logo abaixo dele.

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Você chega com esse cordãozinho de São Judas Tadeu balançando em ouro falso e tão redundante quanto o ondular ofegante daquilo que vejo logo abaixo dele. Então os quadros na parede trocam de lugar, perdem o ar de reprodução barata: o nu veste-se de traças, a marinha engole as ondas como se fossem aspirinas de espumas, o falso Renoir derruba champagne em mesas e vestidos do Bal du Moulin de la Galette adquirido do marchand camelô 49 na Central do Brasil. Anulo o gesto instintivo de fuga para enfrentar os demônios ancorados no mar sem fundo dos seus olhos de impura cocaína. Exorcizar o fôlego de mil súcubos suicidas arremessados em fúria contra o meu corpo supera qualquer possibilidade de defesa. Não consigo evitar tapas no rosto, pescoço, tórax. Só dez degraus abaixo da porta percebo o logro; a respiração alterada era um convite, sim, não para cama, mas para retirada. Fico sentado na portaria do prédio de conjugados à espera da trouxa de roupa jogada com insultos pela janela.

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Sentado na portaria do prédio de conjugados à espera da trouxa de roupa jogada com insultos pela janela, vejo a pequena comerciária varrer o chão da calçada em frente à loja de presentes do outro lado da rua. Olha para todos os lados, talvez a mova vergonha de conhecidos, talvez siga orientação do gordo fumador de cachimbo dono da loja e de mil mercadorias (perfumes, bijuterias, empregadas). Os cabelos louros da vendedora luziam ao sol até serem eclipsados por um ônibus parado entre nós. Quando o veículo enfim arrancou rumo a Irajá, os cachos da pequena tornaram-se negros  e a vassoura voara para longe. Vejo-a agora mais magra e bem baixinha. Atravesso a rua para fugir à miopia. Toco as suas costas para ver se ela é de carne e osso mesmo. Vira o rosto triste e sem beleza. Ao se arregalarem, os olhos dispersam uma grossa camada de poeira e desesperança. Sinto que ela não pode me ver, está em pedaços, conformada a um corpo apenas por um contrato de experiência, mãos trêmulas quase na porta do desemprego, retrato à espera de carimbo. O senhor feudal vomita um nome. Meu pequeno e dócil manequim de fibra de vidro desaparece do outro lado da vitrine.

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Quando o pequeno e dócil manequim de fibra de vidro desapareceu do outro lado da vitrine, voltei à entrada do prédio no Catete. Um casal saía às gargalhadas. Duas crianças atrás da explosão de alegria me olharam curiosas. A trouxa quase caiu sobre a mais nova. Discussão áspera. O corpulento diz que vai me encher de porrada, a mulher me xinga. Dizem que não valho nada, não trabalho, exploro a mulher do terceiro andar, uso drogas, desrespeito todas as senhoras casadas, mau-caráter, ateu e tarado. O troglodita me encurrala no canteiro à esquerda da entrada, debaixo da placa Palais de Sérénité. Seus olhos espumosos já me veem saco de pancada. Uma chuva de livros caiu sobre o casal e os filhos. Dicionários, romances russos, livros de xadrez, contistas contemporâneos, poesia erótica, manuais de linguística, meu mundo impresso em anacronia desabava: Deus me mandava o maná prometido. Os livros salvaram a minha vida. Grato, Ciça, você sempre foi ruim de mira. Pulo o corpo desacordado do vizinho com a cabeça sob o dicionário Houaiss aberto no verbete irremissível - “Adjetivo de dois gêneros: 1) que não se pode remitir, que não merece perdão, imperdoável; 2) que não se pode evitar; infalível, fatal”. Me abaixo apenas para recuperar Sonetos Luxuriosos, de Aretino, traduzidos por José Paulo Paes. Desisto das roupas e demais pertences. A loja do outro lado da rua já está fechada; aberta, escancarada, imensa cratera pulsando errância na alma.

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A  loja do outro lado da rua já estava fechada; aberta, escancarada, imensa cratera pulsando errância na alma. Espremida em algum vagão de metrô minha vendedora-manequim flutuava exausta, o calor sufocante ameaçava derreter seu corpo de cera. No conjugado do Catete Ciça vegetava, possuída por decepção e antidepressivos. A lânguida luz de um poste inclinado me convidava a infindáveis copos. Resisti à pressão do passado nas têmporas, inquietante dormência subia pelas artérias alagadas de pesadelos, instalava-se nos buracos de décadas em branco. Ao microscópio meus atos, envoltos em camadas de azinhavre, pulavam semelhantes a amebas sem futuro. Tudo era pulverescência, caos, pesadelo. Sabia-me arquiteto de cidades em ruínas, sem arrependimentos e remorsos. Tudo o que precisava era acionar com êxito os mecanismos que me catapultassem a novos desastres. Nada melhor do que a escrita para afundar-me por inteiro.

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Nada melhor do que a escrita para afundar-me por inteiro. Com Ciça, água pela cintura, no máximo à altura do pescoço. Os braços ficavam livres para tatear falsas alternativas. A mão alcançava a maçaneta da porta de emergência. De uma forma ou outra, sempre uma boia de salvação. A via de escape era invariável promessa não cumprida; na outra ponta, nova hecatombe. Com o tempo aprendi a escapar invadindo territórios alheios. Hoje, por exemplo, preciso me instalar na loja do outro lado da rua para fugir da chuva torrencial. Minto, claro, minto o tempo todo. Minha manequim quase anã virá levantar a grade inglesa às seis horas da manhã. Eis a causa das rachaduras profundas e do inchaço no hipotálamo. Minha manequim-boia-farol um passo à frente. Quando deixar a mochila sobre o balcão e começar a fechar mecanicamente a sombrinha azul circulada por um dragão dourado, vislumbrará o vulto intruso encostado na prateleira de perfumes paraguaios. Apavorada, sim, porém muda. Tentarei falar de destino, de ser impulsionado por ventos misteriosos, da atração exercida sobre um corpo pela passagem da lua sobre o deserto. Todas as palavras irão se desintegrar nos olhos de resina da manequim quase menina. Não se acalmará com frases absurdas. Permaneceremos suspensos no medo do próximo gesto. Não, nada disso acontecerá, preciso dormir para voltar à realidade. Agora, no escuro entre balcões e mercadorias, deito-me com fones nos ouvidos, a pistola à altura das mãos.

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Agora, no escuro entre balcões e mercadorias, deito-me com fones nos ouvidos, a pistola à altura das mãos. Quando acordar, investigarei, debaixo da camada de tártaro dos dentes tortos da minha pequena notável, o nome. Não, melhor não procurar porra nenhuma. Todas as mulheres, ao me revelarem os nomes, abriram um dicionário de centopeias carnívoras especializadas em degustação de desastres amorosos. Sim, nomes lançam nexos, laços, algemas. Nomes exigem biografia e memória, apontam tangências, confluências, margem mínima de afinidades. Nomes são feridas inscritas em corpos de próteses e instantâneos com tintas tragicômicas. Nomes são matilhas furiosas que me perseguem em filas de emprego e ocupações de sem-teto. Alguns tiram fotos, mandam e-mails e torpedos, gostam de gafieira. Permaneçamos, meu bem, indecifráveis anônimos vagabundos. A noite tem pernas curtas. Algum nome secreto abre com estridência a porta da loja e, ao tentar reacendê-la no grau cinza da rotina, pisa o meu pé esquerdo. Arma já bem guardada na cintura, levantei-me incontinente. A situação era confusa. Felizmente não havia explicações. A arma já estava na cintura. Minha musa-manequim esculpida em espanto no interior de magazine muquirana, diva no meio de bugigangas chinesas e paraguaias. Era o meu paraíso: o reino de notas frias, de cédulas falsas, de mulheres chaves de cadeia, de minha subliteratura.

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Era o meu paraíso: o reino de notas frias, de cédulas falsas, de mulheres chaves de cadeia, de minha subliteratura. A pequena funcionária tremia agarrada à mochila coalhada de bótons de ícones pop. Ergueu o braço direito para se apoiar no balcão. Vi as pulseiras girarem no punho como se descobrissem combinações do cofre em que se ocultam pulsações assassinas. Um sentimento de júbilo arrastou-me alguns passos em sua direção. Queria lamber a sensação de abandono nas salas circulares de minha musa-manequim presas à língua acostumada à cegueira de comandos, talvez pudesse retirar as agulhas fincadas no pergaminho enrugado do rosto devastado por retroescavadeiras de lares desfeitos, descobrir um mapa submerso de peixes entorpecidos à procura de águas vulcânicas, ricas em nutrientes, coágulos, miomas. Pus as mãos sobre o material sintético que ligava os ombros à cartilagem mecânica dos braços. O corpo parou de tremer. Seus olhos instalaram um alfabeto estranho em meu destino.

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Seus olhos instalaram um alfabeto estranho em meu destino. Outro DNA invadia meu organismo. Os braços pareciam imantados ao dorso da desconhecida, o tórax inflado, as mãos energizadas e mais largas, a pulseira metálica do relógio arrebentou-se no pulso, o corpo mais pesado e cinco centímetros mais alto.  Tudo era estranheza e turbulência. Quando virei a cabeça para ver quem acabava de ultrapassar o limiar da porta, bochechas maiores do que as de Dizzy Gillespie começaram a insultar a pequena escrava. Da garganta apoplética do comerciante saíam fileiras de nomes sujos.  Raspavam a gosma do farto bigode, banhavam-se em perdigotos e cheques sem fundos, batiam no estuque falho do teto  para desabarem na pele tão clara de minha doce desconhecida, em cujas veias eu podia ver pedras e peixes no fundo. A mudez de minha manequim feria a cláusula x  do contrato; na falta de açoites, uma semana sem pagamento, corte de vale-refeição e auxílio-transporte. O troglodita suava em bicas sobre o teclado em que redigia multa e fundamentações. Processo por perdas e danos. Indignação de ópera bufa com a loja transformada na casa da Mãe Joana. Não vacilei. Peguei a  pistola, apontei-a para o cofre incrustado naquela testa lustrosa, disposto a estourar-lhe os miolos.

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Peguei a  pistola, apontei-a para o cofre incrustado naquela testa lustrosa, disposto a estourar-lhe os miolos, porém, após tensão provocada por rumor exasperante, o piso emborrachado estremeceu e começou a se dobrar. Lentamente papéis amarelecidos escaparam de frestas no chão, movimentando-se em círculos até ficarem suspensos no ar. Poemas de todos os tempos flutuavam entre quinquilharias como fantasmas. Pude ver manuscritos em línguas diversas. Fragmentos de Dante, Donne, Bandeira, Cruz e Sousa, Cesário Verde, Emily Dickinson, Vallejo, Drummond, Khlébnikov, Villon, Cecília, Góngora, Wislawa Szymborska, Antíloco, Hölderlin, Arnaut Daniel levitavam entre tantos outros. Os poemas apagaram os relógios. A pequena comerciária agarrou-se ao meu pescoço. Senti seus minúsculos seios latejarem contra o suor do meu peito. Uma pontada abaixo do coração acusou um estranho dispositivo girando bem rápido dentro do meu corpo. Novo fluxo aquoso percorria minhas artérias, numa pressão intensa, como se caravelas incendiassem o rumo de continentes desconhecidos. Vi o meu rosto mover-se no círculo cor de ferrugem ao redor da pupila da pequena vendedora de miudezas. Havia uma tonalidade azulada nas maçãs do rosto, não sei se refletia a excessiva claridade da loja à beira de curto-circuito ou se minha pele buscava novas camadas de nuvens e areia. Guardei a pistola. O proprietário, aterrorizado pelo fenômeno inexplicável e pela certeza da completa falência, esquecera minha ameaça. Eu não tinha mais razões para matá-lo. Só os humanos são assassinos. Eu já assimilara a natureza complexa de minha musa-manequim. Saímos porta afora, livres para a desintegração do universo.

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Egon Schiele



Pane em vermelho

a massagista vietnamita saiu com os cabelos enrodilhados de fumaça da sala de alta voltagem onde madrugada cardíaca amanheci meio morto de ciúmes no cume de bebedeira pontilhada em todos os bares do lado esquerdo da rua deserta

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eletro/rosa/choque ventrículos aurículas veia cava cova aorta artéria infestada de damas das camélias aurélias blanches de bois mimosas madames pompadour girls a-go-go-niadas entre neón e fumaça o cabaré em sístole e diástole o sexo em débito automático a vida em vermelho

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três odaliscas enfermeiras no plantão alucinógeno tenda árabe de oxigênio hollywoodiano as roupas do impaciente no chão como rosas ulceradas aliens com olhos de mulheres-bombas avançam injeções em nuvens de palavras inaudíveis intoxicadas por radioatividade e sintaxe

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aparelhos de tortura medem a pressão peniana o corte dos pulsos as marés da bolsa escrotal os resíduos e impurezas no fígado na infância a curva ascendente de erros a extensa malha de tombos cicatrizes no couro do rinoceronte enjaulado corpo entubado planeta permeado por sondas perfuratrizes pernas mecânicas e moscas, sempre moscas

*

parecer do cirurgião-chefe: causa perdida putrefação completa da massa encefálica em estado comatoso de poesia falência múltipla de todas as saídas abraços mofados beijos infectados de solidão anacronia sarcasmo mania de mundos perdidos e Inês é morta uma extensa corrosão do tecido futuro com irradiação à glândula pituitária não há mais nada que a medicina possa fazer a não ser desocupar o leito

Publicado no livro Fora de forma & outros foras, Ibis Libris, 2015.


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Philip Koch, Rooms by the Sea, oil on pane, 14 x 21", 2013
Philip Kock

Recidiva
  
I

     Caminhava apressado por uma das galerias da Praça Saens Peña. Havia uma turbulência em seus gestos, um vazamento de rancor e orgulho. Rapidamente, as nuvens escuras desapareceram. Pôde ver, então, um asséptico espaço subterrâneo de guichês, corredores, escadas rolantes e roletas. Na realidade, entrava inconscientemente na área de lançamento de um voo cego, tudo ali se constituiria os registros físicos do embarque na área cinzenta dos impulsos, do descontrole, da perda de rumo.
     Próxima parada: Afonso Pena. Próxima parada: São Francisco Xavier. Próxima parada :desespero. Próxima parada:o Inferno. Desembarcou como autômato na estação da Central. Voltou a contemplar as nuvens, agora menos carregadas, transpassadas em pequenas fendas por tímidos raios de sol. 
     A calçada do Campo de Santana era insuficiente para os seus passos pesados, largos, presos a tantos tropeços e desencontros. Os camelôs espetavam nos ouvidos com produtos falsificados. Até que surgiu, em frascos minúsculos, sem qualquer destaque entre o colorido das mercadorias, a solução para o seu mal. Não parou. O medo obrigou-o a olhar para diante. Ultrapassou o vendedor de bermuda vermelha, camiseta do Flamengo e óculos escuros. O som, no entanto, permaneceu em seu cérebro como farpa: “Elimina qualquer rato”, “Tiro e queda contra aquelas ratazanas que invadem a sua casa”, “Leve três e pague apenas um”. Tremor nas pernas, uma sensação desconhecida adormeceu a língua. Quis continuar. Não quis continuar. Voltou. Dirigiu-se ao ambulante com uma estranha inflexão na voz, como se estivesse num confessionário:
       — Amigo, eu quero quatro.
     Ligou para Odete. Ninguém atendeu. Insistiu. Novamente no metrô, de volta à Saens Peña. Na Tijuca, pegou um ônibus rumo à Barra. Sentou-se ao lado de uma jovem de óculos infantis e lindas pernas morenas. Não tirou os olhos. Voltou a ligar. Odete atendeu: 
      — Já falei pra você não me procurar!” —  explodiu, furiosa, do outro lado da cidade. 
     Ele não possuía nenhum argumento, só ameaças, a última: — Você vai se arrepender.        Ela desligou. Ele desceu na Floresta da Tijuca.
     Nunca entrara no parque. O caminho era longo. Sem qualquer planejamento, as pernas simplesmente avançaram, passaram ao lado de casais unidos em caminhadas, jipes cheios de turistas, viaturas da segurança, risos de crianças. Mais à frente, pisaram no sinteco carcomido do quarto e sala no bairro de Fátima, cruzando os zigue-zagues de Odete. Tropeçaram em frases com toneladas de pressão, a  atmosfera poluída por contas, cartas de cobrança, carências, empregos perdidos, cursos não concluídos, promessas não cumpridas. Irresponsável, podia ler pela milionésima vez a última palavra de Odete, misteriosamente escrita no chão por folhas caídas de árvores centenárias.
     Íntima correlação entre a subida do caminho e a ascensão da nódoa cinzenta em seus pensamentos. Ingressava na faixa onde só se ouve o som da mata e dos bichos, reconhecia, no verde, o deserto habitual. Sentiu que não venceria a distância, exausto, quase no topo. Lembrou-se dos frascos.
   Anexada ao boletim de entrada no Hospital  Sousa Aguiar, foi encontrada esta declaração: 

        Odete, nunca conheci alguém como você. Passei toda a minha vida à deriva, me decepcionando aqui e ali, totalmente perdido. Não há caminho sem a sua presença. Fiz tudo o que podia para aguentar o tranco, mas não deu.

II

    Abriu com dificuldade a porta do conjugado muito caído onde vivia, próximo ao Largo do Machado. Bia ainda não voltara da casa de Luíza. Sacolas, malas, trouxas, caixas de papelão pareciam pregadas ao chão, muda resistência de objetos e roupas da vida em comum. Tudo enevoado agora, rachaduras nas fotos, olhos inchados explodindo retratos de noivado e casamento: rascunhos de uma felicidade não escrita até o final da página. Como dados enlouquecidos, as palavras da mulher de sua vida estouravam sintaxe e sentido. Um mundo desordenado fazia os móveis do minúsculo apartamento levitarem entre paredes abarrotada de acusações mútuas. Perder a mulher para outra o tornava menos que um homem. Diploma de fracasso completo, com louvor, um Ph.D. em desastres amorosos andando em círculos no interior do abrigo reduzido a hospício. Jamais poderia pensar. Luíza tão delicada, tão educada, tão feminina. Viagens à metade do mundo. Cursos em Londres, ex-modelo, lista de ex-namorados. Assediada, desejada por todos. Logo ela. E ele até chegara a pensar que...
     No pequeno imóvel, o banheiro assemelhava-se mais a um túmulo, porém guardava a segurança de refúgio, pausa nas discussões e disputas. A camiseta do Iron Maiden no porcelanato caramelo, a calça jeans acinzentada jogada no porta-toalhas, ao lado das meias imundas e furadas. Sabonete barato suspenso nas mãos, enquanto pisava o único tênis que lhe restara, voltou-se para dois seios ofegantes à frente do acendedor do chuveiro a gás; olhos usurpavam o lugar dos bicos e das aréolas. Os mamilos sussurravam falsas delícias, obscenidades, numa linguagem sufocante. Sobre o balcão do banheiro, metade do pó imobilizado.
     O número da besta, sim? Esquecera o número do celular de Bia. Não, não, a besta era Luíza. Tomara-lhe a mulher, o apartamento, a vida. Sua carne viva malhara desejos noturnos. Luiza selvagem e arisca. Perfume e perfeição dos peitos, bunda de calendário de oficina. Quanto desejo, quanta deriva. Investira todos os seus recursos de Don Juan falido, acenara com tudo que não possuía, oferecera plurais sem majestade e superlativos baratos. Luíza firme, uma madre Teresa de Calcutá, puro cristal. Traíra! Filha da puta! Joguinho safado por trás das costas. Ela e Bia, provocação, deboche.
     Esquecera o bloco de rascunho na sala. Sorte contar com fita crepe bem larga. A caneta falhava, como ele, mas daria para o gasto. Mais uma carreira sobre a pia. Ao levantar a cabeça viu, no espelho manchado de velhice, Luíza atravessar a parede, nua e deliciosa. Exultou. Em vão, logo após Bia cruzou as pastilhas da mesma parede com todo o esplendor de seu corpo moreno. As duas se beijaram e se amaram em um banho de pura provocação aos seus olhos agachados no canto mais fundo do banheiro.
     Alguém acrescentou uma folha amassada ao prontuário do Hospital Miguel Couto, nela podia-se ler, em caligrafia confusa, declaração pungente em fita crepe colada no papel:   

          Luiza, nunca conheci alguém como você. Passei toda a minha vida à deriva, me decepcionando aqui e ali, totalmente perdido. Não há caminho sem a sua presença. Fiz tudo o que podia para aguentar o tranco, mas não deu.

III

     Entrou num táxi em frente ao prédio da Maison de France, onde passara a tarde toda lendo um livro de Michel Déguy sem ter compreendido uma linha sequer, o pensamento todo em Alana, irrompendo imagens, quebrando versos, rasurando páginas.
     De volta ao amplo apartamento na Rua Toneleros, em Copacabana, jogou-se sobre o sofá verde musgo em L na sala de dois ambientes. Mais um final de semana sem a mulher, perdida em Búzios ou Angra, nem sabia o seu paradeiro certo. Nas últimas semanas, o que ela lhe dizia chegava pastoso e confuso aos ouvidos. As palavras tinham pontas alongadas que desenterravam um passado desconhecido, anterior à fila de cinema onde a conhecera.
     Entrou no escritório amplo com três estantes entulhadas de livros. Alana perdida para eternas pesquisas, simpósios, congressos, cursos. Professora universitária em pastas diversas sobre a escrivaninha. De um retrato, ambos em sorrisos abertos, saía tímida fumaça de felicidade. Sob um dicionário de francês, um comentário aos versos que ele escrevia. 
     Bons, mas frouxos [...] criativos, espontâneos [...] pecam pela ausência de trabalho [...]  grandes soluções anuladas por erros gramaticais e fórmulas grosseiras [...] falta de   leitura, péssimos hábitos [...] inadmissível preguiça intelectual [...] anárquica irreverência, sim, mas jogos de palavras sem sentido, trocadilhos infames rimados [...]   tragédias pessoais não transformam ninguém em poeta razoável, apenas revelam experiências comuns a milhares de outros indivíduos.
     De volta à sala sentiu agulhadas nos ouvidos:
     — Você foi o maior erro da minha vida. 
   Alana enlouquecida ocupava todos os cômodos do apartamento, enquanto entre lágrimas, vermelha quase no limite de um AVC, soltava uma legião de frustrações.
     — Te peguei na lama, seu filho da puta, e você só sabe beber, arrumar confusão e me deixar sozinha, seu poeta de merda.
     Fechou e abriu os olhos para espantar o demônio da memória. Quis sair, lembrou-se de que acabara de entrar por já não ter onde ir. Levantou-se extraordinariamente lúcido e pesado. Foi para a varanda.  Observou besouros velozes na rua e pontos móveis colorindo as calçadas. Viu a cortina de prédios do outro lado da rua, gente em outras varandas, um casal trepando no terceiro andar em frente.
     De repente, antiga frase de Alana passou voando bem à sua frente. Em seguida, viu a cara-metade aparecer amorosamente deslumbrante, nua e suspensa, pedindo perdão e chamando-o à reconciliação definitiva. Não hesitou, pulou o parapeito da varanda e atirou-se no espaço.   
    Entre as anotações da ficha de entrada do paciente, em uma folha de caderno universitário pautado, com margem dupla, podia se ler o último parágrafo a lápis de um texto todo rasurado: 

      Alana, nunca conheci alguém como você. Passei toda a minha vida à deriva, me decepcionando aqui e ali, totalmente perdido. Não há caminho sem a sua presença. Fiz tudo o que podia para aguentar o tranco, mas não deu.

IV

     Saiu sonolento do sítio em Vargem Grande. Ligou o carro e apagou a sanidade. Louca e acesa a seu lado, Tininha falava pelos cotovelos.
     O dia quase amanhecia quando chegaram à vila numa ruazinha perto da Praça Seca, em Jacarepaguá. Banho tomado, a mulher apagou-se exausta. Ele permaneceu zonzo na recém-comprada poltrona reclinável azul-marinho, motivo de tanta discussão entre eles. A porta da casa permanecia escancarada como um convite. Não tinha forças para se mover.
     Já estava cansado, passara dos cinquenta. Tininha vinte e cinco anos mais nova. Pior, comportava-se como eterna adolescente. Patético, tentava acompanhá-la mesmo em modo grisalho. O viço do corpo que tanto o encantara começava a se apagar precocemente. Cada vez mais louca e viciada, Tininha atingira o estágio da total perda de controle. Cada dia mais impotente, não conseguia segurá-la, sentia-se uma nulidade, acompanhante mudo da decadência, personal trainer de catástrofes.
     Voltou ao quarto. Não encontrou a mulher. A cama permanecia perfeitamente arrumada. Ninguém se jogara nela. No banheiro, tudo seco, nenhuma toalha molhada. Saiu para ver o carro. Nada. Lembrou-se, então, de ter deixado o velho Gol grafite na oficina. Voltou profundamente angustiado, sem encontrar explicações para o que estava acontecendo.
     Abriu uma garrafa de uísque a fim de se acalmar. Tininha surgiu com um copo e um sorriso estranho. O peignoir aberto mostrava os seios generosos parcialmente cobertos pelas pontas dos longos cabelos molhados. Sentiu o perfume de outros tempos balançar novamente o seu destino. Todas as mulheres desfaziam-se da carne para se transformarem em aparições em sua vida. Nunca conseguira construir laços, todos os caminhos amorosos deixavam-no no pântano mais próximo e mais fundo. Todas as vozes só se aproximavam para envenenar-lhe a alma, demolir afetos, devastar a cidade interior. Lutou para se desvencilhar dos braços ainda roliços, repletos de marcas de picadas, daquela morena mignon de beleza capaz de mandar qualquer um para o inferno. O rosto diabólico de Tininha tirava-lhe o fôlego. A cruel devoradora de seus últimos dias pisava o seu abdômen com lâminas nos saltos, ajoelhava-se sobre o tórax enfraquecido, enfiava-lhe a língua bipartida nos ouvidos.
     Refeito do assombro, deu-se conta do estado alucinatório anterior. Além dele, ninguém na sala. Estava com o telefone na mão. Ouviu com atenção de colegial todas as instruções da operadora. Largou o aparelho, decidiu-se por um bilhete final. Equilibrou-se num gesto de extrema determinação até chegar à cama. Abaixou-se lentamente. Pegou uma caixa de papelão de algum Natal passado que agora servia para esconder a pistola Glock calibre 380, em fibra de carbono fosco, carregador de 16 tiros.  Abriu-a com ternura na tentativa de ingressar em outra caixa, bem maior e definitiva.
     Ao procurar, entre tantos documentos, o formulário de alta do paciente, Duília, auxiliar de enfermagem do Hospital Lourenço Jorge, deixou cair uma folha meio rasgada em que se podia ler declaração única e inesquecível: 

     Tininha, nunca conheci alguém como você. Passei toda a minha vida à deriva, me decepcionando aqui e ali, totalmente perdido. Não há caminho sem a sua presença. Fiz tudo o que podia para aguentar o tranco, mas não deu.




In Fora de fora & outros foras. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2015.

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