Studium



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A inversão do olhar em Isaías Caminha

1 - Introdução

      A crítica tem sido unânime em considerar Recordações do escrivão Isaías Caminha um romance destituído de equilíbrio, opinião corroborada pelo próprio Lima Barreto em carta a Gonzaga Duque:

          um  livro desigual, propositalmente  mal  feito, brutal, por  vezes, mas
          sincero  sempre. Espero muito nele para escandalizar e desagradar (...)
          hás de ver que a tela que manchei tenciona dizer aquilo que os simples
          fatos não dizem, segundo o nosso Taine (apud Barbosa, 1981, p. 162).

     No entanto, a compreensão desse desequilíbrio deliberado ocorre de modo diverso no autor e na crítica. Aquele, segundo os seus próprios termos, vê a literatura como a possibilidade de desalienação na formação da consciência, tomando-a claramente não apenas como complemento ao real, ornamento, constatação de sua lacunosa percepção, mas espaço de discussão dos principais problemas do tempo e de construção da linguagem capaz de expressá-los. Já a preocupação desta é de outra ordem, exclusivamente atenta à organicidade da obra literária, posição expressa com clareza na objeção fundamental levantada por José Veríssimo:

          Há  nele, porém, um defeito grave, julgo-o  ao  menos, para  o  qual
          chamo a sua atenção, o seu excessivo personalismo, pessoalíssimo, e,
          o que é pior, sente demais que o é (apud Barbosa, 1981, p. 179).

      Paradoxalmente, são essas duas apreensões – o desequilíbrio e o personalismo – que nos levam a tentar decifrar o universo limabarretiano.
    O duplo diagnóstico do mal que enfraquece o livro reduz-se, na verdade, a apenas um: o personalismo, causa dos desequilíbrios ao longo da obra do autor. A sua tradução literária dá-se sob um olhar que conforma os objetos à natureza de seus desejos, imprimindo ao mundo uma força centrípeta, pois os acontecimentos são puxados por uma vontade que move o olhar sobre o real e conduz o sujeito à impotência ao não conseguir a plena realização da dupla perspectiva romântica: a certeza de predestinação, de julgar-se superiormente dotado, e a cobrança de uma estrutura social perfeita.
   O percurso do protagonista situa-se no centro da retina, constituindo-se o olhar em metáfora da apreensão do real. Sua irrupção no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha surge impregnada com uma luz intensa voltada para a topologia social onde se fraciona e fratura a humanidade. Em Lima Barreto, como veremos mais adiante, esse balé classificatório, essa inserção na hierarquia social, apresenta uma complexidade que salta aos olhos, principalmente por colocar em discussão o espaço dos sem-lugar, dos excluídos, da margem. Sua obra padecerá dessa antinomia: é literatura de fora, porque incorpora pequena parte do universo dos sem-lugar, situando-o na proximidade de crônica social, ensaio e jornalismo: e é uma literatura de dentro, por existir no interior de relações linguísticas trabalhadas com fins estéticos; pouco importam os aspectos factuais, históricos e sociais ao processo narrativo, se não estiverem submetidos ao processo ficcional.


    O percurso de Isaías Caminha é, inicialmente, determinado por um olhar para cima, voltado para um plano superior que remete à concepção extremamente idealizada da existência, ingênua o suficiente para acreditar no mérito individual como moeda de trânsito rumo à ascensão social. Tal olhar corresponde a um estado pleno, repleto de humanidade, natural (na acepção rousseauniana), sem a perversão operada pelos mecanismos de cooptação ou rejeição social. Um céu ao alcance do talento é o fio condutor do jovem interiorano esperançoso ao ventre feroz da metrópole. Deslocar-se, assim,  só se justifica, obviamente, pela crença absoluta na qualidade do movimento que se dá por excesso, por transbordamento das capacidades individuais, cujo afloramento e a consequente consciência provocaram a sua expulsão do meio provinciano, onde se tornara um sem-lugar. 
l    A mudança de locus converte olhar para cima em olhar para baixo. Esmagado ao peso da perversa engenharia social urbana, Isaías nega, gradativamente, a qualidade de sua apreensão crítica ao ganhar um lugar na redação do jornal onde ocupará as modestas funções de contínuo. O sujeito perde a consciência de si, transforma-se em objeto, muda o foco de sua visão: se contempla a realidade, é sob o prisma do menos, da subtração, da falta, espaço próprio ao recalque e ao rancor. O ponto máximo de sua dominação consiste em ver o mundo pelos olhos de. Degradado ao máximo, perde a consciência, desconstrói o universo de referências, pensamentos e ideais, assumindo a leitura feita pela ordem dominante como algo natural.
    Claro está que tal classificação visa tão-somente a entender o percurso de Isaías Caminha, pois o olhar é obrigado a conformar-se ao real, ao incessante movimento, ao devir, assumindo toda a sua complexidade.
    O protagonista é capaz de manter certa margem de independência, mesmo sob dominação, por isso esse olhar para baixo está eivado de contradições. Quando o diretor do jornal, Ricardo Loberant (trata-se, na realidade, de Edmundo Bittencourt, dono do jornal “Correio da Manhã”, modelo de “O Globo” no romance), finalmente passa a enxergá-lo, Isaías Caminha denota uma arguta recepção, atento à sua anterior inexistência, à sua não visibilidade. Constata, com tristeza, que a classe dominante é incapaz de enxergar a humanidade, a sensibilidade e a inteligência dos oprimidos. Aliás, é o olhar dominante que perverte o universo dos indivíduos em massa, soldando múltiplas existências no todo uniforme e anódino que envolve termos como "povo", "multidão", "população" e correlatos. A classe dominante lê o mundo como a sua casa, o olhar dela é, portanto, domesticador, tendendo a transformar todos numa abstração amorfa, numa inarticulação humana. Isaías Caminha não é ninguém. Ninguém o vê. Sua humanidade não existe, pois dependendo da visão e esta, por sua vez, necessitando de uma posição social, não pode ser visto.
    Incorporado à redação do jornal como um "igual", Isaías Caminha passa a viver, na parte final da narrativa, sob o influxo do "intimismo à sombra do poder", categoria lukacsiana retomada por Carlos Nelson Coutinho (1974, p. 4). Tal conceituação revela o mecanismo de cooptação dos intelectuais, uma das mais fortes denúncias contidas no romance. O processo de dominação das inteligências consiste em colocá-las a serviço do olhar dominante ou, na pior das hipóteses, neutralizá-las com cargos ou favores. Isso é possível pela presença, ainda seguindo as formulações arquitetadas no ensaio citado, da "via prussiana" no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, caminho caracterizado pela conciliação com o atraso, evidentemente representado pela especificidade da formação econômica brasileira: sistema de exploração colonial, sustentado por um modo de produção escravista, forma particular do capitalismo como um sistema universal.
    Entre as particularidades da nossa formação destaca-se a figura do agregado. Sua importância reside no lugar que ocupa na estrutura social, uma posição intermediária entre o elemento servil e o trabalhador assalariado. Sua existência assinala a presença de uma categoria sem uma função precisa no interior da organização produtiva. A falta de precisão implica no engendramento de uma relação de dependência paternalista, capaz de dar corpo e vida a um contingente de seres divididos em tarefas correlatas: moleques de recados, capangas, comensais, domésticos, etc., todos, no fundo, seres deslocados, intrusos, destituídos de um espaço próprio, misto de animal doméstico, trabalhador de mil e uma utilidades e parente remoto.
    Quando é apontada a importância concedida na obra limabarretiana à figura excêntrica, torna-se necessário examinar a excentricidade não apenas na sua significação intrinsecamente literária, mas investigar que tipo de relações sociais expressa. A excentricidade, mais do que um traço de herói problemático, parece recobrir um universo coletivo. À falta de formas consistentes e eficazes de reversão da situação em que se encontram, os excluídos tendem a assinalar uma resistência desordenada e caótica através da construção de uma diferença que se faz no vazio, visando a quebrar o ordenamento burguês do mundo no terreno da individualidade.
    Tanto o excêntrico quanto o agregado constituem-se (isso quando não se fundem) em elementos marginais, cuja lateralidade expõe tensões entre mundos distintos. Isaías Caminha, tão deslocado quanto Policarpo Quaresma, é o romance do fracasso exemplar da meritocracia, a narrativa do apagamento de qualquer mudança de rumo. O mito da ascensão social por meio da arte desmonta-se com a transformação do êxito em conformismo e abdicação do vigor do caminho original.


2 – A inversão do olhar


    Recordações do escrivão Isaías Caminha pode ser dividido, sem risco de queda em esquematismos, em duas partes: na primeira, o autor traça o percurso de um jovem oriundo do interior, disposto a tentar a sorte na metrópole, e o desenho esboçado é dotado de grande acuidade, mostrando o seu progressivo entrelaçamento na atmosfera social e urbana; na segunda parte, há um mergulho no microcosmo de uma redação de jornal, vista como um espelho onde estão projetadas as imagens dos problemas característicos da estrutura social brasileira. É justamente na passagem da primeira para a segunda parte que o autor perde o fio da meada. Não propriamente pelo tom panfletário atribuído à última parte, mas pela mudança operada no foco narrativo:

          Tão  logo  Isaías  ingressa  no  jornal, o romancista  altera inteiramente
          o seu  foco narrativo, praticamente  abandonando o personagem e
          concentrando-se  na apresentação dos bastidores do jornal
          (Coutinho, 1974, p. 29).

     O fato de ter sido lido por parte da crítica como um mero roman à clef muito contribuiu para um certo descaso, como se a única preocupação do autor fosse escandalizar a sociedade.
     O jornalismo, aliás, não serviu somente de tema a uma de suas obras:
     
          Nos romances de Lima  Barreto, há, sem  dúvida, muito de crônica:
          ambientes, cenas quotidianas, tipos  de  café, de  jornal, da vida
          burocrática, às  vezes só mencionados ou esboçados, naquela  linguagem
          fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero (Bosi, 1969, p. 95).

    Seguindo a estrutura narrativa da obra, abordaremos as duas partes separadamente.


  
2.1 – Um olhar sobre a cidade


    O primeiro capítulo do romance apresenta uma visão sobre o saber totalmente idealista, chegando a confundir-se com essência divina: “– Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados...” (p. 35).
    Essa visão supervalorizadora do conhecimento aparece como a possibilidade, de outro lado, de redenção do protagonista, estigmatizado pela pobreza e por ser mulato: “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e omnímodo de minha cor” (p. 41).
    O conhecimento é concebido sob a forma do estereótipo vigente à época: a figura do doutor, do bacharel, símbolo maior de uma cultura eminentemente ornamental e decorativa, representada através de detalhes meramente protocolares: diplomas, anéis, sobrecasacas e cartolas. Inicia-se, portanto, a narrativa sob a égide da paródia, voltada diretamente contra um dos desmazelos brasileiros, o predomínio da verbosidade, do aparato verbal, do monumentalismo enciclopédico sempre como uma das formas pomposas de exibição do poder. Guarda a introdução da narrativa elementos que já apontam para a determinação dos próximos passos.
    A decepção advinda do abismo entre o sonho e a realidade começa logo na viagem, por ocasião de uma parada. Isaías Caminha toma contacto com a discriminação racial, apesar de ainda ser incapaz de perceber a origem do tratamento desigual. Sofre duplamente: pela discriminação e pela angústia em tentar desvendar a origem e o significado desse ato. Nessa passagem fica patente o contraste entre o temperamento hipersensível do protagonista, suas ambições e a mesquinhez do mundo. De um lado, um “rapazola alourado”, prontamente atendido; de outro, um mulato, desprezado, apesar de todos os seus predicados: “eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares profundas, traço de sagacidade que herdei de meu pai” (p. 45).
     Se o seu olhar guarda doçura e sagacidade, seu primeiro companheiro no novo ambiente – o penumbroso Laje da Silva (Paschoal Segreto, empresário famoso no começo do século XX) – encontra resistências, pois: “o seu olhar cauteloso, perscrutador e sagaz, junto ao seu ar bonacheirão e simplório, provocavam-me desencontrados sentimentos de confiança e desconfiança” (p. 48).
    Ainda é pelo olhar que o narrador apresenta a figura de Raul Gusmão: “Falava e não nos olhava quase; errava os olhos – os olhos pequeninos dentro de umas órbitas quase circulares a lembrar vagamente uma raça qualquer de suíno” (p. 50).
    Os olhos, aliás, são o “traço físico, por assim dizer obsedante” (Proença, 1976, 64) em Lima Barreto. Através deles o narrador expressa toda a gama de sentimentos, alinhando-se à tradicional interpretação que os considera como espelhos, fiéis reprodutores da alma, entendimento que se coaduna perfeitamente com a preocupação do autor sobre a sinceridade, colocada num lugar de honra entre as virtudes.
     Ainda sobre a figura de Raul Gusmão (nome cifrado de João do Rio) note-se o uso de um dos recursos expressivos de Lima Barreto na composição de personagens construídos de modo grotesco: a deformação mediante a animalização dos seres, processo nitidamente expressionista. Assim, o jornalista é visto como “uma desencontrada mistura de porco e de símio adiantado” (p. 12).
     Não é apenas sobre as criaturas que o narrador volta-se demolidoramente. As instituições revelam-se também como destituídas de profundidade e interesse pelos problemas nacionais. A desconstrução do universo político faz-se desde a demonstração da irracionalidade de um tipo popular cooptado pelos poderosos – o Chico Nove-Dedos, capanga do Senador Carvalho -, a exemplos dos numerosos capoeiras envolvidos num sistema que os protegia e perseguia, simultaneamente, até a exposição de uma galeria de políticos oportunistas e vazios. As palavras com as quais descreve uma sessão na Câmara dos Deputados são magistrais:

          Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam nos lábios: movia
          a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas desapegados
          da sua eloquência dividiam-se em grupos. À esquerda, lá  ao longe,
          quase na  minha frente, alguns viam cartões postais; um outro, sob  os
          meus pés, isolado,  no burburinho, escrevia febrilmente, erguendo,
          de quando em quando, a  caneta para pensar; uma roda de três,
          à esquerda e ao fundo, conversava sorrindo: ao fundo, ainda, mas um
          pouco  à  direita, um  deputado  gordo, com o calor que  com o
          correr do  dia  se  fizera  forte, roncava  perceptivelmente. Fagot
          falou cerca  de meia  hora; e, quando deixou  a  tribuna, o     
          presidente já era  um terceiro deputado, um velho com
          pince-nez de aros de ouro (p. 13).

      O efeito obtido é o de contraste, pois antes do discurso do deputado Fagot o narrador descrevera, em termos ironicamente ultraidealistas, o universo dos representantes do povo, criaturas divinas, dotadas de um saber fantástico, dedicados ao seu ofício, versados em Quiromancia, Matemática, Grafologia, Química, Teologia, Alquimia.
     Após o discurso de Fagot  (Pandiá Calógeras) soa como de um cômico grotesco a entrada de Isaías nas dependências da Câmara com a cabeça cheia de nomes de reis assírios, de faraós, de filósofos gregos, de generais romanos, de romancistas e grandes personalidades de nossa história.
     À imprensa e à Câmara dos Deputados, junta-se outra instituição: o exército, diante do qual Lima Barreto sempre adotou uma postura crítica em função da crescente influência que esta instituição veio a desfrutar na República. Ela formulou e impôs uma concepção de Positivismo que possuía um caráter seletivo, elitista, contra a qual Lima Barreto veio a se chocarr, apesar de seu namoro com a corrente de Auguste Comte. O bonapartismo positivista republicano afasta profundamente o exército do autor de Policarpo Quaresma, alimentando ainda mais o seu antimilitarismo. A passagem de um desfile militar serve para a formulação de discurso revelador da existência de dois Brasis:
    
           Os   oficiais  muito  cheios  de  si, arrogantes, apurando a sua elegância
           militar; e as praças bambas, moles  e trôpegas  arrastando o passo
           sem amor, sem convicção, indiferentemente, passivamente, tendo as
           carabinas  mortíferas  com  as  baionetas  caladas, sobre os ombros,
           como  um  instrumento  de  castigo. Os  oficiais  pareceram-me  de
           um  país  e  as praças de outro (p. 14).

      Os oficiais, destarte, constituiriam uma casta privilegiada, imune aos clamores populares. Alheamento semelhante ao revelado pelo deputado Castro, indiferente às solicitações de Isaías, apesar da carta de recomendação trazida e assinada por um coronel ligado ao político.
     O narrador inicia o quarto capítulo dirigindo-se diretamente aos leitores, como se quisesse colocá-los no interior dos meandros intestinos dos bastidores políticos com suas manobras,  tráfico de poder e jogo de influências.
     Frustrado em suas pretensões perante o deputado Castro, Isaías passa pela maior humilhação ao ser preso sob a acusação de furto, em que se mesclam preconceito de classe e discriminação racial, devido à sua condição de mulato pobre. A cena de seu interrogatório serve para revelar o comportamento do aparelho policial diante da questão racial e, também, da questão social, pois o narrador acrescenta à ação do protagonista duas outras, de natureza diversa: uma mostra um caso policial envolvendo duas pessoas do povo; a outra expõe a subordinação da polícia à classe dominante, num jogo de encobertamento e cumplicidade entre ela, o senador Carvalho e o marginal Nove-dedos.
     Em sua crítica à sociedade, Isaías volta-se ainda contra a concepção literária vigente, deixando claro que o importante é a literatura funcionar como meio de expressão das ideias relevantes ao progresso social. Daí sua ojeriza aos literatos:

          São em  geral de uma  lastimável  limitação  de ideias, cheios  de
          fórmulas, de  receitas, só capazes  de colher fatos detalhados e
          impotentes  para generalizar, curvados aos fortes e às ideias
          vencedoras, e  antigas, adstritos  a  um  infantil  fetichismo  do  estilo
          e  guiados por conceitos obsoletos e um pueril e errôneo critério
          de beleza (p. 15).

      Em Isaías Caminha é frequente a voz do narrador ser abafada pela voz do autor, pois é o próprio Lima Barreto que exprime suas ideias a respeito de literatura, confessando leituras, fontes e influências, buscando em outros horizontes um instrumental adequado à expressão da realidade brasileira, encoberta pela estética infantil do malabarismo verbal e da pirueta estilística. É o autor quem afirma: “Entretanto, quantas dores, quantas angústias! Vivo aqui só, isto é, sem relações intelectuais de qualquer ordem” (p. 16).
     Nessas palavras Lima Barreto revela a consciência do seu insulamento, de sua especificidade avessa à norma reinante.
     Isaías Caminha sem emprego, longe de sua família e da cidade natal, encontra-se só.
     O encontro com Abelardo Leiva (Luiz Edmundo, autor de O Rio de Janeiro de meu tempo) e com Agostinho Marques (na verdade, o advogado Pedro Ferreira do Serrado) parece encaminhar a ação romanesca a um desdobramento progressivo, ao introduzir uma discussão de natureza social mais ampla, confrontando formulações positivistas com ideias anarquistas e socialistas. No entanto, opta por um estudo de caso, anunciado na acerba crítica de Leiva à imprensa.

          É um  poder vago, sutil, impessoal, que  só poucas inteligências
          podem colher-lhe a força e a essencial  ausência  da  mais  elementar
          moralidade, dos  mais  rudimentares sentimentos de justiça  e honestidade!
          São grandes  empresas, propriedades  de venturosos  donos, destinadas
          a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja
          inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os
          caracteres para os  seus  desejos inferiores, para os seus atrozes
          lucros burgueses...  (p. 17).

  
2.2 – Um olhar sobre o microcosmo

      A segunda parte do romance processa-se, praticamente no interior do jornal O Globo, onde, graças à intervenção de Ivã Gregoróvitch Rostóloff (Mario Cattaruzza) , personagem que parece saída das páginas de Doistóievski, consegue empregar-se como contínuo. A redução do universo narrativo, sua concentração num ambiente menor, o abandono ao ritmo progressivo na constituição do protagonista, o voltar-se do foco narrativo para uma constelação de personagens formadora do universo do jornal representa a acentuação de traços expressionistas, deformadoras e caricaturais da narrativa.
     Principia por uma descrição dos componentes da redação. Ricardo Loberant, o diretor do jornal, é apresentado como homem “sem talento, sem pertinácia e paciência” para conseguir afirmar-se por mérito próprio, razão pela qual recorre à paixão para conseguir seus objetivos. O primado da vontade acentua os contornos de seu paternalismo, expressão das relações sociais caracterizadoras da “via prussiana” ou, seguindo outra vertente ideológica menos explorado, de um “estado patrimonial”, conforme a conceituação desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda. Se o diretor do jornal representa os interesses privados, particulares, o seu relacionamento com o poder público faz-se mediante a diluição completa da fronteira entre o público e o privado, transformando-se aquela numa estrutura apropriada pela classe hegemônica. No seio de tanta desonestidade e falta de nitidez pode-se entender a filosofia do jornal: “era só fechar os olhos e estender a mão” (p. 18).
     Chama a atenção na caracterização da personagem a total ausência de qualquer linha de pensamento. Trata-se de um “viveur” típico, enfronhado num jornal visto apenas como mercadoria, objeto capaz de produzir ricos dividendos.
     Aires d’Ávila, pseudônimo de Pacheco Rabelo (Pedro Leão Veloso Filho, que usava o pseudônimo de Gil Vidal), é o redator-chefe, o braço direito do diretor, descrito com traços caricaturais: “Havia na sua marcha um grande esforço de tração e um monóculo petulante na face imóvel não lhe diminuía o peso da figura” (p.19).
     Leporace (Vicente Piragibe) torna-se sumidade em literatura graças não a um profundo conhecimento do assunto, mas devido à sua natureza respeitosa e serviçal diante do diretor.
     Raul Gusmão, Gregoróvitch e Oliveira (Pedro da Costa Rego), este último tido como “parvo e besta”, são introduzidos na primeira parte da narrativa.
     Extremamente sugestiva é a caracterização de Floc (trata-se de João Itiberê da Cunha, o JIC):

          entrou o fino, o elegante, o diplomático, o macio Frederico
          Lourenço do Couto, com a sua linda barba perfumada e o seu grande
          queixo erguido e atirado para adiante como  um  aríete encouraçado.
          Vinha  todo  perfumado,  de  olhar  lustroso,  desprendendo   essências,
          com  o peitinho da camisa a brilhar  imaculadamente e um grande botão
          coral ao  centro, rodeado de brilhantes (p. 20).

     Com tantos predicados, Floc serve para o autor implícito expor ao ridículo determinado
tipo de crítica literária em voga nas décadas iniciais do século passado:

         A  sua  crítica  não obedecia a nenhum  sistema; não  seguia  escola
         alguma. As suas regras estéticas  eram  as suas relações com   o
         autor, as recomendações  recebidas, os  títulos universitários, o nascimento e
         a condição social. Elogiava nefelibatas, se eram de sua amizade,
         se eram ‘limpos’; detratava se não eram. Tinha, além, dois princípios:
         a aristocracia da arte e a  fulminação  dos  nulos. Entendia, a  seu  modo
         aristocracia  da  arte, isto é, arte feita  pelos aristocratas como ele,
         cujo pai tivera na primeira mocidade uma taverna em Barra Mansa (p. 21).

     Também o sistema literário sofre as consequências do desenvolvimento através da “via prussiana”. Falta-lhe organicidade e continuidade. As obras apresentam-se desligadas dos problemas contemporâneos. A literatura torna-se um vazio, pasto de aventureiros, colunistas sociais e damas da sociedade, um amável e doce sorriso. O paternalismo preside as relações entre  a crítica e o artista, corrompendo o que há de melhor. O crítico é o olhar dominador, tradução cultural do poder, por isso elide o negro e o mulato do plano social; quando incorpora um autor que consegue furar a teia de silêncio (um Machado, por exemplo) o faz com uma preocupação (totalmente ausente nos demais casos) obsessiva no “literário”: isto é, incorpora o autor, não a sua cor. Nessa crítica não, além disso, nenhum fundamento teórico.
     Além dessas personagens, há uma galeria de tipos minúsculos: Lobo (o gramático Cândido Lago), o consultor gramatical; Losque (provavelmente Gastão Bousquet) e Lara (para alguns, Bastos Tigres; para outros, Antônio Sales), humoristas; Meneses, o único que estudava; Oliveira, admirador extasiado de Ricardo Loberant; Rolim (Francisco Souto), analfabeto, mas lindo como narciso; Costa(?); Barros(?), agente de anúncios; Adelermo Caxias (Viriato Correia), um intelectual amaciado pela pressão do poder. Lugar destacado ocupa Gregoróvitch:

          era da artilharia. Com o seu estilo desconjuntado e a sua violência
          injuriosa, abria brechas nas  linhas adversárias e dizimava-as de longe.
          Estrangeiro, nada sabendo da nossa história, nem pelo estudo nem a
          sentindo pelo sangue, a sua crítica e o seu ataque tinham uma violência
          desmedida (p. 22)

     Completa o quadro Alberto Pranzini (Giovani Fogliani), o gerente, figura lateral, ocupado exclusivamente com os lucros.
     Ao pequeno mundo do jornal acrescenta-se a figura singular de Veiga Filho,  “o grande romancista de luxuoso vocabulário”, paródia a Coelho Neto, a quem não perdoa a chinesice
literária.
     A crítica à literatura dominante: o leve e adocicado maneirismo social de Floc; o intenso verbalismo de Coelho Neto; e a literatura enquanto expressão do sorriso da sociedade, acrescenta-se a crítica à tendência predominante na linguagem da época, o exagerado apego
o um falso purismo gramatical, entrevisto nas palavras de Lobo, o fiscal da língua:

         - Brasileiro, doutor! falou  mansamente o gramático. Isto que se
         fala aqui não é língua, não é  nada: é um vazadouro de imundícies.
         Se Frei Luís de Souza ressuscitasse, não reconheceria a  sua  bela
         língua   nessa  amálgama,  nessa  mistura  diabólica  de  galicismos,
         africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, hiatos, colisões...
         Um inferno! Ah, doutor!  Não se esqueça disto: os romanos
         desapareceram, mas a sua língua é estudada (p. 23).

     Uma vez introduzido no microcosmo jornalístico, Isaías passa a conformar-se em consonância com o ambiente, assimilando as qualidades do meio onde exerce a sua atividade. Testemunha a manipulação da insatisfação popular através de uma campanha dirigida, no fundo, por mesquinhos interesses pessoais. Presencia a morte de Floc, um suicídio por impotência. A morte do crítico significa a sua ascensão no jornal. Ela o aproxima do diretor, pego em flagrante num ambiente pouco recomendável. Essa aproximação equivale ao apagamento completo de seu olhar, a sua absorção pela lógica do sistema diante do qual tivera, até então, uma consciência crítica, apesar das modestas funções subalternas. O olhar do diretor do jornal e o de Isaías não se cruzam, são imiscíveis; um acaba por deslocar o outro, apagando-o. Não é necessário dizer qual.


 3 – Conclusão 

     Preso à teia do poder, Isaías Caminha desfaz-se de seus projetos pessoais. No entanto, o processo de cooptação não é linear e prontamente resolvido. A noção de superioridade conserva-se, apesar de tudo, juntamente com um idealismo enfraquecido ao extremo.
     Enquanto jornalista assume o império da língua, exemplarmente vislumbrado por Barthes: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Barthes, s/d, p. 14).
     Torna-se, portanto, uma das vozes do poder: “...por toda parte, vozes ‘autorizadas’, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância” (Barthes, s/d, p. 11).
     De sua autonomia, de sua posição fora do sistema de dominação, converte-se em membro ativo, pois o poder dissemina-se por toda parte: “...o poder ( a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder” (Barthes, s/d, p. 10).
    O discurso de Isaías Caminha é uma caligrafia em ruínas, o percurso da deserção e do amesquinhamento: discurso de perda e supressão da individualidade. No entanto, nos fragmentos de sua individualidade expõe as vísceras de seus sonhos, isto é, aponta para uma outra possibilidade de encenação, um novo deslocamento de signos  (menos policialescos e pernósticos), liberados de catedralescos compêndios  de raridades léxicas e de uma estilística da futilidade. Do interdito, do lado maldito, da zona de penumbra da cidade a ardência instala no centro do olhar a lateralidade perigosa e subversiva dos fora de cena. 





Rio de Janeiro, 1990.

  
Referências 
  
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense-  Universitária, 1981.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 6ª. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 4ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1970.
_____. A nova Califórnia. São Paulo: Brasiliense, 1982.
_____. Os bruzundangas. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
_____. Triste Fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOSI, Alfredo. O pré-modernismo. 3ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1969.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e de história literária. 5ª. ed. rev. São Paulo: Nacional, 1976.
COUTINHO et alii. Realismo e antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Augusto dos Anjos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Grifo, 1976.
REZENDE, Beatriz et alii. Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1988.
____. “Lima Barreto e a República”. In: Revista USP, nº 3, set/out/nov, 1989.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.


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Adicionar legenda


O lugar hilstiano*


       
    Hilda Hilst é uma autora sobre a qual a ação do tempo desperta uma crescente ampliação do interesse acadêmico. Essa afirmativa pode ser facilmente comprovada pelas inúmeras teses e dissertações a respeito de sua multifacetada produção: dramática, poética e narrativa. O aumento de pesquisas sobre a sua obra, no entanto, ainda não foi suficientemente forte para gerar uma bibliografia crítica capaz de nos aproximar de sua riqueza.
    O presente trabalho investiga de que modo na narrativa de Hilst, lida com frequência sob a ótica do erótico, do filosófico, do hermético e do poético, podem ser percebidas marcas reconhecidas pela ecocrítica. Tal tarefa, à primeira vista,  parece extremamente ingrata, pois a prosa hilstiana subverte linguagens, escandaliza comportamentos, desarma apreensões críticas, violenta demarcações genéricas, parte sempre de um pensamento que capta a ausência, o nada e constrói-se sob o vazio; dele faz sua morada e dele, somente dele, do não-lugar da arte, pode pro-duzir (HEIDEGGER: 2001, 16).  [1]
     Uma leitura mais atenta, no entanto, conseguirá encontrar em seus textos  caminhos relacionados ao pensamento ecológico capazes de iluminar novas perspectivas  trazidas  pela narrativa brasileira contemporânea.
    Contemporaneidade aqui é empregada na acepção da discronia agambeniana: “é aquela relação com o tempo que adere a este através de uma defasagem e de um anacronismo (AGAMBEN, 2009, 1-2). Isto é, a apreensão do próprio tempo só é possível através de um desvio, de um distanciamento. Aqueles que se conformam totalmente às ideais e aos ideais de uma época são incapazes de captá-la com nitidez. Por isso só é contemporâneo efetivamente quem percebe a obscuridade de seu próprio tempo.
    Além de chamar a atenção para a discronia e a obscuridade, Giorgio Agamben também circunscreve os índices e as marcas do arcaico na esfera do contemporâneo ao observar a sobrevivência da origem no processo do devir histórico.
    Essas características, presentes na obra hilstiana, marcam uma escrita que guarda as questões inaugurais e eternas do ser humano, dimensão ontológica arquitetada em uma linguagem experimental em que a modernidade não expulsa nem sacraliza o passado. Nela o distanciamento e a singularidade da autora constroem a possibilidade de uma compreensão mais precisa de sua temporalidade, fato impensável se a sua visão fosse de pura aderência à época em que viveu. Sua produção flagra a matéria negra do tempo, razão pela qual surge o hiato, o deslocamento, a cesura, a dificuldade de inseri-la em um espaço cômodo, em um rótulo identitário que suprimisse a inquietação promovida por sua leitura. 
    A violenta tensão da narrativa hilstiana resulta do deslocamento do ser, exilado das verdades universais, das certezas inquestionáveis, do centro, da origem e da promessa de eternidade. Solto em um mundo desordenado, o artista cria uma escrita que só pode reproduzir a fragmentação da existência, o seu caráter caótico. Todos os recursos empregados, contudo, revelam a sobrevivência extraordinária das perguntas essenciais. Os fragmentos, as ruínas com os quais se escreve o caráter experimental da narrativa, exasperam o estado agônico de quem  só encontra o nada como o eco da busca e intensificam a violência das ondas em que se transforma o incessante movimento de lançar as questões fundamentais da existência com renovado vigor.
    Uma leitura da obra hilstiana sob os olhos da ecocrítica exige uma compreensão mais refinada da ecologia, capaz de ultrapassar as simples referências ambientais e apreender o significado mais profundo desse campo de conhecimento “que não é, primordialmente, um problema econômico e político, mas, sim, um problema de relação do homem consigo mesmo, com os outros e com as coisas” (CASTRO: 1992, 13). Essa densa e extensa rede de relações que encobrem a existência humana é exposta por Hilda Hilst em estado agônico, em crise, numa exibição nua e crua da falência de um tempo e modo de organização da humanidade, espelhados no caos de gêneros com o qual seus livros são  arquitetados, na rarefação de personagens da narrativa, no colapso de hierarquias e identidades.
     A etimologia da palavra ecologia lança luzes sobre à compreensão de seu significado e auxilia a perceber como Hilda Hilst contribuiu para revelar áreas menos visíveis da questão ecológica. Manuel Antônio de Castro relatou o processo de formação da palavra:

Ecologia se constitui de dois termos gregos. 1º. Oikos, significa:; habitação, família, raça; este, em grego, se forma do  verbo; oikizein,que significa: instalar, construir, fundar. 2º. Logia, que se formou do verbo leguein: dizer, anunciar, ler, ordenar. A este verbo se prende também a palavra logos (daí logia), que significa: palavra, razão, discurso. Percorrendo e confrontando os diferentes significados possíveis dos dois termos gregos, notamos que em nenhum momento aparece a palavra natureza. Muito pelo contrário, se há um significado central no termo ecologia, este é HABITAÇÃO.(CASTRO: 1992, 14)


     Na narrativa hilstiana podemos observar a presença em todas as narrativas, de uma forma ou de outra, da existência de seres desalojados e desamparados. As criaturas hilstianas movem-se nos escombros, nas ruínas ou no lixo de um lar, vivem, portanto, em um permanente estado de exílio. Compare-se, por exemplo, Hillé, de A obscena senhora D, domiciliada no vão de uma escala, ao Stamatius, de Cartas de um sedutor, escritor que vive remexendo o lixo, com o Karl, do mesmo livro, cuja paixão incestuosa pela irmã inviabiliza a habitação, o viver compartilhado sob o mesmo teto.


 Fluxo-floema, publicado em 1970, é a primeira incursão de Hilda Hilst à narrativa em prosa. Constitui-se de um conjunto de quatro textos, dos quais apenas o primeiro, denominado Fluxo, será abordado. Nele já é possível encontrar as formas matriciais de universo hilstiano: a produção textual reflexiva, capaz de conjugar ficção e pensamento, ou seja, poiesis e filosofia; uma narrativa em que “todos os gêneros se fundem”, conforme observação de Anatol Rosenfeld no prefácio da primeira edição; a proliferação de máscaras; a presença de um vocabulário rebuscado ao lado de intensa oralidade;  a indagação existencial; o não lutar da arte; o uso de jogos metaficcionais e metalinguísticos.

         O título – Fluxo – significa escoamento ou movimento contínuo de algo que segue um curso, uma corrente que jorra livremente, incorporando o puro e o impuro, o sagrado e o profano, dissolvendo fronteiras genéricas e tipologias textuais, misturando a linguagem alta à baixa, ao mesmo passo em que se angustia com o caráter incognoscível de origens e destino.
    O recurso ao fluxo de consciência  permite relacionar a alta voltagem do texto hilstiano, ainda que sujeita a curto-circuitos, às idéias desenvolvidas por William Rueckert, em um dos textos seminais da Ecoliteratura, “Literatura e Ecologia – um experimento em Ecocrítica”, de 1978. Neste ensaio, o autor sustenta que um poema pode ser considerado como uma forma de energia armazenada, renovável, originária da linguagem e da imaginação.  A leitura resulta, portanto, em um processo de transferência de energia.
    A utilização do fluxo de consciência por Hilda Hilst opera um desvio em relação ao seu uso convencional, como expôs o crítico Alcir Pécora:                    
Não se trata, contudo, da forma mais conhecida de fluxo de consciência, na qual a narração ou o enunciado se apresenta como flagrante realista de pensamentos do narrador. O fluxo surpreendentemente  dialógico, ou mesmo teatral, sem deixar de se referir sistematicamente ao próprio texto que está sendo produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem e como linguagem sobre linguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente como falas de diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva da narração.

    Tudo indica que a produção teatral da autora, constituída por oito peças escritas entre 1967 e 1969, não cessou propriamente, antes encontrou na prosa  ficcional um território capaz de expandir o jogo de máscaras iniciado em suas peças. A dramaticidade do fluxo de consciência no texto aqui analisado pode ser observada  na substituição das personagens tradicionais da narrativa por máscaras ficcionais – Ruiska, o pai (desdobrado em anão); Ruisis, a mãe; Rukah, o filho. Surgem, assim, múltiplas vozes textuais a travar um diálogo de encontros e rupturas  com três criaturas que emanam do próprio narrador num jogo metaficcional, como pode ser constatado em fala de Ruiska dirigida ao anão:

                       
O meu de dentro é turvo, o meu de dentro quer se contar inteiro, quer dizer que Ruisis, Ruiska, Rukah, são três coisas que se juntaram aqui com um propósito definido, elas caminham para algum lugar, elas serão alguém, elas não podem estar aqui por nada, nem eu as colocaria aqui por nada, entende, anão? (HILST: 1970, 36)
    O texto apresenta em seu início uma fábula, cuja dimensão metafórica pode lançar luz sobre o caminho intentado pela autora.

Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu o crisântemo partido, ; falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem pra minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre  à  procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado.; Oi ai. Não há salvação. (HILST, 1970, p. 23)

    A moral negativa da história não impede que o artista – o menininho – movimente-se tocado pelo encantamento promovido pela frágil natureza do belo – o crisântemo – ainda que a busca seja também um desvio para a morte – o bicho medonho. O artista não pode fugir ao risco de ser devorado, deve se entregar sem espera de salvação em uma estranha forma ritualística de sacrifício, celebrada em um lugar perigoso e incomum, no qual executa a constante exposição de seus arcanos e de suas vísceras. Na fábula, o menininho move-se em direção ao outro; tal movimento corresponde ao gesto criador com o qual o artista tenta escapar à morte.
    Ruiska é um escritor às voltas com o seu processo criador, sobre o qual a ação demoníaca do mercado (o editor de livros ou o bicho medonho da fábula) exerce uma ação nefasta, pois sua arte não atende às expectativas de consumo: “eu só sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas de dentro são complicadíssimas mas são...  são as coisas de dentro. E aí vem o cornudo e diz: como é que é, meu velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada, você agora vai ficar riquinho e obedecer, não invente problemas”. (HILT: 1970, 24) A ação corrosiva do bicho medonho sobre o trabalho do escritor é recorrente ao longo do texto: “acaba com a coisa de escrever coisa que ninguém entende, que só você é que entende, é por causa dessas coisas que você tem agora uma úlcera na córnea.” (31); “É para teu bem que te pedimos novelinhas amenas, novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião, no módulo, na cápsula.” (31)
    O desconforto de Ruiska é ampliado por não ver o seu trabalho reconhecido por aqueles que lutavam pela transformação da sociedade. Também inconformados e deslocados em uma realidade opressora e alienante, poderiam vir a ser os leitores potenciais de uma estética transgressora. Isso não acontece. Ao revelar sua condição de escritor a membros de uma passeata, acaba acusado de alienação ao confessar que “escrevia (...) sobre essa angústia de dentro.” (HILST, 1970, 55) De nada vale argumentar sobre o caráter universal de suas preocupações, prevalecem o pragmatismo político, o imediatismo, o mesmo rebaixamento estético exigido pelo “bicho medonho”, ou seja, pelo mercado.
    Ruiska vive em um escritório, no qual se distinguem uma porta de aço, com a qual se isola do mundo, uma clarabóia e um poço, os dois últimos posicionados em um mesmo eixo, dimensão topográfica que o obriga a um posicionamento no qual se vê impedido de ocupar o centro. Marca, na topografia existencial, a insuficiência do olhar, a perspectiva precária de uma curiosidade que se lança a todos os níveis do conhecimento.
    Quando tenta ultrapassar as fronteiras desse espaço criador, Ruiska sofre os efeitos  paralisantes do cotidiano: “todas as vezes que saio do meu escritório, todas vezes que é preciso abrir a porta de aço, todas as vezes que é preciso fechar a clarabóia e colocar a tampa no poço por bondade, atravessar o meu pátio para conversar com quem quer que seja, eu fico rouco”. (HILST, 1970, 31)
    Cresce, dessa maneira, a dimensão metafórica do texto. A clarabóia é o espaço por onde entra a luz, o lugar para onde se eleva o ser, o alto, a abertura para a dimensão cósmica. Contrapõe-se ao poço, aos instintos, ao inconsciente. Opõe-se o mundo solar ao mundo lunar.
     A simbologia antitética das metáforas espaciais traduz a natureza das preocupações hilstianas, alimentadas por uma incessante tensão entre o sublime e o chulo, a indagação metafísica e a carnalidade exasperante, a luz e a escuridão.
    A oposição, contudo, ganha novo contorno ao ampliar-se ainda mais a dimensão metafórica de Fluxo, pois nele poço “considerado de baixo para cima, é uma luneta astronômica gigante, apontada desde o fundo das entranhas da terra para o pólo celeste. Esse complexo constitui uma escada da salvação ligando entre si os três andares do mundo [céu, terra, infernos]”. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2009, 726)
     A figura do anão surge misteriosamente quando Ruiska investigava com seu telescópio uma estrela anã branca. É uma criatura originada “do intestino, da cloaca do universo, do cone sombrio da luta.” È o polo oposto de Ruiska, razão pela qual, após o acréscimo de um rabo, pode descer ao poço e viajar pelos subterrâneos, enquanto Ruiska, provido de asas, voa no lado luminoso, estelar, simbolizado pela clarabóia.
    Ambos, contudo, são planos ficcionais de um mesmo ser. É o que fica claro na afirmação de Ruiska sobre o anão: “e esse aqui sou eu mesmo mas do cone sombrio.” (HILST: 1970, 55)  Perspectiva também assumida pelo anão : “Pois é claro, Ruiska, sou tua sombra, tudo que vem de baixo em ti, é coisa minha, e és tu também inteiro.” (HILST, 1970, 58). O anão é a consciência de Ruiska.
    As máscaras hilstianas traduzem a complexa indeterminação de territórios existenciais marcados, pois neles “as coisas de fora e as coisas de dentro ficam transitáveis” (HILST, 1970, 36). O lugar é sempre forma impura, não há espaços nobres ou sujos, amenos ou infernais, entradas ou saídas.
     Colocados em um mesmo ambiente, representam a impossibilidade de construções de muros ao redor da existência, a insuficiência de fronteiras, a ineficácia de demarcações territoriais, pois o humano é a mistura, o conflito, a coexistência de múltiplas criaturas em um único ser, uma pluralidade irredutível a categorização, a vida é um exercício desordenado, caótico, no qual mergulhamos sem nenhuma segurança.
            
Nota

 [1] No sentido atribuído a esse termo por Platão: “Todo deixar-viger o que passa e procede do não vigente para a vigência é ποίησις, é pro-dução”. 


Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? Trad. Cláudio Oliveira. Rio de
            Janeiro: UFRJ, 2009.
CASTRO, Manuel Antônio de. “Ecologia: A Cultura como Habitação”. In: Ecologia e Literatura. Org. Angélica Soares. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 23ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 2ª. ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.
HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Perspectiva, 1970.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.
PÉCORA,  Alcir. Hilda  Hilst:  call  for  papers.  Disponível   em  http : //  www.
germinaliteratura.com.br/enc_ago5.htm. Acesso em: 26 fev. 2007,22:08.   
RUECKERT, Willian.  Literature   and  ecology:  an  experiment   in  Ecocriticism.   In: GLOTFELTY, Cherryl  &  FROMM,  Harold; eds. The  ecocriticism  reader   – landmarks  in  literary  ecology. Athens / London. The Univ.  of  Geórgia  Press, 1996. p. 105-23.


* Artigo publicado na Revista Garrafa, nº 18, abr./jun. - 2009, programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ


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Caos e criação em "Matamoros",  de Hilda Hilst *




O segundo relato de Tu não te moves de ti, de Hilda Hilst, "Matamoros (da fantasia)", tem como protagonista Maria Matamoros, mencionada no texto inicial do livro, denominado Tadeu (da razão). A narrativa desenvolve-se em um ambiente bucólico, cuja atemporalidade parece restaurar uma atmosfera de arte clássica, aberto sensualismo, vida campestre e dimensão simbólica. Assemelha-se a uma pastoral na qual o locus amoenus transmuta-se em palco de uma tragédia amorosa. Portanto, há uma inversão em relação ao universo contemporâneo e urbano de Tadeu. 

Além de um caminho de/para a narrativa anterior, há uma relação entre Matamoros e “Axerold (da proporção)”, última parte do livro. A conexão entre os três relatos se dá não apenas pela presença de personagens em comum, mas também pela ligação entremostrada pelos subtítulos. Ao ser estabelecido tal relacionamento, contudo, a narrativa assume a forma de um tríptico narrativo flutuante, no qual as três partes constitutivas tanto guardam autonomia quanto formulam uma aproximação com a forma do romance. 

Ainda na construção da teia hilstiana em “Matamoros”, podemos observar que é uma reescritura da peça teatral “O visitante”, elaborada em 1968, porém só publicada muitos anos depois . Nos dois textos, podemos observar o abalo promovido na vida de mãe e filha pela presença de um estranho que desestabiliza o convívio entre as duas, trazendo à tona todos os sentimentos advindos da ideia de traição.

A inscrição parentética da palavra fantasia no título da narrativa torna necessário um entendimento mais aprofundado da conotação que o termo imprime ao texto, conhecimento capaz de revelar sob qual perspectiva a inclusão dele dá validade à sua presença ordenadora.

Abbagnano (1998, p. 445) esclarece que o termo fantasia surgiu como uma forma sinonímica de imaginação. Posteriormente, a partir do século XVIII, a necessidade de distinção levou a se atribuir à fantasia o sentido de uma imaginação excessiva, contida na filosofia de Kant para o qual a fantasia é “a imaginação que produz imagens sem querer”.

A esse primeiro sentido, no entanto, o mesmo autor acrescenta um outro, diretamente relacionado ao emprego da palavra fantasia no título de Matamoros, advindo da estética romântica:
(...) segundo o qual a Fantasia é entendida como imaginação criadora, diferente, em qualidade mais do que em grau, da imaginação reprodutora comum. Nesse sentido, Hegel via a Fantasia como "imaginação simbolizadora, alegorizadora e poetante", logo “criadora" (Ene, §§ 456-57). Os românticos exaltaram a Fantasia assim entendida. Para Novalis, ela é "o máximo bem" (Fragmente, 535). "A Fantasia", dizia ele, "é o sentido maravilhoso que em nós pode substituir todos os sentidos. Se os sentidos externos parecem submeter-se a leis mecânicas, a Fantasia evidentemente não está ligada ao presente nem ao contato de estímulos anteriores" (Ibid., 537). Desse modo, o caráter desordenado ou rebelde da imaginação fantasiosa, em virtude do qual essa forma de imaginação parecia inferior às outras no séc. XVIII, no séc. XIX passa a ser elemento positivo, um mérito, uma característica da liberdade criadora. A estética romântica ateve-se a essa valorização da fantasia. (1998, p. 446)

Do uso sinonímico de fantasia como imaginação criadora, Hegel nos deixou uma passagem bem explícita: “A imaginação criadora de arte, ou fantasia [grifo nosso], é própria de um grande espírito e de uma grande alma, é a que apreende e engendra representações e formas, a que dá uma expressão figurada, sensível e precisa aos interesses humanos mais profundos e gerais” (1991, p. 42). Essa associação permite ler a narrativa de Matamoros como metáfora da criação literária.


Ascensão da fantasia

A narrativa é a reconstituição dos acontecimentos que trouxeram a Matamoros êxtase e terror oriundos de uma experiência em que as dimensões do sonho e da realidade são atravessadas. A voz da narradora inicia a recuperação mnemônica de sua trajetória localizando-a em um passado indeterminado, o emprego das formas pretéritas, no entanto, é constantemente substituído pelo emprego das formas do presente do indicativo em transcrições de diálogos e em trechos referentes às reflexões e aos estados de espírito da protagonista. Em alguns momentos, profecias de um futuro ignorado pelo leitor mas inscrito no repertório das experiências da narradora são acrescentados ao texto. Veja-se, por exemplo, as seguintes passagens: “teria sido graça não conhecer aquele que me fez conhecer, e de minha mãe Haiága, fez a desgraça. (HILST: 2004, p. 64)”; “conheci o homem que me deu luz à vida, mas também me deu sangue e ensangüentou Haiága” (HILST: 2004, p. 65). 

O desenlace sangrento da história parece justificar a afirmação inicial da narradora com a qual se coloca sob o signo da melancolia para explicar sua natureza saturnina: “Amei de maneira escura porque pertenço à Terra” (p. 61). 

Há, por conseguinte, um ponto de tangência entre a constituição dos protagonistas das duas histórias. É bem verdade que Matamoros não possui pretensões estéticas, ao contrário de Tadeu. Sua natureza melancólica, todavia, não recebe de modo passivo a produção onírica de outro homem. Ela desenha com as linhas do próprio desejo o sonho de uma perfeição alheia também desenhada em outro sonho. Por isso Simeona, a vidente que exerce um papel fundamental para a compreensão do texto, pode afirmar a existência de um estado que se ajusta perfeitamente ao desejo de cada um: “porque é sonho de outro feito de perfeição viste nele o teu próprio sonhado, e todas hão de vê-lo matéria do que sonham, amolda-se conforme desejo de qualquer, não é de carne, e repito não é, repito ainda que tu me mostres dele o sangue derramado (p. 93)

O sonho de Matamoros é explicitado em um desabafo endereçado a Deus após o encontro com Biona e Ruffina:


Matamoros deitava-se, as pernas separadas, as mãos em concha lá no escuro da fome, e sonhava uma cara, alguém, e nessa construção de cara muito me demorava, um ovalado de face, umas sombras pinceladas de um pequeno azul no debaixo dos olhos, estava assim cansada essa cara de tanto amor por mim, ia aos poucos construindo-lhe a boca, mas nunca consegui um profundo perfeito, depois a mão agora esticada se apressava e Matamoros a essa cara imperfeita acrescentava um corpo, que dificultoso exercício, Soberano, esse de gozar contente partindo apenas de uma ideia confusa que nos vem à mente (p. 102)

Também aqui pode ser encontrada a protagonista em recessus, isolada na natureza, apartada da agitação mundana e entregue a um estado de torpor e fantasia semelhante à experiência de Tadeu ao desencaixar-se do lugar programado para viver o pesadelo de uma vida inautêntica e buscar o ponto do qual a criação é possível.

A segunda parte de Tu não te moves de ti pode, então, ser entendida como uma narrativa em que se afirma o processo criador como fusão das caligrafias estética e erótica, unidas pela fantasia.
O surgimento de Meu se dá em um momento em que Matamoros “pensava em nada, [...] nada pensante em um tarde rara” (p. 65) . O surgimento da nova criatura se dá sob a o domínio do torpor e do inquieto discorrer de fantasia em fantasia, marcas de idêntico estado de acídia vivido por Tadeu.
Meu é um sopro e uma aporia. Fruto de evagatio mentis e de curiositas, prole das filiae acediae, construído tanto com a dispersão e o abandono a um nada carregado de falta e ausência – do qual Meu é a materialidade do que é negado ‒, quanto com a insaciável necessidade de ver, conhecer, buscar “o que é novo só para saltar mais uma vez para o que ainda é mais novo” (Agamben: 2007, p, 27). Curiositas é a perversão de Matamoros, a força incontrolável de tudo tocar e ser tocada por todos, seu estar-aí como entrega a um não saber o que aí está. 

Matamoros não recebe Meu pura e simplesmente como um sonho mediante o qual um indivíduo escapa à sem-razão da própria existência, não vive apenas à sombra do seu encantamento, não circula aleatoriamente em torno de uma figura em fuga de outro relato. Ela constrói, de modo simultâneo, o desejo e a impossibilidade de alcançá-lo, ao dar espaço a Meu como epifania do inapreensível.

É possível avançar, então, para a outra ponta da gênese do homem-anjo, tão pertinente quanto aquela ancorada em outro relato. Matamoros vive na plenitude do nada, sob o signo da acídia:


É assim que a ambígua polaridade negativa da acídia se torna o fermento dialético capaz de transformar a privação em posse. Já que o seu desejo continua preso àquilo que se tornou inacessível, a acídia não constitui apenas uma fuga de..., mas também uma fuga para..., que se comunica com seu objeto sob a forma da negação e da carência. (Agamben: 2007, p. 32)

A ação se desenvolve em uma dimensão atemporal e numa espacialidade indefinida: “Cheguei aqui nuns outubros de um ano que não sei, não estava velha nem estou, talvez jamais ficarei porque faz-se há muito tempo nos adentros importante saber e sentimento” (HILST: 2004, p. 61). A protagonista – Matamoros – carrega com prazer um nome em que se guarda um apelo à luta e à disseminação da morte, ao qual se incorpora ainda um percurso existencial caracterizado por uma contínua ação de matar-se desde menina. Da busca do sentido de suas origens, resta uma ressonância belicista desmesurada, como se o nome que lhe foi dado a destinasse a um confronto de terrível tragicidade, forma nominal onde se manifestam em estado de latência os germes da dúvida, do ciúme, do ódio e do rancor que lhe envenenam o espírito.

Cedo desdobre a força do desejo exposto de modo livre e espontâneo, compartilhando sexo e delícias com os meninos, no ambiente campestre ao redor da aldeia onde morava. A natureza livra-a de obediência a normas reguladoras de comportamento, reduzidas à voz materna. Os sentidos sustentam um aprendizado de prazeres, lição que só pode ser concluída com êxito mediante o exercício de jogos sensuais na proximidade das fronteiras da vigilância materna. A intensidade alcançada nas brincadeiras eróticas é alimentada justamente pelo fato de ocorrerem em vizinhança perigosa. O prazer gerado no corpo é potencializado com a ruptura de linhas culturais representadas pelas prescrições maternas, rompidas pela invasão a uma zona de prazer não-liberado em que o código de conduta é rasgado e a sexualidade aflora sem peias.

O mundo é algo a ser apalpado, tocado. O conhecimento de Mamatoros resulta da apreensão da realidade pelos sentidos: “desde sempre tudo toquei, só assim é que conheço o que vejo” (HILST: 2004, 61). A propulsão a tudo examinar mediante toques, da qual a livre sexualidade é apenas um derivativo, leva a mãe a recorrer a um especialista com poderes especiais, capaz de normalizar o comportamento da filha, adequando-o às regras de convívio. 

O indivíduo escolhido para reconduzir Matamoros ao caminho da normalidade, ironicamente um padre, em lugar de rezas e exorcismos, aproveita-se sexualmente da situação e ensina novos toques e carícias à menina de oito anos. O exercício de pedofilia não registra traumas aparentes no desenvolvimento da história. O que vem à memória de Matamoros é antes uma sensação agradável produzida pela junção de duas situações que a excitavam: a proximidade da mãe, vizinhança de um perigo que a fascinava, e a perícia do homem. O resultado do aprendizado foi repassado por Matamoros aos meninos da aldeia, sem que a propensão a tocar em tudo diminuísse: “Ó menina, por que tocas em tudo como quem vai dissecar uma fundura? Diz a mãe em cara retorcida em uma agonia de choros” (HILST, 2004, p. 63). 

Maria Matamoros, cuja curiosidade levou-a precocemente a acostumar-se ao livre exercício da sexualidade com os homens, contrapõe-se a Rute, mulher assexuada da história precedente. Liberdade que sucumbe, no entanto, após um encontro que irá mudar o rumo de sua vida, escravizando-a aos encantos de uma dimensão incomum. 

A experiência de Matamoros, sua iniciação sexual pelas mãos do homem de rezas – o adulto confiável –, o inocente prazer advindo do sexo, transformado em espécie de jogo infantil por uma menina de oito anos, prenunciam a narrativa de O Caderno Rosa de Lory Lamby, publicado em 1990, primeiro livro da denominada trilogia obscena de Hilda Hilst, cuja primeira frase da libertina mirim é justamente “Eu tenho oito anos”. Lori Lamby compartilha com Maria Matamoros a mesma inocência e entrega a todo tipo de carícia. 

Acaso ou destino, o encontro entre Matamoros e Meu é o momento em que a protagonista se desencontra. Marca a subtração de qualquer idéia de felicidade, ao escrever tal possibilidade com letras de dissimulação. Subtração assinalada no texto pela manifesta perda de domínio sobre os seus gestos, sombras emanadas do querer de seu homem: “de olhá-lo soube que a alma me tomaria, tomou-a” (HILST: 2004, p. 66). 

Indivíduo sem nome, Meu é revelação de uma ironia pungente. Não se trata apenas de recurso retórico, tropo; a ironia é também o modo absurdo do destino humano, a forma cruel do existir. Matamoros ao designá-lo por Meu, nomeia quem se recusa a ser nomeado, revelado. Batiza-o com a fantasia de que somente ela é portadora, ou seja, profere um sonho de perfeição em voz alta e passa a usá-lo para referir-se ao estranho. Meu nega o batismo amoroso: não pode ser contido nas fronteiras do desejo de Matamoros, possui uma natureza inapreensível, contém uma beleza como objeto de tentação aberta a todas as outras mulheres, é algo sem correspondência com a forma de pronome possessivo. A inscrição de ideias de posse, possessão e domínio no corpo de Meu deixa à mostra a insuficiência do olhar de Matamoros, uma vez que se projetam no amado marcas existentes na pele do desejo de uma mulher tomada completamente pela embriaguez dos sentidos. É no terreno da impalpável que ela sucumbe.

Matamoros, ao referir-se ao modo pelo qual Meu surgiu em seu caminho, reconstitui um fato passado, produzindo uma narrativa em primeira pessoa que explicita de modo exemplar a consciência da intraduzibilidade da experiência, vista como um acontecimento de espessa impenetrabilidade, daí a necessidade de voltar-se sobre o próprio relato para apontar a insuficiência de sua história, acentuando seu caráter metaficcional:


Conto esta estória desta forma como se houvesse o tempo de horas para contá-la mas assim não era o que se passava entre mim e o homem, ele via também? Tento dizer que não havia um seguimento de paisagens, que não era como seu eu visse uma e depois outra, esse seguir adiante não era, o que eu via era amplo e descabido para o entendimento, soube de antigos de mim (HILST: 2004, p. 67)

Embora tomada por Meu, presa ao fascínio da perfeição masculina, logo no início de seu encantamento Matamoros estremece e fica perturbada com falas e situações ambíguas, tempero de suas futuras desconfianças. Estranha o conhecimento do forasteiro sobre o passado de Haiága: “Haiaga é tua mãe, e mãe de Haiága não há, morta pois não, quando Haiága nasceu? Eu disse que sim estremecendo, como podia ter artes de adivinho, como?” (HILST: 2004, p. 70) Não obstante, o que poderia ser visto como indício de um conhecimento anterior de Meu a respeito de Haiága, após um súbito estranhamento, é relegado ao campo do aleatório.

O surgimento de Meu corresponde ao desencadeamento de um conjunto de alterações físicas em Haiága, rejuvenescendo-a e revelando uma beleza antes encoberta. As duas ações, simultâneas e inesperadas, intrigam Matamoros e jogam-na em um crescente estado de dilaceração de seus sentimentos filiais.

Os cuidados corporais de Haiága, antes desconhecidos, são percebidos como expressão de uma modificação que ultrapassa as dimensões meramente físicas. É o que se depreende de duas observações registradas pela protagonista:


Mudada minha mãe, a garganta de escolhidas palavras, o cabelo tinha lustros de óleos esquisitos, banhava-se com folhas, com pétalas secas, grãos amassados resultava num redondo de pasta, esfregava no corpo essas matérias, eu dizia Haiága minha mãe, não é que te tornaste bela? (HILST: 2004, p. 71)

A preocupação com a escolha de palavras indica uma alteração que ultrapassa os limites do corpo, denota também uma mudança de estado de espírito, uma preocupação de natureza psicológica a esconder a irrupção de sentimento clandestino pelo qual se inverte o prazer infantil da filha. Agora aparece uma inversão no jogo perigoso de paixões, parece que a mãe é quem se aventura a entrega aos prazeres nas fronteiras do domínio filial. No entanto, na metamorfose de Haiága ainda não há nada sujeito à condenação: “olhei-a, e não era mais velha, tinha a pele colada aos pomos do rosto, tinha um encanto, uma soberba no porte, e começou a cantar canção desconhecida, sem palavras.” (HILST; 2004, p. 71) Por que uma canção de um tempo anterior ao da filha? Que lembranças estão contidas em suas notas? Que prazeres secretos segredam a sua harmonia? Que felicidade antiga incluiu a sua partitura na memória de Haiága? A trama arma a sua sombra.

O surgimento de Meu na vida de ambas coincide com diferenças também observadas no discurso de Haiága: uma duplicidade escorregadia, carregada de subentendidos, palavras a exigir esclarecimentos, uma flutuação de sentidos amplificadora das desconfianças iniciais da filha. A ambiguidade banha o súbito embelezamento materno, ao mesmo tempo em que conduz a insegura Matamoros por caminhos sombrios. 

A dúvida sobre a causa da metamorfose materna não tarda a surgir de maneira ainda tímida, manifestada em diálogo entre ambas: “porque as mães também mudam se o amor lhes vêm / o amor? / claro, Maria, o meu amor por ti, agigantado, de te ver boa, sem o bulir de antes.” (HILST: 2004, p. 72) A indagação da filha não pode ser plenamente respondida pela mãe. Entre os pensamentos de Matamoros fica instalado o germe da suspeita. A busca de uma nebulosa razão para a justificativa dada, julgada insuficiente, parece inevitável. Apesar de a protagonista tentar apagar as dúvidas, elas ficam como rasuras de uma negação imperfeita. Daí em diante a fala da filha acerca de Haiága será pontuada por uma reflexão envenenada.

O confronto entre as duas mulheres aumenta ao Matamoros tomar conhecimento de que a mãe levanta-se de madrugada para preparar o alimento destinado a Meu, usurpando funções que deveriam ser restritas à filha. Haiága, em resposta à observação referente a seu aspecto renovado e a alegria reencontrada na velhice, profere uma frase carregada de jubiloso rancor: “alegria sim, maior que a tua” (HILST: 2004, p. 73). A superioridade impregnada em suas palavras não advém de uma reação emocional momentânea, assume uma conotação de beligerância feminina, disputa pelo mesmo homem, ao permitir uma leitura maliciosa como explicação de uma felicidade excessiva sem causa localizada.

Em Matamoros, paulatinamente, a clareza sobre os acontecimentos é algo que cresce gradualmente. Magoada pela frase ferina, reage afirmando a existência de culpa no tom das palavras proferidas por Haiága. Logo, no entanto, compreende a natureza do desencontro, a existência de um combate cada vez mais agudo entre ambas: “olhava-me como alguém que amava trigorosamente o que me pertencia, amava-o” (HILST: 2004, p. 74). A raiva intestina ainda não a domina completamente, os laços filiais sustentam um jogo de afirmação e negação das intenções amorosas de Haiága.

A narradora-protagonista solicita à mãe não mais levantar-se cedo, sob a alegação de que na idade dela as pessoas devem descansar. Antes de revelar qualquer espécie de preocupação, o motivo dado é apenas um instrumento para ferir a rival. A tensão despertada pela disputa lança as duas num jogo de agressão e reconciliação. 

Um olho todo fêmea, Matamoros redesenha o corpo da mãe com os olhos da insegurança. Ao comparar-se fisicamente a ela, percebe a posição desvantajosa que ocupa: as mãos, a pele, as ancas, o ventre, todo o corpo de Haiága adquire um viço desconhecido e uma beleza misteriosa, tudo contribui para inserir em seu espírito a sombra de uma constatação dolorosa: “Haiága vencia se um homem nos colocasse à frente do desejo” (HILST: 2004, p. 77). Corpo obscurecido por aquele que o gerou, Matamoros alivia-se em discurso vingativo: “estás mais gorda, Haiága, te cresceu a barriga” (HILST: 2004, p. 77).

Os reflexos das mudanças sofridas por Haiága produzem sucessivamente surpresa, desconfiança, inveja, ciúme e ódio em Matamoros. Se as suspeitas nascidas apenas de observações feitas pela filha sobre o corpo e o comportamento da mãe e dos diálogos mantidos entre ambas podem ser relativizadas por ficarem restritas a um círculo extremamente fechado, familiar, do qual somente as duas fazem parte, a introdução de comentários extrafamiliares, nos quais a filha é vista como figura inexpressiva diante do deslumbrante renascer da mãe, confere às suspeitas filiais um selo de veracidade, de confirmação, aumentando o sentimento acusatório intestino em que Matamoros vai se afundando cada vez mais. 

As falas dos homens e mulheres da aldeia endereçadas à Haiága provocam o aprofundamento do estado inquisitorial em que Matamoros parece mergulhada, imersa num minucioso exame das ações da rival. Escuta, inquieta e perturbada, as comparações estabelecidas pelos aldeões entre a exuberância física e o estado radiante da mãe com os seus reduzidos atributos físicos e a sua alegria em modo menor. Uma revelação mais assustadora surge no passeio campestre: a semelhança da beleza de Haiága com à da Virgem às vésperas do nascimento de Cristo e a percepção do aumento dos seios maternos. As duas referências nas conversas dos camponeses desabam uma tempestade de fogo em Matamoros, desenham um indesejado sentido para a constatação feita anteriormente sobre o crescimento da barriga.

Depois de impedir a mãe de acompanhá-la até o alto da colina, lugar onde o homem responsável pela inimizade entre as duas exercia o ofício de pastor de ovelhas, a protagonista ouve, no meio do caminho, a canção desconhecida de Haiága sendo entoada pelo amado. A música soa como cantiga de núpcias entre aquela que “deixou de ser mãe para ser amante” (HILST: 2004, p. 81) e o estranho perfeito, sua harmonia revela um afinado e secreto dueto cuja beleza transtorna Matamoros, despertando-lhe o desejo de morte da mulher que a pusera no mundo.


Simeona, a bruxa: travessia e expansão textual

É sob um estado psicológico revolto e abalada pela descoberta de fios formadores de um tecido confeccionado por traições que Matamoros encontra Simeona, a bruxa, excluída da aldeia, onde antes era amada, devido ao fato de anunciar “sangue numa casa da aldeia sujando para sempre as mãos da nossa gente” (HILST: 2004, p. 87).

Há um dimensão simbólica neste encontro refletida no modo topográfico de sua realização: no alto de uma colina, na sequência de um movimento ascendente buscado para promover o alívio das tensões que exasperavam Matamoros: “de minha ira invejosa quis eu afastar-me” (HILST: 2004, 79). O plano mais elevado, não obstante, não lhe reserva nenhum apaziguamento. Em vez de recuperar o estado de felicidade ao lado de Meu, consegue apenas ampliar a fissura entre desejo e realidade, ao perceber na canção sem palavras nos lábios do amado a presença usurpadora de Haiága; fenda transformada pelas palavras de Simeona em uma verdade insuportável, pois inscreve a sua existência como pura materialidade onírica. Por isso, a reação de Matamoros à profecia em que seu destino é traçado em sangue é dormir, sonhar. Em seus sonhos, a sua real condição de criatura ficcional surge nas palavras-fantasias, signos metalingüísticos de sua verdadeira natureza:


mormaria, pedaço feitos de morte e de meu nome, amormór, de morte ainda e de pesado amor, loucocim, pedaço feito de cima e inteiro de louco, tarDeus, de tarde avançando no de cima, poncartor, ponte de carne subindo na torre, e outras vindas da terra de ninguém, balbucios melados, rouquidão de águas gotejando um telhado, suspiros arrulhentos (HILST: 200, 95)

A recusa à realidade exibida pela profecia engendra na protagonista mecanismos defensivos com os quais tenta afastar as previsões sombrias do seu caminho, abrindo-se a explicações capazes de limpar as atitudes maternas de qualquer suspeita. Este movimento descendente, verdadeira fuga ao enfrentamento de sua natureza mais íntima, produz alívio efêmero, pois volta para casa, para o duelo viperino com Haiága. 

A pedido da protagonista, a feiticeira tenta aliviá-la dos sentimentos negativos que dominam o seu espírito. Com seu espelho de terra, pode observar a verdadeira natureza de Meu – homem-anjo, criatura intocável. Não consegue dissuadir Matamoros a romper o seu aprisionamento a um viver encantado, pois ela habita um território onde a razão se desvanece. Homem vindo de lugar desconhecido, forma idealizada da perfeição humana, aos olhos de Matamoros existir ao lado de Meu permitia acessar um estado de suprema felicidade. Esse excesso de felicidade, tradução de uma vida irreal, justifica o emprego do termo fantasia no título da história, fato reforçado no texto com a afirmação da vidente Simeona A Burra:


Com esta boca três mil vezes bendita te digo que é beleza excessiva para tomares posse, que hão de amá-lo todas as mulheres porque não é homem de carne, é pensamento-corpo sonhado por um homem de outras terras, homem que deseja formosura de alma porque tem vida de penumbra e tediosa, ai Maria, vives com alguém feito de matéria nova, com alguém que existe dentro de uma cabeça que tem fome de muita beleza, cabeça que se ocuparia das letras, que não pôde usá-las por fraqueza, deveria ter sido um cantador, entendes, e não pôde cumprir destino coroado, vives com a alma pensada de outro homem, e tem nome esse com que vives, esse sonhado de outro, pois aquele que sonha esse teu incarnado deu-lhe um nome (p. 88-89)

Surpreendente é a conexão estabelecida entre o misterioso homem-anjo Meu e o angustiado Tadeu. Ao condenar o nome atribuído por Matamoros ao marido, de quem esta sequer sabia o nome verdadeiro, a feiticeira enuncia uma revelação:


o nome que lhe deu esse pobre-rico-coitado é nome longe de nós, sílaba martelada e depois nome de Deus, TADEUS, chamou-o assim porque desse nome tem nome parecido, quer a vida que o teu anjo tem, sonha com liberdades, com terras, animais, é mais raiz de planta do que carne, liberdade de funduras é o que o outro pretende sem poder, vive uma vida de enganos, cercado de poeiras da matéria, tem mulher enfeitada de vidrilhos brilhantes, tem um lago na casa, lago de águas tão estranho porque a margem não se vê de capins, é uma coisa de pedra muito lisa o que contorna a margem, a vida desse outro é toda como se fosse pintada, entendes? Não é matéria viva. (p. 89-90)


Confundem-se, portanto, Meu, a enigmática figura masculina, e Tadeu, renomeado Tadeus. A bruxa consegue enxergar a vida anterior de Meu, seu isolamento e a incapacidade criativa, seu intenso desejo de outra existência, longe do convívio com a sua mulher-adereço, do vazio da piscina onde naufragam utensílios inúteis.


E tanto deseja viver vida de nossa gente, tanto lá por dentro a nós se assemelha que deu forma pulsante e muito ilícita, (porque poderes assim só os tem Deus) Deu forma, Maria, ao que sempre viveu no informe, no desejo”. (HILST: 2004, p. 90)

É por intermédio de um olhar excêntrico, afastado, de uma visão capaz de apreender aquilo que não se deixa ver pelo olhar comum, que a realidade incorpórea de Meu pode ser identificada ao processo criador, ao ato produzido pela junção de sílaba martelada e Deus. A alteração do equilíbrio imperante na relação entre Matamoros e Haiága, uma vez que ambas se apaixonam pelo mesmo homem, não advém simplesmente da presença de Meu, mas resulta do fato de existirem nos limites do sonho de Tadeus, transformado finalmente em demiurgo. A liberdade do criador é a submissão da criação aos seus caprichos. Meu é o outro de Tadeu, Tadeus é o mesmo de Tadeu.

O movimento ficcional que se expõe diante dos olhos do leitor, com o protagonista da primeira narrativa construindo na segunda, Matamoros, a obra que fora incapaz de esboçar na primeira, permite vê-la como uma forma de mise en abîme, um dos recursos de construção do texto metanarrativo: “est mise en abyme tout miroir interne réfléchissant l’ensemble du récit par réduplication simple, répétée ou spécieuse ” (Dällenbach;1977, p. 52).

Para Dällenbach o conceito significa uma modalidade reflexiva segundo a qual a obra retorna a si mesma, além de fazer sobressair a sua inteligibilidade e a estrutura formal.

Considera ainda como mise en abyme qualquer inserção que mantenha uma relação de semelhança com a obra que a contenha. Mise en abyme corresponde ao processo de inserir uma narrativa na narrativa principal ou primária, ilustrando-a, explicando-a, contradizendo-a ou a prolongando. Uma estrutura mise en abyme serve para colocar em evidência o tema central do romance: em Tu não te moves de ti, a criação literária.

Ao analisar a narrativa La tentative amoureuse, de Andre Gide, o teórico francês afirma que:


(...) c’est que le récit second, chez Gide, réfléchit le récit premier dans la mesure où il est nécessaire, pour que la rétroaction se produise, qu’il y ait analogie entre la situation du personnage et celle du narrateur ou – pour dire la même chose autremente – entre le contenu thématique du récit-cadre et celui du récit enchâssé. L’on peut donc définir la mise en abyme gidienne comme un couplage ou un jumelage d’activités portant sur un objet similaire ou, si l’on préfère, comme un rapport de rapports, la relation du narrateur N à son récit R étant homologique de celle du personnage narrateur n à son récit r . (Dällenbach, 1977,30)

Em Tu não te moves de ti a presença de Matamoros na primeira narrativa e o surgimento de Meu na segunda formam núcleos nos quais se condensam elementos deslocados de modo recíproco de uma narrativa para outra num jogo especular. Jogo no qual há um movimento opositivo entre as narrativas. Entre Tadeu e Matamoros existe uma inversão entre irrealização e realização, repressão e liberação; assim como há inversão também entre a atemporalidade de Matamoros e o tempo em ruínas em Axerold.

A intrincada rede formada por uma espécie de realimentação temática promovida por um processo de reduplicação em Tu não te moves de ti, ganha maior intensidade por guardar ainda profundos laços entre Matamoros e a peça O visitante, aumentando a complexidade estrutural da obra, pois tal projeção contamina as demais narrativas que a integram.

Em Matamoros sobrevivem Ana, a mãe, transformada em Haiága, e Maria, a filha. O personagem Meu reescreve o Homem, ambos, na verdade, destituídos de um nome singularizante. O último, contudo, não possui os atributos idealizados do primeiro. Desaparece a personagem Meia-Verdade, cuja intromissão no lar da família de Ana justifica o título O Visitante e permite interpretar a descoberta da inocência da mãe por Maria como vitória da dissimulação, pois o longo olhar entre o Homem, marido de Maria, e Ana, sua mãe, ao final da peça, é a confirmação das suspeitas da filha sobre a traição de ambos. Em compensação, surge Simeona, a bruxa, personagem inserida em Matamoros numa posição que lhe confere poderes especiais em relação às questões essenciais propostas pela obra e por trás da qual, num procedimento similar ao da sobreposição da voz de Sócrates no discurso de Diotima de Mantinéia, em O banquete (Platão: 1987, p. 33-43), podemos encontrar a voz autoral. Se Sócrates obtém de Diotima uma teoria sobre o amor que na realidade é a dele, Simeona revela a natureza metanarrativa do texto, o continuum de histórias que se cruzam e desviam, a aliança entre poesia e tragédia na narrativa, ou seja, fornece um mapa de leitura da obra.


A terceira peça de Hilda é apresentada pela autora como “pequena peça poética que deve ser tratada com delicadeza e paixão” (HILST: 2008, p. 145); o poético se faz presente não apenas no tratamento dado à ação, ocorre também por ser “escrita na linguagem indireta do verso assumido” (PALLOTINI, 2008, p. 504). Dimensão poética que, ao ser trazida para Matamoros, parece abandonar a delicadeza para assumir um tensionamento em que a traição torna-se sinônimo de tragédia, afastando-se da ingenuidade e do cinismo da peça matricial. Se o verso é abandonado, sobrevive numa linguagem impregnada por um andamento poético, como pode ser verificado no ritmo do primeiro parágrafo de Matamoros, presente em grande parte do texto: “Cheguei aqui nuns outubros / de um ano que não sei, / não estava velha nem estou, / talvez jamais ficarei / porque faz-se há muito tempo / nos adentros / importante saber e sentimento” (HILST; 2004, p. 61). Estruturas paratáticas e anafóricas, intercaladas por inúmeras frases interrogativas, modulam uma dimensão trágica, como se fosse possível ao discurso em primeira pessoa de Matamoros reconstruir com palavras a cena de seu infortúnio e expô-la ao narratário. 

Simeona abre a perspectiva de diálogo com as formas clássicas da literatura, reproduzindo a técnica de afastamento iluminante da tragédia. Relaciona-se não apenas a Diotima, inclusão que oculta retoricamente Sócrates para que ele possa manifestar livremente seus pensamentos, mas a adivinhos como Tirésias, o cego que vê o destino dos humanos. Excêntricas, as criaturas afastadas, à margem, são aquelas dotadas da propriedade de ler os caminhos alheios.

Hölderlin, ao analisar a estrutura das tragédias Édipo Rei e Antígona, escritas por Sófocles, observou a importância da intervenção de Tirésias para o estabelecimento do ritmo das duas partes ligadas por ela, que corresponderia justamente a uma interrupção anti-rítmica por ele denominada cesura, alargando um conceito restrito à versificação, ao observar a sua importância como um marcador do andamento rítmico da tragédia grega.
Com isso, na consecução rítmica das representações em que o transporte [grifo do autor] se apresenta, torna-se necessário o que na métrica se chama cesura [grifo do autor], a palavra pura, a interrupção anti-rítmica, a fim de ir ao encontro da mudança torrencial [reissend] das representações, em seu ápice [Summum], de tal maneira que então apareça não mais a alternância das representações, mas a própria representação. (HÖLDERLIN: 2004, p. 68-69)


A cesura corresponde a um momento de suspensão, a um hiato no plano das ações e à irrupção da palavra pura, um vazio mediante o qual o sentido da tragédia se torna manifesto e a mímesis se anula pelo desnudamento do processo criativo. A ruptura de Simeona em Matamoros produz o intervalo, a fenda em que a criação se reproduz ao relançar ad infinitum a linguagem no vazio originário, ao enunciar a palavra pura, destituída de apêndices significativos.

No meio da narrativa central do livro, no topo da trajetória da protagonista, a voz de Simeona suspende as ações ao assumir-se como forma reflexiva na qual o texto ficcionaliza seu próprio pensamento. É nessa brecha que os horizontes ganham mobilidade e as margens apagam a fixidez de linhas para desenharem o caráter intercambiante dos territórios. Desaparece, assim, o caminho sobre espaços demarcados, sobre a solidez e fixidez de formas correspondentes a conteúdos. A palavra pura, parada rítmica em que o próprio ritmo é o que vem à tona, anula distinções, limites e propriedades, fundindo na enunciação fluxo, devir e criação. 

Para Hölderlin a cesura na obra trágica pode dar origem a dois ritmos diferentes:
Já que o ritmo das representações é tal que, em uma rapidez excêntrica, as primeiras são mais arrastadas pelas seguintes, então a cesura, ou interrupção antirrítmica, precisa ficar para a frente, de modo que a primeira metade esteja como que protegida contra a segunda, o equilíbrio, exatamente porque a segunda metade é originalmente mais rápida e parece pesar mais, pende mais de trás para o início, por causa do efeito contrário que a cesura tem. Se o ritmo das representações é tal que as seguinte são mais pressionadas pelas iniciais, a cesura, então, se encontrará mais para o fim, porque é o fim que precisa ser como que protegido do começo, e por conseguinte o equilíbrio penderá mais para o fim, porque a primeira metade se estende mais, de forma que o equilíbrio só surge mais tarde. (HÖLDERLIN: 2008, p. 69)

Para o autor de A morte de Empédocles, a primeira possibilidade é exemplificada pela fala de Tirésias em Édipo Rei, de Sófocles, inserida após a primeira intervenção do coro e que sintetiza a tragédia, expondo seu núcleo: o assassinato do pai, a relação incestuosa com a mãe, a cegueira e o banimento do herói (Sófocles: 1980, p. 72-81); o segundo caso tem sua melhor realização na fala de Tirésias em outra tragédia de Sófocles, Antígona. A protagonista é presa por Creonte ao providenciar um túmulo para Polinice, seu irmão, insepulto por determinação real. A fala de Tirésias (Sófocles: s/d, p. 99-102), todavia, não surte efeito, logo após a sua inserção se dá o desfecho da tragédia: o arrependimento de Creonte não evita o suicídio de seu filho, Hémon, e de sua esposa, Eurídice, além da morte de Antígona.

Em Matamoros aparentemente a inclusão de Simeona ocorre no meio da narrativa, fugindo assim à distinção hölderliana, toda ela baseada na criação de um mecanismo regulador do equilíbrio entre as ações, instrumento dispensável em qualquer outro texto em que haja ação trágica. 

A posição de Simeona, no entanto, é deslocada pela constatação de que o epílogo da ação dramática acontece sob a forma de elipse em Matamoros, por já ter sido antecipada na narrativa anterior, na qual a filha de Haiága aparece como habitante da casa dos velhos no tempo em que nela ainda existia a morte. O seu fim, no mesmo espaço em que Tadeu circula, é a concretização da profecia de Simeona, portanto trata-se do desfecho trágico da segunda narrativa. O caráter trágico de que se reveste o suicídio de Matamoros, predeterminado de antemão pela realidade ilusória de seu caminho irrealizável, não encerra totalmente a narrrativa, que permanece aberta no destino ignorado de Haiága e seu filho e no depósito de segredos da casa dos velhos: “não nos basta o segredo que temos no porão? e tudo isso da Matamoros foi nos tempos antigos” (HILST: 2004, p. 50). 

Desse modo, ao remeter o final para outro texto, amplificando o tema da criação e permitindo a transformação do fim em seu próprio começo, pois é ao ouvir o relato sobre a morte de Matamoros que Tadeu transforma-se em Tadeus, afirma-se o inacabamento da obra, a sua filiação ao aberto. Esse final que se prolonga ao encaixar-se em outra narrativa é o que permite constatar que a cesura assemelha-se à da interrupção anti-rítmica em Édipo Rei, de acordo com a visão de Hölderlin. 

Vale observar que o caráter narrativo do texto não invalida a observação do fato de que, em sua constituição, invade e apropria-se de procedimentos pertencentes a gêneros literários distintos. É próprio da natureza hilstiana a incorporação de elementos díspares, oriundos de multiplicidade genérica e das mais diversas formas, literárias ou não. Os textos da prosa hilstina desregulam os marcos fronteiriços, fazem contrabando genérico, pervertem divisões canônicas e instituem uma babel de formas por trás da qual é possível enxergar muitas vezes, como ocorre em Não te moves de ti, a sobrevivência da forma do romance. 

A incorporação de marcas do trágico em Matamoros surpreendentemente não resulta da sobrevivência de componentes dramáticos da peça O visitante, muito mais próxima a uma alegoria moralizantte do que de qualquer semelhança com as formas da tragédia. É antes um movimento deliberado de dar ressonância universal ao tema de que trata: a aliança entre criação e negação no gesto originário da arte.


O outro lado da fantasia


A morte de Matamoros, suprimida na história homônima, é lembrada por Extenso, personagem da casa dos velhos da primeira narrativa: “verdade é que apunhalou-se, enterrou no meio das pernas aquela faca” (HILST: 2004, p. 50). Morte impregnada de profundo simbolismo, o que se mata excede o corpo da morta, volta-se para a própria criação. A faca introduzida no espaço corporal destinado a gerar vida expressa uma negação completa da existência. Falo negativo, simboliza a revolta contra a fertilidade da outra, a própria mãe. Mata-se por contraste, mata a falta na tentativa de que o sangue contamine e apodreça uma felicidade que vampiriza o seu sonho, que destrua a aliança de fraude e furto na plenitude amorosa de Haiága e Meu. Mata-se, também, o desenho da fantasia como dimensão de um estado ideal de felicidade, pois o gesto da facada uterina é a supressão de Meu personagem e de meu como referência a um projeto de individualidade, mata-se de modo mais intenso assim, regredindo-se ao lugar do nascimento para anulá-lo e fazer evanescer a vida como possessão de si mesmo. A morte pelas próprias mãos é o processo de purificação da falta trágica, representa a volta aos limites rompidos pela desmesura.

Fim e começo embaralham-se no estranho território da casa dos velhos, pois é sob a sombra das palavras que exibem a memória do sangue de Matamoros que Tadeu, o homem bifronte da estória homônima, atravessa a fronteira entre as duas narrativas:


Diálogo fervilhante o que eu ouvia, rumorejo casto e de repente passional artéria, as rolas de luto, o sangue de alguém se fazendo em dimensão alheia, Matamoros se recompondo na visão de outro, de mim, Tadeu, o fundo ouvido sugando o incompossível ruído que faria o punhal cravado onde? (HILST: 2004, p. 51)

Percebe-se, assim, que a casa dos velhos corresponde a um espaço de extrema riqueza para a compreensão de Tu não te moves de ti. A tríplice narrativa parece conter uma dimensão móvel, modificando o caminho da leitura pelo jogo de relações entre as suas partes. A história de Matamoros instala-se topicamente no espaço indeterminado dessa casa misteriosa: “não nos basta o segredo que temos no porão? e tudo isso da Matamoros foi nos tempos antigos quando aqui se morria” (HILST: 2004, p. 50). 

Também Axerold, o protagonista da última narrativa, faz uma viagem de regresso ao território da infância: “movo-me imóvel em direção à aldeia onde nasci, o existir de Hiaága minha tia, com seus cactus cizais, seu cogito arrumado de duros verdolengos, (...)” (HILST: 2004, 134). Cruzam-se, portanto, no terreno do indizível Tadeu, Matamorros e Axerold, criaturas constituídas da matéria informe com a qual se produz as narrativas.

A casa dos velhos revela-se um núcleo proliferador de histórias, nela cruzam-se fronteiras diversas, a estranheza de sua dimensão tópica corresponde ao ato de resguardo da indecibilidade da obra, a opacidade de seu terreno é a intraduzibilidade da criação a um discurso normativo e iluminador de seus caminhos. 

As palavras sibilinas da vidente constroem um sentido oculto para o enigmático Meu, ao mesmo tempo em que demarcam o relato de Matamoros como um diálogo negativo com a historia anterior. A relação antinômica entre razão e fantasia adquire nitidez no corpo do texto.


O lugar da poesia, ao contrário do que fazia parecer a primeira novela, já não é a alegria ou o transporte amoroso, mas o terror e a piedade trágicos, combinados ou submetidos à idéia cristã dolorosa da expiação, pois, no clima de suspeitas e acusações que se cria, alguém deve ser culpado pelo paraíso perdido. Meu, espécie de emanação poética ou pura idéia do ex-empresário Tadeu, é incapaz de sustentar o sublime a que aspira, ao menos enquanto felicidade ou êxtase: a simples aspiração, suposta na poesia ou no desejo, basta para a instauração do terror e da miséria no cerne da existência. (PÉCORA, 2007, p. 7)

As palavras da adivinha reforçam a impressão inicial de Matamoros sobre Meu: “era como se fosse o reverso do belo sem deixar de sê-lo” (HILST: 2004, p. 66) O que surge do outro lado de Tadeu é algo que não possui vida em si, é projeção da vida de um outro, revestida de fulgurante beleza, cuja luz e deslumbramento correspondem à fuga a uma existência marcada pela penumbra, pela falsificação e pelo vazio. De acordo com Simeona, Meu corresponde também a um sonho de Matamoros, do qual ela deve acordar a fim de evitar consequências nefastas, pois a casa da aldeia onde a tragédia arma o seu palco já foi localizada: “ai, Maria, penso que é tua a casa onde sangue se via, mulher e cadela há de morrer e parir”. (HILST: 2004, p. 91)

Por igualar-se verdade à loucura na fala de Simeona, as advertências não podem alterar o rumo dos acontecimentos. Matamoros, ao atribuir às palavras da vidente um tom carregado de exagero, passa a sentir uma espécie de alívio. Fascinada pela força de uma paixão que nega, em sua realidade carnal, todo o discurso de Simeona, afasta do horizonte a idéia de habitar uma dimensão onírica, além de se livrar das suspeitas sobre a figura materna, lembrando o fato de a bruxa não mencionar o nome de Haiága uma só vez.

Embora a protagonista revele a constância, em noites de carência, de um sonho no qual construía, a partir de uma ideia confusa, de modo lento e incompleto, um rosto que a amasse, acrescentando-lhe um corpo, acredita na impossibilidade de Meu ser fruto desse mecanismo, atribuindo-o a um presente de Deus, na verdade, dádiva e castigo, uma vez que tanto promove o êxtase quanto o desespero: “Tão separada me vejo do Divino, tão separada porque se fosse bondoso o lá de cima sei que não me daria contento e espinho” (HILST: 2004, 103).

De volta a casa, consolada pela mãe do sofrimento provocado pelo encontro com a feiticeira e com duas irmãs – Biona e Rufina de Deus – que a insultaram no meio do caminho, lançando-lhe acusações sobre sua anterior promiscuidade sexual, não pode deixar de ser novamente assaltada por toda carga de suspeita ao ouvir as palavras carregadas de ambiguidade com que Haiága faz referência à relação entre as duas e Meu: “é homem desta casa, Maria, e só há de pertencer a nós duas, fez uma pausa, riu, e antes que eu pudesse dizer mãe, é homem meu, me disse branda: o homem de minha filha é filho meu.” (HILTS: 2004, p. 106) Entre a pausa e a explicação guarda-se a ideia de posse compartilhada, de usufruto carnal, de um corpo repartido clandestinamente pela voracidade de duas mulheres unidas por laços refratários a essa comunhão sexual.

O caráter ambíguo desborda do campo das palavras para tingir de suspeitas as atitudes de Haiága. Mais do que intenções maternais, o ato de preparar uma refeição especial para Meu, a graça e a novidade do arranjo dos pratos, tudo contribui para dar ressonâncias maldosas à justificativa ao pedido feito para que Matamoros assumisse à responsabilidade pela obra: “Porque ao homem lhe apetece comer o que faz a própria mulher” (HILST: 2004, p. 106).

A progressiva usurpação de funções pertinentes à filha, como o cuidado em acordar cedo para cuidar de Meu e o capricho no preparo de uma refeição especial para ele, um cordeiro ornamentado com flores, assume a máxima intensidade por intermédio da surpreendente confissão de Haiága: “à espera de um filho, minha filha, essa é a novidade” (HILST: 2004, p. 107).

A maldição de Simeona ecoa no espírito de Matamoros, não mais contida em surda revolta contra a mãe, a mulher-cadela, a prostitutíssima, a velha puta de seus pensamentos, ela avança sobre a mãe que se defende com uso de estranho e ambíguo argumento:


nunca toquei o homem e se estou cheia não foi homem de carne, foi desejo obrado do divino, juro-te que não toquei e grito como se o próprio encantado te gritasse, estufa-se no milagre minha velha barriga, estufam-se os peitos de leite, estou cheia mas limpa, homem nenhum a não ser aquele que te colocou em mim. (HILST: 2004, p. 108)


Surpreendentemente, Matamoros acredita no que ouve, atribuindo o estado da mãe à uma doença advinda da solidão causada pela perda da filha para um estranho, comparando o seu sofrimento de Córdula, uma velha cadela que sofria de falsa gravidez. Na comparação sobrevive a homologia entre Haiága e cadela contida na previsão de Simeona, a ironia evidente não é devida à narradora, antes pode ser registrada como uma interferência do autor implícito. Parece esquecer diversas observações feitas anteriormente por ela e pelas mulheres da aldeia sobre as alterações físicas sofridas pelo corpo de Haiága, como a intumescência dos seios e o crescimento da barriga, além de deixar passar em branco a cruel possibilidade de leitura do final da fala como confissão cifrada da origem incestuosa da protagonista, sobre quem não existe nenhuma menção explícita à figura paterna no texto. 

A filha recolhe momentaneamente a rede envenenada de palavras de dor e ressentimento. Num acesso de riso, chega a se imaginar feliz ao encontrar em Haiága semelhança com a mãe de Jesus. O dúbio desejo materno de ter um filho concebido a semelhança de Meu, vontade que tanto pode ser expressão de admiração quanto confissão de paternidade, desperta tímida reação de Matamoros, neutralizada por alegada intenção protetora da mãe, preocupada em livrar a filha de um ato que, de tão doloroso, só deveria ser apropriado à madurez, numa aproximação entre gravidez e morte.

É de Haiága toda a iniciativa. Incumbe a filha de revelar a notícia da gravidez a Meu, ato mais próximo a um gesto dissimulado do que resultado de uma natural timidez. Combina encobrir a origem dos ferimentos causados pela filha, para isso monta , com a aquiescência da protagonista, a versão de um acidente com os limoeiros. Exige ainda a manutenção de completo sigilo: “que mais ninguém nesta aldeia deste meu novo estado tome conhecimento, dois meses antes do filho nascer vou a casa de nossa prima Heredera” (HILST: 2004, p. 112). Na interdição prescrita, gravidez e ato proibido misturam as suas linhas, pois a novidade deve ser escondida de todos, como se fosse um delito ou um pecado. A referência a casa de Heredera remete a aldeia de Matamoros ao mesmo território da casa dos velhos em Tadeu. 

Incumbida de dar a notícia a Meu, Matamoros estranha a reação do cônjuge à notícia da gravidez de Haiága. O homem-anjo tomou-a de modo mecânico, possuindo-a de maneira tão diferente da habitual, sem carícias, sem entrega, escondendo o rosto em sua nuca para que ela não o visse, após sussurrar-lhe para esquecer as fantasias maternas, pois é da natureza das mães sonhar muitas loucuras. A estranheza do ato amoroso leva Matamoros a chamá-lo pela primeira e única vez de Tadeus. 

A sugestão de incesto retorna ao final da narrativa, numa aceitação aparente do triângulo amoroso promovida pelo estado de embriaguez em que Matamoros imerge. Ela, ao escutar o canto afinado de Meu e Haiága e, ao perceber tanta afinação, tanto entendimento, pode declarar uma verdade-invento: “desses dois à minha frente gorgeando vi-me filha, Matamoros Maria, filha de Haiága e de Meu, deita-se Maria com o pai que ao mesmo tempo é de Haiága marido-rei” (HILST: 2004, p. 122-23).

Entre Tadeu e Matamoros ocorre um jogo de criação e recriação. Se a protagonista-narradora concretiza a vontade de potência anulada na história inicial, pela inserção de Tadeu em um real que se dá como simulacro, num viver anêmico e protocolar, pode realizá-lo na irrealidade que não significa a existência do não-real, mas a indistinção entre sonho e verdade: Tadeus.

Referências

BAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
AGAMBEM, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad.
Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire: essai sur la mise en abyme. Paris:
Editions du Seuil, 1977.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética: a ideia e o ideal: Estética: o belo
artístico ou o ideal. Trad. Orlando Vitorino. 5ª. ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1991.
HILST, Hilda. Tu não te moves de ti. São Paulo: Globo, 2004.
_____. Teatro completo. São Paulo: Globo, 2008.
_____. O caderno rosa de Lori Lamby. 2ª. ed. São Paulo: Globo, 2005.
HÖLDERLIN, Friedrich. Observações sobre Édipo; Observações sobre Antígona.
Tradução Anna Luiza Andrade Coli et alii. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008.
PALLOTTINI, Renata. “Posfácio”. In HILST, Hilda. Teatro completo. São Paulo:
Globo, 2008.
PÉCORA, Alcir. Hilda Hilst: call for papers. Disponível em http : // www.
germinaliteratura.com.br/enc_ago5.htm. Acesso em: 26 fev. 2007.
SOUZA, Raquel Cristina de Souza. “ ‘O visitante’ revisitado: exercícios autotextuais
em Hilda Hilst”. In: Diadorim: Revista de Estudos Linguísticas e Literários, n° 1,
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006

* Trabalho publicado na revista Garrafa nº 20, jan.-abr./2010, do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ (http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/index_revistagarrafa.htm)


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Vozes textuais em Estar sendo. Ter sido *



Estar sendo. Ter sido, livro publicado em 1997, pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências; uma espécie de narrativa caótica se confrontado com o padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikós, de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, nos dejetos do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, excluídas não por carência, mas por abundância (Baudrillard: 2001). A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem céu, do mal-estar da existência, da privação, cujo maior símbolo é a presença de um deus ausente.

A expulsão em direção ao vazio, ao nada, provoca o surgimento de uma linguagem dotada de violência inigualável, proporcionalmente alimentada pela intensidade da ausência de respostas e instauradora de um texto construído com o alfabeto da transgressão, à semelhança de um verdadeiro terremoto lingüístico.

Vera Queiroz, uma de suas mais capacitadas leitoras, soube sintetizar com muita propriedade os traços da narrativa de Hilda Hilst:
A transgressão de que se reveste o discurso literário de HH pertence a uma natureza cuja matéria é a opacidade, cuja forma é a repulsão e cuja metáfora pode ser a de uma dura pedra − o diamante, por exemplo. Ela se constitui, primeiro, numa transgressão da ordem temática, na medida em que a pudicícia no tratamento do tema amoroso, da sexualidade ou do erotismo está longe de habitar seus textos. [...] O amor é flagrado, sobretudo em seus vários estados de decomposição, arrastando consigo uma linguagem ao mesmo tempo sublime e chula, com altos vôos líricos e vocábulos de baixo calão. Isso se dá em razão de que as tramas hilstianas organizam-se em torno de estados agônicos de ser dos personagens, mobilizados por situações apresentadas já em seu clímax, de modo que o leitor é convocado desde o início a partilhar sem escolha, da vertiginosa voragem de questões postas em geral ao ser catalisador dos abismos − Deus, cujos nomes desdobram-se em dezenas de outros, por processos também eles múltiplos − metáforas, metonímias e perífrases configuram aqui estratégias de cerco ao nome e à coisa, e também ao leitor, por elas capturado. Nesse sentido, a literatura de Hilst vige à beira de, é projetada no leitor em um estado de sítio constante, em função das excruciantes demandas pelo inominável – o sentido da vida, as formas do amor, a fatalidade do tempo. Tais os grandes enigmas e os abismos metafísicos que engendram os personagens dessa obra única, e que os obsedam. (2000: 19-20)

As características até aqui apontadas, no entanto, só podem ser melhor aferidas através da observação da pluralidade de vozes que formam aquilo que a própria autora, ao referir-se à sua obra, denominou umasómúltiplamatéria (Hilst: 1997, p. 72).

A voz babélica

Estar sendo. Ter sido começa com uma estrutura dialógica da qual participam Vittorio, o narrador, e Júnior, seu filho. Esta seqüência narrativa é pontuada por uma constelação de memórias, devaneios, visões e referências a Deus, que apartam inúmeras vezes Vittorio dos diálogos, imergindo-o, mediante o processo do fluxo de consciência, em um cerrado subjetivismo.

Além da inclusão de versos em português, espanhol e italiano, incorpora-se ao texto um roteiro cinematográfico inserido de modo a causar ambigüidade, característica associada ao longo do livro à irreverência, à ironia e ao absurdo hilstianos.

O caráter ambíguo, em torno do qual se erguem os jogos polissêmicos presentes na obra, a exemplo da cômica duplicidade de sentidos atribuídos ao termo galinha nas páginas iniciais, provoca tal estranheza que Vittorio – narrador do roteiro – é afastado do texto, através da encenação de um suicídio, para que Vittorio – narrador-máscara-pricipal – recupere o domínio sobre a enunciação.

No texto de Hilda podemos observar a perícia no uso da forma do roteiro no interior de outra estrutura narrativa e a obtenção do máximo aproveitamento de tal recurso, jogando com os limites textuais, como pode ser constatado no pequeno trecho onde tal fronteira é atravessada:
era engraçada. mas pra quê você quer uma mulher engraçada? há névoas dentro de mim,
Matias. ah, pára com isso, que névoa? não começa de novo, é aquilo outra vez? é isso ó.
(tira rapidamente o revólver da cintura e dá um tiro na têmpora).

(eu poderia ter escrito tudo isso e agora dava um tiro na têmpora. mas não o fiz. então
tenho que continuar, dizendo é isso ó)

mas que estranho! ele não tinha que matar a mulher? pois é, mas matou-se. (p. 18)

Anulam-se as distinções entre linguagem narrativa, poética e teatral. Repleto de dramaticidade, de comicidade cruel ou dotado de formas dialógicas apropriadas à narrativa, o texto se vale ora de marcações teatrais, mediante o uso do nome de personagens à frente de suas falas, ora obriga o leitor ao máximo de atenção ao subtrair as marcações textuais dos diálogos. Isso quando não se volta para a produção de um texto que é uma fala direta e aberta ao leitor-platéia. Os exemplos espalham-se desde a cena inicial (um diálogo entre pai e filho) até quase ao final do livro:
Júnior: e o que é?
Matias: o mesmo que “urquel”
Júnior: e o que é?
Matias: porra
Júnior: porra digo eu, o que é afinal?
Matias: legítimo, verdadeiro, isso é o que é, que a bebida é autêntica (p. 25)

O narrador também apresenta falas organizadas em parágrafos distintos para cada personagem ao lado de parágrafos inteiros nos quais não há qualquer preocupação em distinguir os enunciados dos personagens e os pensamentos do narrador.

O caráter teatral aparece de modo explícito na cena de uma comicidade grotesca apresentada nas páginas 28 e 29. Nela diversos indivíduos reagem de maneira diferente diante da visão de uma velha caída ao chão e com um objeto introduzido na boca. O humor negro, formado pelas várias interpretações dadas ao objeto – pau, picanha, peixe, cobra –, desarma-se com o final inusitado: a velha levanta-se e revela ter se engasgado com uma banana.

A cena surge no meio de um texto sem nenhuma preocupação em alinhavar uma história. Não há conexões. A leitura se institui pela justaposição de gêneros e pelo ritmo intenso, à beira de um delírio verborrágico, alimentado pela disjunção e pela desconexão.

Da galeria genérica hilstiana constam também alguns conselhos de suicídio, como este, redigido com fina ironia: “38. tiro na têmpora. Cabo de madrepérola. Última e brilhosa visão estética. Atenção: não tremer. Os que têm Parkinson evitem essa última solução. Eu não tenho Parkinson. Tremo, mas raramente” (p. 35). Em outro momento, o aconselhamento reveste-se de dissimulada linguagem científica:
VESPERAX (secobarbital, efeito rápido; bralobarbital, efeito médio). dosagem: cerca de 3g (Centro de Informação em Favor da Eutanásia Voluntária, Holanda), ou seja, 30 comprimidos de 100 mg de secobarbital. esta dose corresponde a 3 g de secobarbital associados a 1 g de bralobarbital. provoca sonolência em 15 a 60 minutos e a morte em 48 horas. (p. 51)

O narrador recorre apenas uma vez à introdução de um desenho (p. 39), destinado a tornar mais fácil a compreensão da perfeição que atribui à hora da morte, durante a qual tudo é redondo e completo, características visualizadas na figura de um octaedro dentro de um círculo.

As receitas de drinques (alcudia, Black Russian, negrone) surgem soltas e esparsas na narrativa, dando continuidade a um processo já utilizado em livros anteriores de Hilda Hilst. Parecem contribuir para criar um grau de indeterminação sobre os acontecimentos e para distanciar a realidade material na qual Vittorio está situado dos verdadeiros surtos de esquizofrenia sofridos por ele. Entre etílico, lúcido e onírico, Vittorio tenta efetuar o percurso temporal que dá nome ao livro, porém tal trajetória é marcada pelo desequilíbrio, pela imprecisão, pela incerteza.

A narrativa epistolar inscreve-se também no quadro dos recursos genéricos hilstianos reunidos em em Estar sendo. Ter sido, onde aparece de modo mais significativo na passagem denominada “Carta de Dom Deo” (p. 75-76), endereçada a Vittorio por um antigo amigo agora no exercício de funções episcopais. Em outros momentos, as cartas são incorporadas à narrativa diretamente ou de modo alusivo, a exemplo da correspondência trocada entre o narrador e Hermínia (p. 20), das cartas enviadas por Karl (p. 48) ou de bilhete escrito por Lucina (p. 50).

Quase ao final do livro, o leitor é surpreendido com o primeiro conto produzido por Junior (pp. 107-108). Uma curtíssima história, bem ao estilo de Hilda Hilst, marcada pela linguagem pesada e por uma moralidade de perversão, representada pela reflexão antitética entre a vida e a beleza, de um lado, e a morte e a destruição, de outro lado.

De todos os recursos empregados pelo narrador, no entanto, a poesia parece ser a forma usada de modo mais intenso e sistemático para marcar o caráter híbrido do texto, num visível trabalho deliberado de minar as concepções genéricas usuais e dar ao livro a consistência de obra de arte fechada na qualidade da linguagem, mas aberta em relação ao aspecto formal.

A respeito da característica multigenérica da obra em questão, Alcir Pécora oferece uma observação preciosa. Apesar de ter sido elaborada com referência a outra obra da escritora, Contos d’escárnio: textos grotescos, as afirmações do ensaísta podem ser estendidas ao conjunto das narrativas da autora:
há uma verdadeira anarquia de gêneros em sua disposição discursiva que desordena completamente a narrativa: romance memorialístico, diálogos soltos intercalados abruptamente à história; imitação de certames poéticos à antiga; apóstrofes aos leitores, maltratados o tempo todo como ignorantões e picaretas, bem como aos órgãos sexuais; contos e minicontos das personagens; alusões políticas; comentários etimológicos e eruditos; crítica literária (a ressaltar-se o ataque mortal a João Cabral, cuja obsessão de uma poética do rigor é traduzida como seqüela de machismo nordestino); mistura babélica de línguas; coletâneas de instruções inúteis para performances estúpidas; paródias de textos didáticos; textos dramáticos politicamente incorretíssimos, que fazem completamente jus ao título de teatro repulsivo; fábulas e piadas obscenas; fragmentos de novela epistolar; excertos filosóficos; textos psicografados postumamente etc. − tudo isto em sucessão acelerada, despenhando precipícios e vertigens. (Pécora: 2002, 5-6)

Isso comprova ser a proliferação genérica fundamental à constituição da narrativa hilstiana. Assim, não causa nenhuma estranheza buscar similaridade com romances considerados pós-modernos, que à semelhança da teoria literária contemporânea, também questionam
toda aquela série de conceitos inter-relacionados que acabaram se associando ao que chamamos, por conveniência, de humanismo liberal: autonomia, transcendência, certeza, autoridade, unidade, totalização, sistema, universalização, centro, continuidade, teleologia, fechamento, hierarquia, homogeneidade, exclusividade, origem. (Hutcheon: 1991, 84)

A narrativa experimental hilstiana tanto participa da linha de frente da experimentação e pesquisa de linguagem, quanto se articula com formas, recursos e processos legados pela tradição, gerando um movimento pendular que imprime uma feição particular, singularizando o seu experimentalismo ao afastá-lo daquele praticado por outras correntes literárias brasileiras e ajudando a ver nessa dupla articulação, claramente assumida pela autora, uma das razões do seu isolamento. Em Hilda Hilst, a literatura nunca é um experimento cerebral, uma arquitetura textual provocada pela necessidade de alcançar a fórceps uma nova expressão. Nela o experimento é algo visceral, fundo, intenso, não é um simulacro, mas a existência que se escreve como experiência radical.

O híbrido não é uma criação pós-modernista, acha-se incrustado no universo estético desde praticamente as origens das civilizações. O hibridismo assume uma conformação pós-moderna ao tornar-se uma prática de uso sistemático num quadro de esvaziamento de transformações literárias mais substanciais, o que faz os autores recorrerem ao vasto repertório da tradição literária na montagem de mosaicos e inventários genéricos para caracterizarem um ritmo voraz, uma múltipla temporalidade e um universo esvaziado de referências sólidas e estáveis.

Ainda que dentro de um quadro teórico delimitado pelo mapeamento da constituição do romance como gênero literário, em Mikhail Bakhtin pode ser observado como a Antigüidade já operava a fusão de gêneros em narrativas artísticas. Dentre as quatorze características atribuídas por este estudioso à sátira menipéia, algumas são particularmente relevantes:
8. Na menipéia aparece pela primeira vez também aquilo a que podemos chamar experimentação moral e psicológica, ou seja, a representação de inusitados estados psicológico-morais anormais do homem – toda espécie de loucura (“temática maníaca”), da dupla personalidade, do devaneio incontido, de sonhos extraordinários, de paixões limítrofes com a loucura, de suicídios, etc.
9. São muito características da menipéia as cenas de escândalos, de comportamento
excêntrico, de discursos e declarações inoportunas, ou seja, as diversas violações da marcha universalmente aceita e comum dos acontecimentos, das normas comportamentais estabelecidas e da etiqueta, incluindo-se também as violações do discurso.
10. A menipéia gosta de jogar com passagens e mudanças bruscas, o alto e o baixo, ascensões e decadências, aproximações inesperadas do distante e separado, com toda sorte de casamentos desiguais.
(...)
12. A menipéia se caracteriza por um amplo emprego dos gêneros intercalados: as novelas, as cartas, discursos oratórios, simpósios, etc., e pela fusão dos discursos da prosa e do verso. (Bakhtin: 1981, 100-101)

Algumas das características que constituíam, segundo Bakhtin, o campo do cômico-sério também são fundamentais à narrativa hilstiana. Parece existir, apesar da diferença de contexto e de emprego dos recursos estéticos, um nexo capaz de permitir estabelecer uma relação para o surgimento de características comuns a épocas tão distintas: a escrita multigenérica surge em tempos de crise, assinalados por eclosão de rupturas violentas, de processos que subvertem os paradigmas, pulverizando-os, esfacelando hierarquias genéricas, e, dessa maneira, pode ser entendida como expressão de um mundo em ruínas.

Ao mencionar as três raízes do gênero romanesco – a épica, a retórica e a carnavalesca – Bakhtin afirma que os gêneros do cômico-sério
renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à unicidade estilística) da epopéia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica. Caracterizam-se pela politonalidade da narrração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas , manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados, citações recriadas em paródia, etc. Em alguns deles, observa-se a fusão do discurso da prosa e do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos (e até o bilingüismo direto na etapa romana), surgem diferentes disfarces de autor. (1981, 93)

No conjunto da obra de Hilda Hilst encontramos estados psicológicos extremos do indivíduo, a tematização de diversas formas de loucura e de suicídio, comportamentos excêntricos, violações de toda natureza, escândalos, mudanças abruptas no fluxo da narrativa, aproximações antitéticas surpreendentes, sonoridades estrangeiras, fusão de prosa e poesia, entre outras características apontadas por Bakhtin.

Comprova-se, assim, que relacionar o hibridismo ao pós-modernismo, sem a necessária contextualização, pode levar à impressão de que tal característica tenha sido criada na literatura tão-somente a partir das décadas finais do século passado.

Por outro lado, é necessário refletir se vale a pena cair na tentação sedutora de tomar a complexidade genérica da narrativa hilstiana como justificativa para aderir ao processo burocrático de rotulação, enquadramento e classificação de obras literárias em determinados escaninhos críticos e apreendê-la como uma representação estética do Pós-Modernismo.

A tentação pode ser evitada se for levada em consideração a precariedade crítica do próprio conceito de Pós-Modernismo, fato que, apesar de não anular aquilo que já foi conquistado nesse terreno, serve para apontar para a insuficiência de instrumentos avaliativos capazes de clarificar a leitura do livro dentro desse campo conceitual.

A recusa à classificação de obra pós-modernista ganha ainda mais força com a observação do intenso diálogo hilstiano com um conjunto imenso e expressivo da cultura em geral: seja brasileira, clássica, romântica, oriental ou contemporânea. Uma das marcas hilstianas é justamente a dialogia cultural enciclopédica.

As questões suscitadas pelos estudos genéricos não podem ser resolvidas apenas no âmbito de uma determinada concepção, seja ela sociológica, histórica ou imanentista, por mais fecunda que seja (Soares: 2004). Do corpus teórico sobre os gêneros, da Poética aristotélica, centrada na tragédia, até concepções idealizadas staigerianas; dos formalistas russos à estética da recepção; da perspectiva romântica a Croce; de Bakthin a Barthes; de E. M. Forster a Northrop Frye – nunca foi possível a formulação de territórios fixos, províncias textuais com características autônomas, a não ser nos exercícios de má literatura. As fronteiras genéricas parecem ter se constituído historicamente como realidades dotadas de fluidez e mobilidade. É o que se depreende da visão de Luiz Costa Lima em ensaio sobre o tema:
Em vez, portanto, de tomar-se o gênero como uma entidade fechada, i. e., com um número determinado de traços, de que se pode ter consciência e a partir dos quais são possíveis julgamentos de valor, o gênero apresenta uma junção instável de marcas, nunca plenamente conscientes, que orientam a leitura e a produção – sem que, entretanto, se presuma que as marcas orientadoras sejam as mesmas. É pela impossibilidade de se definirem exaustivamente os traços constitutivos de um gênero que Coseriu o toma como análogo das línguas naturais: “a uma observação mais detalhada, os chamados gêneros literários aparecem como análogos às línguas históricas. [...] é propriamente impossível definir o romance, a tragédia como classes. Pode-se apenas descrever historicamente um certo romance, uma certa tragédia e pesquisar o seu desenvolvimento histórico. O mesmo vale para as línguas históricas”. (Lima: 2002, 286)

De tudo, no entanto, o fator mais relevante é a constatação de que Hilda Hilst jamais buscou construir uma escrita cerebral, vanguardista, “novidadeira”, elaborada para impressionar pela excentricidade. Nela, à questão formal nunca pode ser atribuída posição central, da qual todas as outras sejam meras projeções. Sua obra não responde a qualquer apelo de simples atualização estilística, com raízes fincadas fora da necessidade intrínseca da criação. Não é uma idéia a ser preenchida por palavras.

O fundamental na narrativa é que aquilo que nela existe de experimental é fruto de uma experiência, corresponde a um processo interno e vital de luta por identidade e busca de uma voz. Não há limites delineados com nitidez entre forma, linguagem, conteúdo, narrador, personagem. O fluxo hilstiano é a expressão de um pensamento que voa em busca de saídas em um espaço totalmente fechado. Assume a forma de um texto agônico tensionado contra o cerco e o insulamento, considerados como o estado de existência do ser humano em ruínas, de cuja perda e irremediável solidão brotam os fios de uma escrita insurrecional construída como um desafio à morte.

Antinarrador
Segundo Adorno (2003, 55-63), a posição do narrador perdeu o equilíbrio e a importância do período de hegemonia daquilo que denominou de literatura realista e acabou por assumir a conformação de verdadeiro paradoxo, pois se a forma do romance traz consigo a exigência de narração, não existe mais a possibilidade de se narrar alguma coisa.

No mesmo ensaio, o pensador alemão afirma que nenhuma obra de arte contemporânea que possua qualidade estética pode fugir à influência do prazer da dissonância e do abandono.

A impossibilidade de narrar é associada por ele a um impedimento estabelecido pelo mundo administrado, pela estandartização do pensamento e da linguagem, pela mesmice, com os quais a arte só pode entronizar o engodo no lugar do real. Portanto, para serem fiéis à verdadeira herança realista, os romancistas precisam renunciar a qualquer veleidade de realismo.

Ao perder o domínio sobre amplas áreas da linguagem, subtraídas à sua influência pelo desenvolvimento do texto jornalístico, da indústria cultural, do cinema (na atualidade, para os múltiplos campos midiáticos), a narrativa desenvolveu um movimento interno de insurgência contra o realismo, revolta da qual a própria linguagem não pôde escapar, uma vez que o discurso esvaziado pelo poder através do automatismo e da manipulação tornou-se um núcleo gerador de formas falsas, simulacros, máscaras com as quais se perpetua a tradição e a própria criação se anula. Por esse caminho, a produção em série, a linha de montagem, os processos de acumulação capitalistas contaminaram a estética ao estabelecer caminhos, formas e moldes que lograram sucesso durante determinada época como modelos a serem perpetuados ad infinitum, na contramão do trabalho de criação artística, esse movimento eterno de insaciável pesquisa de novas linguagens. No entanto, a força desse contágio só produziu efeitos sobre a subliteratura, o texto mais mercadológico do que literário. A arte narrativa reagiu mediante um contínuo processo de rupturas que teve em Joyce o autor mais destacado, capaz de articular a rebelião do romance contra o realismo com uma revolta contra a linguagem discursiva.

O trabalho de transformação da estrutura narrativa caracteriza o texto hilstiano em todos os níveis. O real brota da destruição de formas facilitadoras de sua tradução. Não há uma linguagem-espelho, a verossimilhança não é um absoluto, o enredo não é elemento narrativo fundamental, as personagens não são desenvolvidas, o tempo não é demarcado, a linguagem não é canônica. Não há, portanto, ilusão de realidade, o real é a impossibilidade de sua própria tradução.

Em Hilda Hilst há sempre uma exacerbada consciência de deslocamento, de exclusão, um conhecimento de quem habita um não-lugar. Expulsa da utopia (que sobrevive na provocação a um Deus que não responde), sobrevive na escrita inconformista, movida a um desencanto profundo com a sociedade e com a própria existência.

A velhice, a reflexão sobre a morte, a preocupação com as grandes questões do ser e do devir que estruturam Estar sendo. Ter sido permitem dar às palavras de Adorno uma flagrante atualidade:
O impulso característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforço de captar a essência, que por sua vez aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenções sociais. O momento anti-realista do romance moderno, sua dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendência estética reflete-se o desencantamento do mundo. (2003, 58)

Em toda obra de Hilda Hilst sempre surge a reflexão sobre o próprio fazer literário, ao lado de uma verdadeira catilinária contra o mercado editorial brasileiro. Na narrativa se encena o drama de uma obra insulada, cercada por um meio medíocre, dominado por interesses comerciais poderosos. O exercício literário é um enfrentamento aberto, um risco constante em território minado pelo consumismo, pela força da indústria cultural. Em um de seus livros, um dos personagens chega a esmurrar um editor.

A metaficção hilstiana é impregnada pelo desencanto com o mundo mencionado por Adorno:
choro do velho que estou ou que me sinto, choro porque não sei a que vim, porque fiquei enchendo de palavras tantas folhas de papel... para dizer o quê, afinal? do meu medo, um medo semelhante ao medo dos animais escorraçados, e pânico e solidão, e tantas mesas tantos livros tantos objetos... (p. 24)

Desencanto também advindo da consciência do alto valor que a sua obra trazia à literatura contemporânea brasileira, percepção que a levou em diversos momentos a reagir com amargura e sarcasmo, mediante a construção de narradores e de personagens nos quais dissimulava sua revolta contra a incompreensibilidade imputada aos seus textos. A recusa ao estigma de requintada pornógrafa revela a voz de Hilda Hilst sobreposta à de Vittorio na formulação de uma resposta direta ao rótulo que lhe fora atribuído por um conjunto de leitores desatentos: “agora só esperam de mim lubricidade como se eu fosse o dedo, a língua, o porongo, a xiriba da cidade” (p. 32).

A toda hora o narrador recorre à crueldade, seja na apresentação de cenas grotescas, a exemplo daquela em que descreve a relação sádica mantida por um amigo pedófilo com bebês, seja no tratamento insultuoso dado ao filho. Não poupa nem a si mesmo de situações grotescas, a exemplo do trecho em que se imagina numa cadeira de rodas com uma bengala de prata e madrepérola ou quando fica idealizando um monumento em seu túmulo.

A inclusão do discurso teatral à babel discursiva formada pelas narrativas de Hilda Hilst contribui para acentuar a natureza dialógica do texto. Alcir Pécora, ao chamar a atenção para o uso do fluxo de consciência pela autora, desvenda a peculiaridade de sua presença no universo da escritora:
Não se trata, contudo, da forma mais conhecida de fluxo de consciência, na qual a narração ou o enunciado se apresenta como flagrante realista de pensamentos do narrador. O fluxo em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo teatral, sem deixar de se referir sistematicamente ao próprio texto que está sendo produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem e como linguagem sobre linguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente como falas de diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva da narração. Daí a impressão viva de que aquilo que no narrador de Hilda pensa está atuando. E atuando em cena aberta: atuando cara a cara com uma platéia tendenciosa, hostil e predominantemente estúpida. Mais do que a subjetividade ou a psicologia, o que a sua prosa encena como flagrante de interioridade é o drama da posição do narrador face ao que escreve: aquilo que se passa com alguém quando se vê determinado a falar, mais, digamos, por efeito de possessão ou determinação irresistível de certa forma vicária de ser e de viver do que por vontade própria. (2002,4)

O narrador recusa-se deliberadamente a narrar, dissolvendo a narração em micronarrativas ou intercalando-a com textos construídos com uma atmosfera impregnada de enevoamento existencial no qual todas as dicções são possíveis, inclusive a irrupção de matrizes líricas genuínas sob a forma de poemas. Vittorio dispensa a seqüência arrumada de fatos, a exposição linear de acontecimentos, o adensamento psicológico das personagens, opõe-se, programaticamente, a qualquer expectativa de retomada da grande tradição do romance romântico-realista, com começo, meio e fim. Tais características, somadas às propensões ensaísticas e metalingüísticas do livro que ajudam a desregular as suas propriedades narrativas, permitem enxergar a existência não de um narrador, mas a presença da figura de um antinarrador, um enunciador que não cumpre a expectativa gerada no leitor pela enunciação do relato.

Na arquitetura textual do romance, o narrador assume papéis distintos nas duas partes em que a narrativa é dividida. Na primeira parte aparece um escritor, de 65 anos, imerso no álcool e em divagações, morando à beira de uma praia na companhia de cães e gansos, de Júnior, o filho, e do irmão Matias, seu protetor e guia nas coisas práticas, com o qual mantém permanente diálogo ora de natureza circunstancial, ora capaz de causar perplexidade ao irmão, assustando-o pela linguagem, pela complexidade do pensamento ou mesmo pela loucura. Em alguns momentos surge uma expressão comovida dotada de intenso lirismo:
precioso é o que tu és, irmão-colosso, hás de me tomar as mãos quando vier a de passadas largas, a curva, a envesgada, a que vem súbita numa lufada, a pequenina também de dentinhos escuros vestida de negro organdi, a velha-menina com sua guirlanda de ossos: “é hoje, Vittorio! é hoje!” e talvez dance à minha frente um minueto, os cascos em ponta e as toscas castanholas ressoando baças no assoalho da casa. (p. 54)

Já com o filho a conversa sempre assume um tom agressivo, revestido de ironia ou em uma conotação declaradamente insultuosa. Só na segunda parte, após a leitura de um texto de Júnior, o narrador é capaz de evitar a animosidade contra o filho.

Vittorio planejara a própria solidão. Livrara-se da mulher, Hermínia, já com mais de cinqüenta anos, mediante um estratagema que a induziu à união com o jovem e fogoso Alessandro. Para alcançar seu intento o narrador ensinou ao rapaz tudo o que sabia sobre a poesia de Petrarca, considerada por ele infalível para seduzir a alma feminina. A trama de deliberada busca de um espaço individual distanciado de convívio fora do pequeno núcleo familiar − “ainda bem que não há vizinhos” (p. 65) − pode ser entendida como um processo ritualístico de preparação para a morte, do qual, seguramente, as referências a métodos de suicídio oferecem indícios comprobatórios.

A relação entre Vittorio e Lucina só amplia a carga de angústia e desencanto. A mulher revela a impossibilidade de um sentimento autêntico, capaz de retirá-lo da solidão. Lucina-Licina-Juno, corpo fictício de Lâmia, Taís, Messalina ou Frinéia, parece antes uma alucinação do narrador para revelar, na representação da figura de uma mulher-símbolo, os limites do corpo e para denunciar a falsa realização obtida no comércio de prazeres como simulacro de um estado de felicidade.

A segunda parte da narrativa, separada da primeira por um conjunto de poemas, revela que Vittorio entrou em uma crise profunda, razão pela qual teve que ser internado. A parte final possui menor extensão, contudo nela predomina um ritmo mais forte, pois o processo de loucura se acentua, fato percebido por Vittorio:
me vejo negro, artificioso como quem não se vê. a loucura é sépia. ou talvez mais pro ovo. a loucura é algures, não em mim. os corvos naquele céu eram de um outro, minha loucura é rajada, esparzida de cores, loucura é escarcéu, é não, é chumbosa, pesada, o olho do cafre sobre aquela que lhe arranja o dinheiro, é enviesada, esquiva, mas vigilante, o olho do meganha sobre o biltre. é nada, é tímida, medrosa, se acasala nos cantos. (p. 88)

Outra modificação que altera o ritmo narrativo é que a tensão causada pela reflexão-expectativa da morte aflora com maior intensidade. As personagens da primeira parte participam em menor proporção, à exceção de Matias, sempre no exercício das funções de confidente. Surgem o dottore, o barman-mordomo-doutor em filosofia Raimundo e uma velha que cuida do convalescente Vittorio.

Ao final, todas as vozes resssoam como máscaras de um narrador protéico, um antinarrador: “Aqui estou eu. Eu Vittorio, Hillé, Bruma-Apolonio e outros”. (p. 110)

Vozes no espelho

A obra apresenta um enredo rarefeito, ao longo do qual as personagens não adquirem em momento algum consistência, sucedendo-se velozmente como interferências no fluxo narrativo, uma vez que são transformadas em projeções de uma voz obsessiva e obcecada com o seu próprio ser-no-mundo. A proliferação de vozes no lugar marcado para o narrador quebra a expectativa de uma estória a ser lida e impossibilita o adensamento psicológico das personagens.

As faces de Hilda formam “umasómúltiplamatéria”, segundo o verso final do conjunto de poemas com o qual se encerra a primeira parte do livro. Suas personagens são uma só, assim como podemos interpretar toda a sua ficção como um único livro. As personagens que cria são apartadas da realidade, estão afastadas de qualquer possibilidade de autonomia, pois giram em torno das candentes questões apresentadas pelo narrador, são mais caminhos do que seres fictícios; mais formas de uma possessão demoníaca através da qual o narrador extravasa dor, revolta, desamparo, sarcasmo, niilismo, às vezes ternura, compaixão e lirismo. As personagens ainda fornecem, de modo insaciável, a satisfação de todos os desejos e perversões do narrador para o qual, aliás, a perversão também é santidade. Nenhuma personagem tem conforto, segurança, todos são arrastados na torrente de questionamentos infinitos, ligados à vida como se fossem alimentados por fios em curto-circuito.

No livro encontramos Vittorio, o protagonista, já aos sessenta e cinco anos, sempre com um copo em uma das mãos e um livro na outra, à procura de iluminação temporal sobre a sua existência e sobre o envelhecimento. Vale-se da ambigüidade para retratar a velhice como despedaçamento e iluminação, ao mesmo tempo em que usa a memória para recompor os acontecimentos, as paixões e os fracassos amorosos, sempre se alimentando de humor e ironia.

No interior dessa busca incessante de finalidades e horizontes, o narrador tenso e agoniado apresenta cenas, casos, contos, ora patéticos, ora escabrosos, verdadeiras ilhas narrativas nas quais se refugia da reflexão oceânica, realizada com enorme intensidade lírico-trágica, sobre a morte e sobre Deus.

Embora presentes, as solicitações da carne surgem sob a ótica da decomposição física que exaure os limites do corpo: “não quero mais nada, Hermínia, já sabes, só penso na morte, nos meus ossos lá embaixo, no nada que serei (tu, um dia, também, isso me consola, se só eu é que ficasse solitário lá embaixo seria demais para mim” (p. 23). Passagem em que joga, com notável resultado, com a duplicidade da palavra “baixo”: parte física relacionada à genitália; terra sob a qual ficam os ossos. A ambigüidade acentua dolorosamente as formas da decadência do ser humano.

Além das referências feitas por Vittorio sobre si mesmo – intelectual, bêbado, decadente −, são poucas as passagens com informações sobre ele, como estas, extraídas de um diálogo entre Alessandro e Hermínia:
é inteiro deboche lá por dentro, tem pânico de ser pomposo, [...] tem alma eloqüente, gosta de grandes acordes, adora os russos, aqueles sinistros do piano, aquela pausa... [...] odeia o dedilhar das notas agudas, odeia sopranos estridentes, esses que se esgoelam nos nos trinados... (p. 43)

Acrescente-se um Vittorio voyeur que, de uma abertura feita na parede da biblioteca, pode observar o que acontece na sala. Aliás, a biblioteca simboliza espaço tão fundamental para o protagonista que chega a ser o lugar onde dorme.

Já Hermínia é a ex-mulher da qual se livrara mediante um estratagema para ocupar-se exclusivamente das questões que o atormentavam.

A mãe de Júnior é sempre referida de maneira pejorativa: rameira, puta, vaca. Figura distanciada na narrativa: relaciona-se com Vittorio apenas por cartas ou surge, então, na memória do protagonista. O narrador não esconde o artifício ficcional da construção da personagem, explicita-o com clareza em duas ocasiões. A primeira delas de modo nominalista: “Hermínia é seco comprido estreito e eras tão dulçorosa e meiga e tão pequena” (p. 20). No segundo registro o caráter metafictício é bem mais contundente: “não deveria ter inventado Hermínia, ela me aborrece, tem pouquíssimo a ver comigo mesmo, vejo-a quase seca, alta, distanciada” (p. 60). O mesmo expediente é adotado pelo narrador em outra passagem, na qual tenta livrar-se da presença de Rosinha, trazida pelo próprio pai para deleite sexual de Vittorio: “e aqui está ela de novo, não me sai da página” (p. 45).

Matias, o irmão, é descrito como um homem de 55 anos, forte, saudável, sexualmente ativo, prático, quase sempre razoável, ajeitando todas as situações, descomplicado, um santo luxurioso sempre às voltas com mulheres. Sempre está ao lado do irmão. Menos sofisticado do que Vittorio, nos diálogos limita-se a fazer perguntas e a ouvi-lo.

Júnior é o filho constantemente tratado com sarcasmo e ironia (Vittorio chega a observar semelhança física entre o filho e um cavalo usado pela mãe). Ouve sempre o discurso rancoroso de Vittorio contra Hermínia. Possui vinte e poucos anos. Pratica natação. Só posteriormente, já na segunda parte do livro, pai e filho aparecem envoltos por um clima mais amistoso. O filho mostra ao pai o seu primeiro conto e revela ter deixado de nadar.

Sobre Lucina, as observações também são mínimas. Tem coxas pesadas, canelas finas, é jovem, bela, sem barriga, lisinha e advogada. Na linguagem azeda de Vittorio – “rábula e puta”. O narrador ocupa-se, todavia, da etimologia. Associa Lucina a Juno, deusa responsável pela proteção do nascimento na antiga Roma. As relações de Vittorio com Lucina são marcadas por um visível desprezo já que atribui a ela interesses pecuniários.

Se estas personagens já são bastante esvaziadas, todas as outras vozes são moldadas de modo a atender os interesses do narrador. Oroxis, Dom Deo, Rosinha, avó Blandina, entre outros, são autênticas aparições que se esgotam no minúsculo espaço textual por elas ocupado.

As personagens femininas parecem arquitetadas com todo o repertório de preconceitos machistas. Na verdade, a leitura do texto hilstiano permite ver, na exposição do preconceito, um modo irônico de desconstruí-lo. O narrador extravasa em vários momentos uma visão caricata do feminino: as mulheres são percebidas como simples buracos a serem preenchidos pelos homens sem qualquer envolvimento afetivo; é de extrema raridade a existência de mulheres engraçadas; são seres falsos, dissimulados, a exemplo de Rosinha, a quem denomina “boi sonso”; o caráter trágico da relação incestuosa de Jocasta é ilusório, pois ela teria consciência da situação e aproveitava-se do vigor e da juventude do filho; as mulheres querem o tempo todo sexo e nada mais; o veneno (símbolo de covardia e traição) é a forma preferida pelas mulheres para matarem.

Ecos de outras vozes

No fluxo narrativo, a autora estabelece um diálogo circular com outros textos, numa relação inter e intratextual, revelando-nos uma clara consciência da produção de uma obra de extrema originalidade, coerente e coesa no peso concedido à construção de uma linguagem que permite explorar todas as dimensões da língua: canônica e não-canônica, casta e herética, alta e baixa, chula e erudita. Um corpus narrativo centrado na experimentação como processo unificador entre vida, pensamento e linguagem, paga às vezes um alto preço por existir na zona de fronteira, nos limites distanciados de qualquer convenção normativa.

O diálogo ininterrupto com as mais diversas fontes culturais cria para o texto hilstiano uma natureza ensaística, ao alimentá-lo de referências que possibilitam mover a constante reflexão que mobiliza todos os narradores. Nunca as citações são agenciadas apenas para ilustrar o texto como mera erudição, são pontuações críticas do pensamento ficcionalizado no texto.

Intertextualidade

Quanto às referências intertextuais, Vittorio – não se pode esquecer da sua condição de intelectual – mistura em sua prosa uma multifacetada biblioteca, como se fosse impossível desencarnar seu texto de suas lembranças ficcionais.

Esta é uma das marcas fundamentais do estilo hilstiano: a incessante referência a autores, livros e personagens (reais ou fictícios) do mundo da arte e da cultura. Aqui pode ser observado, em relação ao caráter pornográfico atribuído aos seus textos, um ponto de vista inovador. As referências ao universo mais alto da literatura, a crítica a determinados autores, a eleição de outros, a discussão de idéias e de trabalhos do universo artístico, filosófico e científico não são recursos apropriados ao universo de revelação do interdito com intenção de prazer não-estético que é o caráter mais pertinente ao campo pornográfico. O pornográfico, em Hilda Hilst, encontra-se a serviço de uma estética de choque, de ruptura e do absurdo.

Outra faceta notável da obra é a proximidade da técnica narrativa hilstiana com os procedimentos dos grandes autores associados a concepções vanguardistas do século XX. Entre outros possíveis e prováveis diálogos (Joyce, Kafka, entre outros), é importante assinalar semelhanças com a linhagem beckettiana.

No romance Molloy, de Samuel Beckett, o protagonista também habita um espaço exíguo no interior de uma casa; permanece preso a um quarto, sintomaticamente o quarto da mãe. As pessoas e as imagens à sua volta aparecem num plano ilógico, tudo surge misturado de maneira grotesca e irreverente. As personagens de Beckett sempre se defrontam com um mundo absurdo, cuja legibilidade é impossível.

Se as personagens hilstianas não são propriamente caricaturais, como as do autor de Esperando Godot, vivem sempre uma situação-limite, responsável pelo ar deslocado que exibem e por sua estranheza: estão obcecadas por uma angustiante e angustiada reflexão sobre a própria existência. Também a obra beckettiana é uma obstinada reflexão sobre a existência, da qual resulta a negação da esperança e da salvação. A angústia de viver não promove heróis, Beckett chega a zombar do sofrimento. Sua narrativa, marcada pelo esvaziamento de enredo e personagem, é de uma radical descrença no homem. A natureza reflexiva imobiliza qualquer ação. A linguagem é a da solidão e do silêncio.

Na obra O inominável a literatura praticamente abre mão de suas referências. Os personagens de Beckett ficam reduzidos a discursos, a existência é transformada em um autêntico processo abstrato, um discurso desconexo produzido por uma consciência separada não só do mundo exterior, mas também do próprio corpo.

Na obra de Hilda Hilst podem ser observadas algumas características capazes de aproximá-la do universo beckettiano, embora não suficientes para apagar a sua singularidade: a voz feminina capaz de relançar sempre a mesma pergunta, a tensa relação com o outro – o homem e o mundo impositivos –, a quebra de fronteiras e a culpa por descobrir a natureza do desamparo.

No rol das referências fundamentais, a figura do pai de Hilda Hilst, o poeta Apolônio de Almeida Prado Hilst, ocupa um lugar eminente. A rede de referências de Estar sendo. Ter sido alimenta-se ainda de Katsushika Hokusai, escritor japonês, de Sófocles, de Petrarca, de Apuleio, da Bíblia, da Torah, do Bhagavad-Gita, de Shakespeare, de Kurosawa, de Kierkegaard, de Ovídio, de Balzac, de Flaubert, de Oscar Wilde, de Antônio Vieira, de Rosvita Von Gandersheim, de James Ward, dentre outros.


Intratextualidade

No campo intratextual há a participação de várias personagens de outras narrativas transpostas para as páginas de Estar sendo. Ter sido. Essa característica confere à última obra de Hilda Hilst um caráter aberto e transgressor, bem representativo da natureza de toda a sua produção ficcional. A intratextualidade, no entanto, não se esgota apenas na intervenção das personagens de outros livros, também se organiza pela incorporação ao texto de temas, motivos e procedimentos nucleares às narrativas anteriores.

Presença importante é a de Hillé, vista como grande amiga de Vittorio. Apesar de considerá-la esquisita e dizer para o irmão que este não gostaria dela, a primeira invocação deste nome surge apenas para retratar uma cena grotesca em que um namorado dela é o centro das atenções devido à excentricidade surrealista de comer copos de uísque.

Na segunda aparição de Hillé, contudo, há a explicitação mais delineada de sua personalidade:
Hillé disse um dia: dá-me a vida do excesso, o estupor. pediu isso a você? pediu a Deus, Matias. e lhe foi dado? perdi-a de vista, [...] “Hillé está há muitos anos esquecida de si mesma”. fala mais claro Vittorio. esquecida de si mesma e de tudo o mais, olha as árvores e chora, lembra-se de ter sido árvore. então está mais é se lembrando muito. foi árvore e sente piedade, foi cadela e sente piedade, foi esses bichos pequenos. que bichos? doninha rato lagartixa. ahn. e sente compaixão por todos eles. estás me dizendo que tua amiga Hillé ficou louca. não, era lúcida demais para pirar. mas são os lúcidos demais que enlouquecem? tu chamas loucura isso de se saber mil outros? (p. 38)

A natureza de Hillé pode ser caracterizada por um panteísmo vitalista, a vida assume todas as formas, num mecanismo de homologia com a multiplicidade de vozes narrativas. Tudo está relacionado a tudo: “tudo tem a ver com quase tudo. tu pensas que não, mas tem. números equações teoremas beleza e coesão” (p. 61).

O processo de transformações contínuas é uma das pontas que alimentam o caráter encantatório e mágico da linguagem hilstiana. Nucleado pela proliferação de anamorfoses, joga a linguagem para o campo de outras dimensões situadas fora plano da pura racionalidade. O ritmo vertiginoso das mutações e a freqüência da autora às páginas da cultura clássica permitem observar a possível influência da mentalidade pagã de As memorfoses, de Ovídio, sobre o pensamento da ficcionista.

Na carta de Dom Deo, a informação dada pelo missivista pode ser entendida como a comprovação da preferência de Vittorio-Hilda Hilst por Hillé:
aquela de quem tanto gostavas. soube por uma vizinha, uma destrambelhada, Luzia, que Hillé deixou-se morrer embaixo de uma escada, e que sua última amiga foi uma porca.
Hillé chamava-a apenas com este nome: senhora P. disse-me também Luzia que a senhora P morreu com Hillé, à mesma hora, e no mesmo dia. (p. 76)

A certa altura do livro, surgem os irmãos Karl e Cordélia, personagens de Cartas de um sedutor. As cartas exibem os relatos das experiências de um burguês blasé e impiedoso a respeito de suas aventuras e devassidões sexuais, com direito a todas as formas de amor, em que sobressaem a fixação, em termos sexuais, pela irmã; as (in)confidências sobre os casos do pai; e a revelação, a que o leitor tem acesso pela leitura indireta das respostas da irmã, do caso desta última com o pai, de que resultou o filho Iohanis, com quem ela igualmente mantém relações sexuais.

Incluídas em Estar sendo. Ter sido as personagens extrapolam o nível de simples menção, uma vez que desempenham uma função ficcional no texto hilstiano. Vittorio retrata Cordélia como uma de suas inúmeras conquistas amorosas:
Cordélia era uma beleza. ah, essas mulheres que se parecem a deusas! trepei uma vez com ela. pena que foi só uma. tive que usar uma faixa de tenista na cabeça. o pai era campeão de tênis, e ela só gozava se o parceiro usasse aquela faixa, qualquer faixa, minha linda, eu disse, ponho faixa onde quiseres, posso até ficar inteiro enfaixado. só não enfaixo as prendas. (p. 48)

Vittorio fica com a faixa, um fetiche que simboliza a relação incestuosa entre Cordélia e o pai dela.

A irrupção dos irmãos na obra analisada é motivada pela lembrança do caráter epistolar da comunicação entre ambos. Ao valer-se de tal analogia, já que a referência ocorre no momento em que Vittorio pensa em escrever uma carta para Lucina, o narrador aponta, na realidade, para o peso muito grande do texto epistolar na constituição do universo ficcional hilstiano, portanto a presença de outras personagens remete a processos similares nele existentes.

Stamatius, também inserido na complexidade narrativa de Estar sendo. Ter sido, é inicialmente uma personagem do relato de Karl. Com o desenvolvimento da narrativa, desaloja-o do centro narrativo e ocupa o lugar de narrador de Cartas de um sedutor. Ele é um perdedor em todos os sentidos: escritor fracassado, perdeu os dentes, os móveis, a hipoteca da casa e a mulher. Sua posição marginal é assinalada pelo seu caráter de mendigo culto, refinado, lavador de livros encontrados no lixo, lavagem da qual o seu próprio texto emerge. No lixo encontra livros de Tolstoi (A morte de Ivan Ilitch), de Filosofia, de Marx, a Bíblia e, principalmente, a obra completa de Kierkegaard.

Em Estar sendo. Ter sido, Vittorio utiliza Stamatius para vergastar a figura dos editores, sempre pintados com cores negativas: “o Stamatius é que tinha ódio de editor, quebrou a cara de um, foi quebrando até o infeliz jurar que sim, que ia editá-lo em papel bíblia e capa dura. dizem que quebrou a mão também. a mão dele, Stamatius. o outro ficou banguela” (p. 62).

Envolto em tralhas, no desconforto, cheio de feridas, com a boca desdentada por tensões e vícios, Stamatius não pode ser perdoado. Sua miséria resulta do risco assumido em não fazer concessões, fazer da linguagem o campo de busca de uma plenitude nunca alcançada, porém de cuja busca não desiste nunca, mesmo deslocado ou no meio de cenário e cena mais infames. Assim Stamatius/Karl/Eulália são outros nomes da mesma voz que esteticiza a existência, campo de experimentação e indagação ontológica, de acordo com a visão kierkegaardiana:
O tom poético era o excedente fornecido por ele próprio [o diário]. Esse excedente era a poesia cujo gozo ele ia colher na situação poética da realidade, e que retomava sob a forma de reflexão poética. Era este o seu segundo prazer e o prazer constituía a finalidade de toda a sua vida. Primeiro gozava pessoalmente a estética, após o que gozava esteticamente a sua personalidade. Gozava pois egoisticamente, ele próprio, o que a realidade lhe oferecia, bem como aquilo com que fecundava essa realidade; no segundo caso, a sua personalidade deixava de agir, e gozava a situação, e ela própria na situação. Tinha a constante necessidade, no primeiro caso, da realidade como ocasião, como elemento; no segundo caso a realidade ficava imersa na poesia. (Kierkegaard: 1974, 147)

Para justificar seu desencanto com as mulheres, especificamente com Lucina, amante impregnada por um tedioso discurso jurídico e movida por interesses materiais, Vittorio recorre à lembrança do amigo Crasso, narrador e protagonista de outro texto hilstiano – Contos d’escárnio: textos grotescos:
meu amigo Crasso, chateou-se bastante com uma dessas chamadas cultas-togadas, essas rafinés metidas a sebo que só comem rouxinóis e sovacos de pomba, “um trabalhão, uma mão-de-obra, Vittorio, se pintar alguma, livra-te dela”. mas pelo menos foi boa de cama?
“pois foi, Vittorio, mas gastei mais do que se tivesse fodido a Lurdinha o ano inteiro”. (p. 50)

Crasso, na realidade alter ego de Hilda Hilst, ao expor as razões que geraram o Contos d’escárnio: textos grotescos aponta para marcas fundamentais da poética hilstiana:
Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa seqüência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. Então não vou escrever um romance como... E o Vento Levou ou Rebeca, Os Sertões e Ana Karenina então nem se fala. Os verbos chineses não possuem tempo. Eu também não. (2002, 14)

Não são apenas as intromissões e invasões de personagens de obras anteriores no livro que desenham e fortalecem a importância da intratextualidade, existem ainda diversos níveis de retomada incluídos em Estar sendo. Ter sido, como já foi observado pelos autores do posfácio à primeira edição da obra:
No campo intertextual – tanta coisa resplende – há também vários exemplos: “eu-menino-luz-tremente inteiro” lembra “Agda menina-santa”; o “tigre-menino” faz ressoar o “menino-porco de Hillé”. “O cara mínima, o Sem-Forma”, lembra a busca do “Pai-Deus” em Qadós. Espaços de “O oco” se confundem na sintaxe: “estou na cama ou nos juncos? estou molhado de esperma ou de urina?” atualizam “Queres (que eu frite) o peixe na manteiga ou no mijo?” A verticalidade se instaura: o poço e a clarabóia de Ruiska, o banco de cimento onde se sentava o pai de Agda, sou um novo nada ninguém, de Amós Keres. (Machado: 1997, 112)


Deus: a voz emudecida
Os narradores hilstianos são energizados por uma obsessão que atravessa todos os textos e dá sustentação a todas as dúvidas e questionamentos teóricos, místicos e metafísicos: o abismo de deus. Do diálogo com o vazio surge a agonia espiralizante na qual a voz narrativa asfixia o próprio corpo e libera o veneno mortal das palavras expulsas do reduto mais profundo do ser. Uma linguagem ofídica se instaura como uma tentação verbal a um deus emudecido e ausente. A intangibilidade divina não provoca a desistência, antes parece mobilizar mais recursos e aprofundar a energia vital que explode qualquer racionalidade. É desse diálogo exasperado e exasperante que brotam lirismo e morbidez, luxúria e santidade, blasfêmia e ternura. Tudo é agenciado em direção a um resposta que, não amanhecendo no horizonte, faz do silêncio um incessante discurso. A voz de Deus ressoa no vácuo, lá onde o som não se propaga. O deus hilstiano é o criador de um alfabeto de negações e silêncio, de um movimento cuja negatividade impulsiona o ser e faz com que, ao mover-se, pense que no caminhar há um impulso misterioso dado por algo que está fora do ser, um vento do qual surge a dúvida, o inesperado, uma tempestade da qual a loucura, a dor, a velhice e a morte são emanações incompreensíveis. Talvez porque o próprio humano seja inominável e incognoscível, colocar-se em questão é também uma forma de prece, mesmo sem fé, significa dar asas às palavras que voam ávidas de origens e finalidades. O cruel exercício do sem sentido, a dolorosa caminhada em um universo vazio, o pó da existência, mesmo sob a capa dos desregramentos, nos labirintos das perversões, no coração pulsante de gozo, da orgia e da entrega aos sentidos, sempre se move no abismo-deus, nas suas ruínas, no mundo concebido como um campo abandonado pelo divino.

A natureza reflexiva da linguagem hilstiana não pode ser apreendida com exatidão sem o entendimento da matriz especulativa que lhe dá vigor e beleza. Compreensão que pôde ser percebida por Vera Queiroz em estudo sobre a autora:
Se, por um lado, tal discurso articula-se em meio a perguntas de vigorosa
ressonância filosófica, religiosa e mística, no sentido de busca por uma transcendência que supere os vazios inerente à condição humana, utilizando então uma dicção culta, não raro de alto lirismo e de metáforas inaugurais, por outro lado, quando as respostas a tais perguntas falham – e elas falham quase sempre –, a ira incontida, a fúria e a iconoclastia apossam-se do discurso, e a frase será então uma torrente incontrolável e incontornável de impropérios, de imagens coprológicas de blasfêmias. Tal processo ocorre sem mediações, de modo que o leitor se vê numa montanha russa, em alta velocidade, de onde não pode descer – ao menos enquanto viger seu pacto com a leitura. (QUEIROZ: 2000, 19)

Deus é retratado por Hilda Hilst de modo anticonvencional, sem grandeza, sem excepcionalidade, sem majestade. Em sua primeira aparição Vittorio o descreve para Matias, que esperava um ser grandalhão e vermelho, como um tipo mignon com voz de moça e pulsos e canelas finas, acompanhando por uma figura atarracada sempre mastigando e engolindo as fantasias dejetas do divino. Deus surge, assim, sob a forma de um ser duplo, com um lado de sombras a alimentar-se de seus erros, prova completa de sua imperfeição.

Comparado a um frio comediante, Deus é também um ser que diminuiu de tamanho, daí ser tratado como o “Cara-mínima”. Por um lado, o narrador vergasta a inexplicabilidade do sofrimento humano, por outro, aponta o esvaziamento progressivo de sua imagem para a humanidade. A redução de seu poder não o impede de considerar Vittorio como gentinha.
O narrador volta-se em determinado momento contra Deus, em belíssima passagem, invocando uma série de limitações divinas e rejeitando-o como criador de um mundo dominado pelo absurdo da condição humana.
sou um bicho-ninguém olhando para o alto, talvez um sapo, um cão pelado, alguém me espanca as patas as costas, salto, encolho-me nos cantos, vem Jeová aos berros: Vittorio! Vittorio! ama-me! é para o teu bem o sofrimento! é luz sofrer! dou bengaladas no ar, estou furibundo: sai cornudo, nascido do nada, é porque é incriado, sem mãe, é por isso que odeias os que tiveram um ventre como casa, é porque nem casa tens que sobrevoas teus pântanos para ver se encontras um irmão-alguém, porque és único, sem parecença, um olho-terror, um olho-abismo, um dissoluto olho-ígneo, um olho condenado à eterna solidão... sim, porque ninguém quer ser o medo de si mesmo. e não podes morrer. a cada dia sugeres aos homens as mais torpes invenções, tudo isso para ver se tu mesmo cais morto, e contigo o imundo que inventaste. (p. 59)

A irreverência e a dicção irônica recobrem em outros momentos a representação de deus. É o caso da orientação para que Jeová dirija-se a um esgoto numa praia próxima e da constatação do caráter lírico e romântico da linguagem divina.

A blasfêmia, a provocação, os impropérios dirigidos a Deus têm a sua função explicitada na narrativa em um trecho da carta escrita por Dom Deo. O autor afirma que aos blasfemarmos nos transformamos um pouco em santos, sob a alegação de que ao excitarmos o OUTRO acabamos por provocar o rompimento do estado de inércia em que ele vive e a fazer com que aja a nosso favor naturalmente.

Quando Deus resolve não aparecer mais, Vittorio fica tão transtornado que, num claro apelo ao sórdido e ao coprológico, chega a pagar a Rosinha para procurá-lo em seu próprio ânus, enquanto dirige a Ele palavras ásperas:


blockquote>facínora, sai daí! ontem ouvi dizer que uns famintos comeram um seio, a mama, a teta de alguém encontrada no lixo, no monturo. e tu cada vez mais jubiloso se encolhendo, se fazendo tule, renda, logo mais serás apenas assovio, aquele que ninguém ouve, só os cães, e ninguém há de ter aquele apito, aí sim, esquecido depois de um milhão de luas, como hás de rir de mim. e os espelhos hão de estar aqui, e também por aqui o meu risível e contorcido esqueleto, o idiota do Vittorio, aquele bufão bêbado, por mim se torcendo inteiro... por ti yo me rompo todo etc. ele está aí, estaí, Rosinha, com seu chapéu de gomos de seda, gomos estufados, sua gola de rendas, franzida, alta, creme e prateada, o blusão de veludo, sabe, Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo. (pp. 89-90)


Após uma cena na qual Vittorio viu a mãe dele, quando ainda era um menino, junto ao Cara-mínima, em uma igreja, o narrador imagina-se sobrinho de Deus e, em conversa com Ele, ao indagar sobre o significado de energia, constrói uma imagem na qual o criador obtém um perfil de literato: “Aí deus usou muitas palavras complicadas e o sobrinho disse: por que você não faz um rabo de papel com todas essas palavras complicadas escritas nele? Deus achou boa idéia e por isso até hoje temos um rabo de papel, tropeçamos nele a cada dia, nas palavras também” (HILST: 1997, 99).

A narrativa contém ainda duas formulações estruturadas em torno da presença e importância de Deus. A frase final da segunda parte: “Eu de novo escoiceando com ternura e assombro também Aquele: o Guardião do Mundo” (p. 110) e o belíssimo poema intitulado “Mula de Deus”, com o qual a narrativa propriamente termina, e cujo título guarda uma conotação bastante expressiva e explicitadora da posição de Hilda Hilst em relação a Deus: a de autora em transe, a de ficcionista possuída pelas vozes múltiplas que emanam de ou para o plano divino, a de um ser cujos corpo e alma são instrumentos pelos quais uma linguagem jorra num fluxo incessante, verdadeiro rio revolto de águas e palavras desordenadas, anárquicas e febris, a percorrer o deserto de deus.

O caos é vital ao processo criativo de Hilda Hilst: “Tal desordem (...) funciona na arte literária de HH como motor de uma engrenagem discursiva movida pela fúria iconoclasta, pela quebra dos padrões e pela vontade de dobrar, enfim, os limites da palavra, da sintaxe e das convenções banalizadas” (QUEIROZ: 2000, 13).

As paixões, a devassidão, a floração dos instintos, o prazer e o encanto provocados pela beleza física, cuja perda é tematizada em Estar sendo. Ter sido, nunca geram acontecimentos apartados do plano divino. De acordo com o pensamento desenvolvido por Vera Queiroz – “os contatos dos corpos, que se apresentam como sinais de erotismo, devem ser compreendidos como dimensões sígnicas da tentativa, sempre falhada, de aproximar-se do corpo luminescente de Deus” (QUEIROZ: 2000, 31).

O ser humano, prisioneiro de abismos e do caos, vive na linguagem a única liberdade possível. À procura de explicações para a existência de um universo de escombros e absurdos, acaba por movimentar o mundo graças à energia gasta à procura de, em busca de. De quê? Não importa, talvez Deus seja mais uma aposta do que uma resposta. Essa parece ser a investida hilstiana na dimensão divina.

Conclusão

Qualquer referência aos textos de Hilda Hilst não deixa escapar a questão da obscenidade na configuração da obra. No caso específico de Estar sendo. Ter sido, o caráter obsceno confere à narrativa uma força demolidora que desconstrói os paradigmas da literatura pornográfica graças a um processo de aguda ironia, à perspectiva crítica da enunciação e aos requintes de uma linguagem capaz de incorporar os mais diversos registros. Uma leitura fixada apenas no apelo ao escabroso e às solicitações de uma sexualidade mais vulgar, portanto, é uma recepção incompleta do universo hilstiano; nele a palavra obscena funciona como aquilo que está “fora de cena” (Moraes, 110), isto é, refere-se àquelas cenas que não são apresentadas no palco da sociabilidade cotidiana. É o espaço do proibido, do não-dizível, do censurado.

Se tal característica permite perceber a natureza dramática da escrita hilstiana, por outro lado vale a pena ressaltar que a obscenidade não é o centro, mas parte de um processo agenciado por uma pluralidade de temas: morte, deus, amor, velhice, questões metafísicas, problemas sociais tratados com sutileza e ironia etc.

O leitor desavisado sofre uma espécie de golpe violento ao ser iniciado em HH, torna-se para ele uma processo complexo identificar as diferentes seqüências narrativas, relacionando-as a personagens mutáveis em um universo ficcional que contrasta imagens, que aproxima o inesperado e que não se curva às relações causais próprias da referencialidade à qual faz alusão. O espaço da sujeira e do vocabulário chulo convive com a assepsia da erudição.

A pornografia não é imposta pelo consumo, ela resulta da repressão, da violência e da interdição. Por primária, instintiva e natural pulsão sexual, a linguagem do reprimido retorna como fetiche do proibido. Não é o mercado que cria a pornografia. A imaginação tenta traduzir uma linguagem cuja interdição é uma forma de invisibilidade, essa tradução ao revelar a forma proibida (re)produz prazer. O prazer pornográfico esgota-se nos limites da sexualidade básica, animal, em sua fisicalidade. O prazer advindo da obscenidade envolve uma dimensão social, um deleitar-se comum que ultrapassa os limites da pura sexualidade, invadindo o estético, o político e o social.

A narrativa de Hilda Hilst, portanto, subverte o pornográfico, retira o rótulo de interdito, de escrita menor, ultrapassa os limites entre o erótico, o obsceno e o pornográfico, criando uma obra em uma fronteira que a crítica ainda não conseguiu assentar com nitidez, apesar de todo o repertório conceitual. Talvez pelo extraordinário grau de indeterminação da natureza humana, por ser uma região profunda, insondável, apesar de a razão tentar mapeá-la. O atávico, o primordial, o caráter fundador na pulsão sexual, por não encontrar no vazio o eco onde o seu rosto reapareça, lança-se à busca. É esse o caminho cruzado por perversão e santidade, escrita suicida e escrita de desamparo, prece e blasfêmia, insulamento radical e radical desejo de encontro do Outro, Ele, no cerne da obra hilstiana.

A pornografia tem sido, ao longo do tempo, um reduto masculino. Uma linguagem normalmente produzida por homens, destinada à leitura de um público masculino. Nele a mulher é alvo, objeto de manipulação. Ousar invadir domínio tão machista já provoca estranheza em relação à mulher, embora diversas mulheres tenham cometido tal desatino. Maior é o espanto quando alguém invade a cena pornográfica para pervertê-la, e a perversão de Hilda Hilst é furtar à interdição a sacralidade de ser um ritual encenado em teatro subterrâneo e dar ao texto qualidade estética. A pornografia em Hilda Hilst é uma linguagem ascética encenada a céu aberto. Não esconde suas chagas e feridas, não domina seu alto grau de insanidade. É capaz de mostrar-se e evitar todo o grau de exibicionismo implícito em qualquer texto pornográfico.

Na obra hilstiana podemos observar a presença em todas as narrativas, de uma forma ou de outra, da existência de seres desalojados e desamparados. As criaturas hilstianas movem-se nos escombros, nas ruínas ou no lixo de um lar, vivem, portanto, em um permanente estado de exílio. Compare-se, por exemplo, Hillé, de A obscena senhora D, domiciliada no vão de uma escala, ao Stamatius, de Cartas de um sedutor, escritor que vive remexendo o lixo, com o Karl, do mesmo livro, cuja paixão incestuosa pela irmã inviabiliza a habitação, o viver compartilhado sob o mesmo teto.

Frente ao enigma da morte, vivendo em um mundo desordenado, vazia de Deus e dos homens, Hilda Hilst buscou abrigo – entre impropérios, blasfêmias, teofagia, metafísica, grotesco e sublime – na linguagem, a única redenção possível.

Referências

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BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Doistoiévski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BAUDRILLARD, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
BECKETT, Samuel. Molloy. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
_____. O inominável. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, no 8, out. – 1999 – Hilda Hilst. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1999.
HILST, Hilda. Estar sendo. Ter sido. São Paulo: Nankin Editorial, 1997.
_____. A obscena senhora Z. São Paulo: Globo, 2001.
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_____. Contos d’escárnio: textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002.
_____. "Hilda Hilst e seus personagens não param de pensar". São Paulo: 1997. Entrevista concedida a Luiza Mendes Fúria. O Estado de São Paulo, Caderno 2, em 31/05/1997
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
KIERKEGAARD, Soren Aabye. Diário de um sedutor. São Paulo: Abril Cultural,
1974.
LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura em suas fontes – vol. 1. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MACHADO, Clara Silveira e DUARTE, Edson Costa. “A vida uma aventura obscena de tão lúcida”. In: HILST, Hilda. Estar sendo. Ter sido. São Paulo: Nankin Editorial, 1997.
MORAES, Eliane R. e LAPEIZ, Sandra. O que é pornografia. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
PÉCORA, Alcir. Hilda Hilst: call for papers. Disponível em http: // www.germinaliteratura.com.br/enc_ago5.htm. Acesso em: 26 fev. 2007, 22:08.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.
SOARES, Angélica. Gêneros literários. 6ª. ed. São Paulo: Ática, 2004.


* Publicado no Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea - 2a. ed. em http://forumlitbras.letras.ufrj.br/       


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Cartas de um sedutor: uma poética experimental *


A primeira edição de Cartas de um sedutor data de 1991. Com o surgimento dessa obra, Hilda Hilst deu por terminada a denominada trilogia obscena, iniciada no ano anterior, com a publicação de O caderno rosa de Lory Lamby, a que se seguiu, no mesmo ano, o livro Contos d’escárnio. Textos grotescos. A trilogia traduziu a insatisfação de Hilda Hilst com a receptividade de sua obra, o seu esapontamento com a crítica e o público no Brasil. Não se pode reduzi-la, no entanto, a um simples protesto ou apenas à dimensão pornográfica, lendo-a sob uma ótica que folclorize as idiossincrasias da autora ou se atenha somente à dimensão apelativa de uma sexualidade fora de controle. De toda a trilogia (na verdade, uma falsa designação, uma vez que, apesar da dimensão pornográfica, não há uma unidade entre os três livros), as Cartas constituem o momento mais complexo, pois reúnem elementos que vão além da esfera obscena, revelando aspectos da poética que estrutura toda a sua narrativa.

A narrativa complexa de Hilda Hilst exige um esforço do leitor, obriga-o a abandonar a previsibilidade e a linearidade da leitura, desautomatiza a expectativa, o prazer da leitura inocula-se com o vírus da inquietação, das perguntas sem respostas, a promessa de uma escrita pornográfica não se cumpre porque o texto se adensa, segue um ritmo pulsante, corrosivo, crítico, transforma-se num relato pornometafísico tensionado entre uma escrita do corpo elaborada como pura provocação e uma escrita das perguntas sem respostas que lhe dão uma densidade humana de uma radical busca ontológica.

Uma das características mais fascinantes de Cartas de um sedutor é a impossibilidade de efetuar-se uma classificação baseada nos moldes da tipologia narrativa usual: romance?, reunião de contos?, de novelas?, narrativa epistolar?, diário? Hilda Hilst trabalha o(s) texto(s) sem qualquer preocupação com um possível enquadramento. Embora utilize recursos das formas narrativas tradicionais, eles estão à disposição de uma voz que percebe na ruptura dos paradigmas textuais a única forma de libertação e de expressão da natureza perscrutadora que a constitui, o que evidencia a radicalidade de uma busca existencial incapaz de ser abafada ou neutralizada pelo revestimento pornográfico que recobre a linguagem do livro. A fim de comprovar tal ponto de vista, no entanto, faz-se necessário analisar a arquitetura textual da obra.

As Cartas compõem-se de três blocos narrativos. O primeiro, o maior de todo, do qual foi extraído o título do livro, organiza-se em torno de vinte cartas escritas por Karl, endereçadas à irmã e amante Cordélia. O segundo bloco é constituído por quatro contos, aos quais pode ser agregado o texto intitulado “De outros ocos”, apesar de gozar de relativa autonomia e de maior complexidade em relação aos relatos anteriores. O último bloco é formado por sete contos curtos. A ligação entre os três blocos permite reconhecer o caráter experimental da prosa hilstiana, uma narrativa capaz de quebrar expectativas ao não observar a centralidade de linearidade discursiva, seqüências temporais, densidade e profundidade psicológica das personagens ou desdobramento de ações, elementos que, na verdade, são utilizados como auxiliares de uma linguagem extremamente elaborada e de um pensamento que faz da insatisfação a força que o coloca em incessante movimento.


Narrativa epistolar

Apresentação

As cartas que constituem o primeiro bloco são precedidas por um monólogo curto, espécie de introdução, feita por Tiu (Stamatius), narrador-autor que aparece aqui no presente da enunciação, e faz um prólogo sobre valores, entre eles o valor da alta literatura para a burguesia endinheirada, em cujo lixo ele resgata obras de arte misturadas a dejetos.

O dilacerante dualismo entre o carnal e o espiritual brota da primeira linha: “Como pensar o gozo envolto nestas tralhas? Nas minhas. Este desconforto de me saber lanoso e ulcerado,...” (CS, 15) O pendor para o pensamento, o ousar pensar, ameaça dissolver a antítese, no entanto ela se mantém pela refração do mundo à ex-centricidade. A criação é provocada por rejeição, estranheza, desconforto. O relato é a tensão entre o sujeito centrado, singular, tal como o constituiu a filosofia até o século XIX, pelo menos, e o sujeito exilado de si mesmo, o sujeito que sobrevive de modo fantasmático, cuja voz narrativa sobrevive como destroços. Ao longo do livro, o narrador, num movimento paradoxal, assume diversas vozes que operam a partir de pontos diversos, ditam o relato, ao mesmo tempo em que não possui controle, domínio, torna-se incapaz de estruturar uma obra que pudesse, com propriedade, corresponder à idéia de conjunto unificado esteticamente. Tal movimento volta-se para o narrador que não aceita a recusa, a ausência de resposta, por isso explode a narrativa, a temporalidade, e a experiência surge sob a forma de fragmentos. O gozo não é pensado, a Resposta é o silêncio de Deus. A escrita é expulsão de dejetos, o lixo, criação e coprologia interativas: “depois cuspo nos papéis, aqueles que há seis meses e a cada dia aliso apalpo rasgo, sujo.” (CS, 15) Escrever é soltar os demônios; os da palavra.

Não é à toa que a amante de Stamatius é denominada Eulália, palavra que vem etimologicamente do grego eu-, bom + lalía, fala, voz. É ela quem alimenta o narrador quando o processo criativo torna-se nulo (“se ao menos eu conseguisse escrever” [CS, 18]), quem lhe diz sobre o que escrever, é a voz que sopra a história. Pode pedir para escrever sobre ela, sobre banalidades, sobre o Brasil. O não-saber de Eulália determina o rumo do saber (mente, mãos e falo) que constrói a história.

O narrador-personagem, Stamatius, é um perdedor em todos os sentidos: escritor fracassado, perdera os dentes, os móveis, a hipoteca da casa e a mulher. Sua posição marginal é assinalada pelo seu caráter de mendigo culto, refinado, lavador de livros encontrados no lixo, lavagem da qual o seu próprio texto emerge. No lixo encontra livros de Tolstói (A morte de Ivan Ilitch), de Filosofia, de Marx, a Bíblia e, principalmente, a obra completa de Kierkegaard.

O diálogo entre o livro de Hilda Hilst e o romance de Kierkegaard, um Diário de sedutor, é fundamental para a compreensão do caráter paródico de que se reveste CS. Ambas as obras apresentam uma introdução que termina de forma semelhante: “Eis as cartas”, no Diário (p. 151); “Vamos lá”, em CS (p. 19), só que em contextos bem distintos. Se em ambos funcionam como marcadores textuais de início de narrativa, no primeiro assume com nitidez o caráter de suspensão momentânea do texto introdutório, transformando-o em pré-texto de uma história cujos acontecimentos serão finalmente apresentados em uma estrutura dupla, diário e carta, formas afins pelo caráter confessional, responsável pelo estabelecimento do significado da obra; nas CS, a idéia de uma simples apresentação de um conteúdo pré-existente é trocada pela referência à construção, à criação vista como um desafio (proposto permanentemente por um demônio), referência que emana do caos, da crise, do lugar da exclusão e unifica gozo e escrita.

Há ainda em CS concepções que possuem semelhança com as adotadas por Kierkegaard e que permitem analisar a relevância do autor de Conceito de Angústia para o universo hilstiano. Usando o artifício romântico de construir uma neutralidade, um distanciamento das cartas que correspondam à construção do narrador, este no Diário de um sedutor observa que elas contêm estudos de situações eróticas, conselhos os mais diversos, rascunhos, uma escrita vazada num estilo negligente mais artisticamente rigoroso. Refere-se a um caráter fragmentário, constituído basicamente pelas lacunas com as quais o narrador também constrói a história. Essa fragmentação surge, de modo mais intenso, no livro de Hilda Hilst, não apenas no plano temporal, mas no próprio plano discursivo, calcado na elipse e na mudança formal que esfacela a continuidade presente na obra kierkegaardiana.

Ainda na introdução ao seu livro, Kierkegaard faz duas afirmações valiosas para a análise aqui empreendida. A primeira refere-se a esteticização de sua vida empreendida pelo protagonisa: "A sua vida foi uma tentativa constante para realizar a tarefa de viver poeticamente". (Kierkegaard, 1974, 146)

Envolto em tralhas, no desconforto, cheio de feridas, com a boca desdentada por tensões e vícios, Stamatius não pode ser perdoado. Sua miséria resulta do risco assumido em não fazer concessões, fazer da linguagem o campo de busca de uma plenitude nunca alcançada, porém de cuja possibilidade não desiste nunca, mesmo deslocado ou no meio de cenário e cena mais infames. Assim Stamatius/Karl/Eulália são outros nomes da mesma voz que esteticiza a existência, campo de experimentação e indagação ontológica. O narrador do texto de Kierkegaard, ao voltar à caracterização do protagonista, aprofunda essa homologia entre vida e poesia.
O tom poético era o excedente fornecido por ele próprio [o diário]. Esse excedente era a poesia cujo gozo ele ia colher na situação poética da realidade, e que retomava sob a forma de reflexão poética. Era este o seu segundo prazer e o prazer constituía a finalidade de toda a sua vida. Primeiro gozava pessoalmente a estética, após o que gozava esteticamente a sua personalidade. Gozava pois egoisticamente, ele próprio, o que a realidade lhe oferecia, bem como aquilo com que fecundava essa realidade; no segundo caso, a sua personalidade deixava de agir, e gozava a situação, e ela própria na situação. Tinha a constante necessidade, no primeiro caso, da realidade como ocasião, como elemento; no segundo caso a realidade ficava imersa na poesia. (KIERKEGAARD: 1974, 147)

A dimensão híbrida da escrita hilstiana tem na dimensão poética um processo que se instaura em todas as formas, da poesia propriamente dita ao texto dramático, passando pela crônica do cotidiano, pela indagação metafísica, pelo discurso licencioso e todas as demais possibilidades narrativas exploradas pela autora. O duplo gozo, no entanto, ao contrário do contexto do Diário de um sedutor, não assinala apenas duplicidade, mas dilaceramento. Sua natureza antitética não se dá pela distinção entre o narcisismo no qual a realidade é uma linguagem que projeta e amplia o criador e o narcisismo no qual o criador é uma realidade configurada pela linguagem. A desreferencialização do sujeito espatifa o espelho. Sujeito, narrador e narração fragmentam-se. Só na linguagem os cacos, vazios de significados, transformados em significantes lançam imagens de novas possibilidades de leitura e produção de sentido. O espaço de proliferação de uma nova poética apontada por Hilda Hilst é o espaço do excedente, da margem, é o lixo, o lugar do excesso, do abscesso, do sujo, do rejeitado, do fora de uso. É fora do comércio das palavras que as palavras vigem. É fora do utilitário, do finalístico e do funcional que a arte avança e funda outra realidade.

As cartas

Numa clara paródia do Diário de um sedutor, as cartas escritas por Karl são endereçadas à irmã, chamada Cordélia, à semelhança da infeliz vítima da sedução de Johannes, protagonista da obra kierkegaardiana. Já no começo há uma demarcação entre a atividade errática e descentrada de Karl e o trabalho meticuloso de conquista efetuado por Johannes, autêntico sedutor, um Don Juan cuja prática e concepção amorosas equivalem ao método de investigação científica da época moderna, pois consiste em estudar, classificar, selecionar, ordenar e controlar sentimentos com uma precisão e domínio insuperáveis, podendo exibir o catálogo de presas amorosas como um entomologista exibe uma coleção de borboletas.

A primeira carta vem introduzida por um poema de natureza híbrida, no qual há ressonâncias de composições obscenas e satíricas, na linhagem de Marcial, Gregório de Matos e Manuel Maria de Bocage. Nele as claras intenções pornográficas são manifestadas por uma linguagem em que os termos chulos - “que figaste o paterno caralho”, “Hei de te arrebentar as rebembelas”, “rombudas picas” – convivem com palavras que dão à composição uma estranha feição clássica e bucólica: - “O campo envelhece vacas e mulheres”, “Para teus represados sentimentos vis” -, quando a ele não se misturam – “Foste antanho putíssima, celebérrima.”

A obra de Hilda Hilst reinscreve o universo epistolar alimentando-se dos romances epistolares do século XIII, particularmente As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, constituído todo ele por cartas trocadas principalmente entre a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont, este último aristocrático personagem provavelmente um dos modelos tomados, juntamente com Don Juan, por Kierkegaard para caracterizar Johannes.

O teor das cartas hilstianas são relatos das experiências de um burguês blasé e impiedoso a respeito de suas aventuras e devassidões sexuais, com direito a todas as formas de amor, em que sobressaem a fixação, em termos sexuais, pela irmã; as (in)confidências sobre os casos do pai, e a revelação, a que o leitor tem acesso pela leitura indireta das respostas da irmã, do caso desta última com o pai, de que resultou o filho Iohanis, com quem ela igualmente mantém relações sexuais. Ou seja, também os incestos descritos e narrados obedecem ao movimento en abîme que organiza a linguagem.

Na primeira carta fica evidenciada a razão da correspondência: é uma tentativa de retomar uma ligação interrompida por cerca de dezesseis anos; representam, na realidade, a única possibilidade de contato entre ambos, já que ao irmão só foi concedido o acesso à caixa postal de Cordélia. O teor da trama é escabroso: a mãe foge com um homem, a irmã deseja o pai, entrega-se ao irmão pensando na figura paterna, o irmão toma-lhe o amante.

A segunda carta pode ser vista como uma resposta à aceitação de troca de correspondência, já que se relaciona a uma missiva enviada pela irmã, voz elíptica, reconstruída parcialmente como sombra dialógica na voz dominante de Karl. Se a linguagem pesada e trabalhada já problematiza o caráter pornográfico do texto, o surgimento de diversas referências às obras literárias, um espécie de diálogo com a grande literatura, complica mais ainda a mera percepção da narrativa como uma forma de literatura de baixo calibre, composição em tom menor. Ao nomear o amante, Karl preocupa-se em filiações literárias: chama-o de Alberto por apreço a Albert Camus, preocupando-se em não relacioná-lo ao universo proustiano. Tal elevação contrasta com a linguagem obscena e com a presença de traços de gosto duvidoso, grotesco: “Bunda de mulher deve dar bons bifes no caso de desastre na neve.” (CS, 25)

O narrador não estabelece distinção entre sagrado e profano, mesmo Deus habita o espaço pornográfico com naturalidade, como aparece na terceira carta: “O Criador, quando quer, sabe o [referência à bundinha perfeita de Albert] que fazer com as mãos.” (CS, 30) A referência ao universo das idéias continua com a referência aos livros de Rank e a figura provocante de Anais (CS, 28). Mais à frente surge “o brilhante tarado do Foucault ”. (CS, 29) [1]

Os livros continuam a pontuar a narrativa na quarta carta, nela aparece uma obra de Daniel Schreber, cuja maior preocupação é com o fato de se saber ou se sentir um homossexual passivo. O universo do homossexualismo é reforçado com a citação de Devassos no paraíso, de João Silvério, obra que gira em torno desse tema. Karl, ao fazer observações sobre a linguagem, parece remeter à consciência literária da autora: “fala [o livro de Schreber] da língua fundamental, que vem a ser uma língua com sintaxe própria, que omite palavras, deixa frases interrompidas e expressões gramaticais incompletas, coisas que sou tentado a fazer muitas vezes...” (CS, 32) A inclusão desse tipo de reflexão não faz parte da lógica de um texto considerado pornográfico, avesso, em tese, ao pensamento. A carta é uma verdadeira babel de estilos: reflexão sobre linguagem, citação de livros, inclusão de diálogo, receita de drinque, memórias familiares, jogo de pólo.

A série de referências literárias continua na quinta carta, na qual aparece referência a O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence, e termina misturando a sordidez prosaica presente no cotidiano das personagens de CS com a retratada na obra de Jean Genet.


A sexta carta detalha o processo de sedução ao qual Karl submete Albert, valendo-se da exposição de múltiplos elementos. Inicia com uma aparente descrição do amante para fazer a partir de um detalhe físico, os dentes perfeitos, uma digressão de natureza caótica na qual entram preço de orçamento de tratamento dentário, inscrições lidas nos muros e notícias divulgadas por uma rádio, isto é, incorpora ao texto anotações que quebram a linearidade da narrativa, submetendo-a ao modo fragmentado da realidade. Ao processo de sedução o narrador-personagem Karl acrescenta, como recurso decisivo para comprovar seu ponto de vista, o peso esmagador de toda a erudição possível na defesa da masturbação, invocando os nomes de John C. Powys, Havellok Ellis, Theodore Schroeder para sustentar a naturalidade desse ato. O diálogo entre Karl e Albert é teatralizado com a inclusão de marcas pronominais à frente de cada fala.

Karl aconselha Cordélia a ler Das razões da Coincidência, de Arthr Koestler, para entender melhor a questão das hierarquias, que surgem tendo como foco um casal de criados caracterizado pela predileção da mulher em lamber o ânus do namorado. Hierarquia que está na gênese da produção da narrativa, fruto do descontentamento de Hilda Hilst com a diminuta recepção de sua obra por parte do público. CS problematiza a própria noção de valor, ao eleger uma forma considerada inferior, a pornografia, para ampliar o universo de influência da autora. No entanto, provoca um curto-circuito na própria recepção: a crítica, a princípio, desqualifica, rebaixando-a na hierarquia de valores estéticos; o público buscado não responde ao apelo por não ver nele o campo de referências e a linguagem habituais [2] . Entre a incompreensão de todos os lados, no entanto, a ousadia de Hilda Hilst faz com que a recepção se amplie, o choque inicial acaba por funcionar como provocador de um novo olhar para a obra hilstiana, olhar capaz de perceber a precariedade e a insustentabilidade de estigmatizá-la como pornográfica, a qualidade da narrativa acaba, progressivamente, sendo reconhecida.

A entrega à devassidão jamais afasta Karl do mundo da cultura. A narrativa pode conciliar a natureza bissexual (Karl seduz Albert e depois transa com Petite) com o recalque de perceber que os criados também liam obras valiosas: “Estou indignado. Genet e Tolstoi lidos por criados.” (CS, 54)

Na carta IX menciona Nietzsche e Lou Salomé, para na seguinte fazer referência a Lawrence (citado textualmente), Freud, Jung e Ovídio, o das Metamorfoses. Na décima segunda, as irmãs Brontë são mencionadas.

Na carta de número quinze, aparece citação pejorativa aos livros de Jacqueline Susan, Jackie Collins e Daniele Stell. Posteriormente aparecem Rimbaud, Verlaine, Proust, Genet, Foucault, Mishima e Kafka e Tolstoi, todos estes, a exceção do último, flagrados em aspectos forma do comum, sujos, rejeitados socialmente. O processo recorrente de citação de obras e autores indica a profunda necessidade de filiação de Hilda Hilst à esfera da alta literatura, a consciência, explicitada em muitas entrevistas e ao longo da obra da autora, de estar realizando um trabalho de alta envergadura literária.

O início da décima sexta carta é extremamente revelador:
Os ossos. Os ovos. A sementeira. Essas coisas me vêm de repente num tranco. Ando cuspindo nas rodelas. Estou lixoso, áspero comigo mesmo e com o mundo. E confuso, Cordélia. Uma vontade louca de escrever na língua fundamental. Aquela. Te lembras. A de Schereber. Vontade de não dar sentido algum às coisas, às palavras e à própria vida. Assim como é a vida na realidade: ausente de sentido. (CS, 76)

A voz de Karl ecoa a voz de Hilda Hilst, da autora também preocupada com uma língua seminal, essencial e medular, criada num transe, num fluxo caótico de natureza especular a uma realidade destituída de significados, um mundo de significantes, de leitura opaca, organizado por alusões e elipses a um deus concebido como uma sombra sem corpo, uma projeção de um som no qual só o silêncio fala.

A supressão de nexos marca as lembranças do narrador que faz associações aleatórias, como relacionar o nome da mulher do assassino de Trotski, Orquélia, ao de Cordélia, deixando os significantes, a pura semelhança sonora, forjar falsas relações semânticas. Talvez tal processo ajude a entender o real como falsificação, uma vez que a imagem guardada por Karl da mãe é na verdade a de um retrato que não era o dela.

Ulisses, de James Joyce, aparece na carta dezessete associado a Petite, uma das inúmeras amantes de Karl, pertencente à esfera burguesa, e especificamente pontuado no monólogo de Molly. Na carta, o desejo surge como constituinte do caráter predador do ser humano, o desejo para consumar-se deve consumir o objeto para o qual se volta: “Na verdade o que queremos é dilacerar o outro. Dão o nome de desejo a essa comilança toda. Na natureza tudo come. Do leão à formiga. Até as estrelas se engolem umas às outras.” (CS, 78) Essa crueldade antropofágica da existência ira ressurgir na parte final do livro.

A próxima carta inicia-se com uma paródia sexual grotesca da célebre passagem descritiva de Marcel Proust sobre as reminiscências provocadas pela apreensão olfativa das madeleines. O universo evocado pela memória reconstitui a fraterna felação após o mergulho do falo na xícara de chocolate. A escrita de Karl é uma rasura, tenta reconstruir uma sexualidade familiar promíscua recorrendo a referenciais literários como escombros, fragmentos, as ruínas de uma escrita que não consegue dominar. A consciência desse processo é que leva Karl a revelar a sua insatisfação: “Ando me sentindo um escroto de um escritor e quando isso começa não acaba mais.” (CS, 83) A escrita de Karl é descontínua, interrompe a carta para livrar-se de Petite. Reproduz, contudo, um diálogo no qual o jogo com as palavras acaba na valorização do puro significante, no qual as palavras efusão, fartura e boceta dão motivo a diversos enunciados nos quais são reunidas por serem consideradas desagradáveis por Petite.

Esta carta, como todas as outras, é um chamado ao prazer, um convite endereçado à Cordélia para a total entrega a uma orgia sem fim. Também nela o narrador não foge ao processo de inserir o seu universo de leitura ao relato: “O outro dia li que um amigo de Richard Francis Burton deu-se muito mal com um besouro que lhe entrou tímpano adentro.” (CS, 85) Citação que acrescenta uma informação na verdade irrelevante ao texto, revelando uma face exageradamente culta do narrador, uma preocupação excessiva em pontuar um texto carregado de obscenidade com enxertos da alta cultura como se esse processo fosse capaz de conferir ao texto qualidade e valor, salvando-o do tom pesado do tema e da linguagem.

A décima nona carta fornece, de modo indireto, um retrato da reação da irmã à proposta de Karl e um descrição do filho, irmão e amante Iohanis.

A última epístola representa o rompimento da correspondência com a irmã, funciona em conexão com a carta anterior, uma vez que pressupõe resposta às informações fornecidas por Cordélia. Karl, então, obtém a comprovação de que Iohanis é o filho de seu pai. Tal revelação funciona como ruptura do desejo sexual pela irmã. Livre da tentação fraterna, Karl pode dedicar-se exclusivamente aos jogos amorosos com o amante.

O processo de afastamento entre os irmãos é paralelo ao deslocamento da narrativa. Karl desaparece como personagem-narrador, Stamatius reassume o comando: “Eu, Stamatius, digo: vou engolindo, Eulália, vou me demitindo desse Karl nojoso.” (CS, 89) Note-se que Stamatius já aparecera como personagem na narrativa de Karl:


Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eusó o chamava de Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá) que perdeu tudo, casa e outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive catando tudo quanto há, catador de lixo, percebes? Vive num cubículo sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido no esgoto. (CS, 67)

A reassunção de Stamatius traz de volta a atmosfera fluida da introdução, com a presença da voz demoníaca de Eulália, em diálogos sem as marcas tradicionais de travessão e maiúsculas, propondo novos rumos, fornecendo o mote das histórias a serem narradas a um narrador inseguro e flutuante. A linguagem mostra-se como um balé de significantes, movimento no qual os significados brotam de modo casual, aleatório.

A passagem entre a narrativa epistolar e os contos, sem qualquer mediaçäo, operada de modo notável, surge após Stamatius (Tiu) questionar os valores que regem o mercado das artes literárias e a necessidade de escrever bandalheiras para sobreviver. A transiçäo entre os dois blocos resulta de uma das propostas de Eulália: “escreve um conto horrível, todo mundo gosta de pavor, a gente sente uma coisa no meio... um arrepião.” (CS, 92) Stamatius, então, começa a escrever uma história denominada “Horrível”.

Contos

"Horrível"

Neste conto, Pedro, o protagonista, aparece embebido em uma forte atmosfera cultural, sempre às voltas com livros. A narrativa apresenta-o lendo para o triste e solitário marido de sua vizinha, D. Justina, um livro de Camus, A morte feliz, no qual alguém comete um assassinato sem arrependimento ou sentimento de culpa. A morte feliz pode ser vista como a sensação agradável sentida pelo velho e pelo assassino após enterrarem a vítima.

Não só a forma narrativa, conto, como também o próprio tema, a morte feliz, desfazem a continuidade com as cartas, rompem uma seqüência formal e temática, por conseguinte.

O término da história reintroduz Eulália. O autor não soube interpretar de modo correto o significado da palavra horrível que ela propusera como tema. A obra jamais exterioriza a energia subterrânea e primitiva soprada pelo demônio interno que a funda e constitui. Eulália termina por pedir a Stamatius que escreva qualquer besteira. É o que ele faz.

"Bestera"

O descompasso entre intencionalidade estética e recepção da obra, a submissão da arte a interesses mercadológicos, o apagamento da qualidade literária, a indistinção entre alta literatura e escrita comercial abrem o conto. O seu início serve como uma espécie de justificativa à produção do próprio livro (e da trilogia obscena):
Cansei-me de leituras, conceitos e dados. De ser austera e triste como consequência de ver frivolidades levadas a sério e crueldades imagináveis tratadas com irrelevância, admiração ou absoluto desprezo. (CS, 100)

A sexualidade promíscua vivida por Leocádia, a personagem nuclear do conto, possui similaridade com a experiência vivida pela autora que pensa abrir mão da qualidade para alcançar o prazer de sentir-se amada por um público. Leocádio/narradora/autora são clones, são os despojos de um sujeito que precisa negar-se para alcançar o outro, tornam-se assim a negação da negação. O outro não surge no horizonte, a possível presença se dá apenas como sombra, o prazer anônimo ou quase anônimo, o sexo transformado em uma forma de contrato similar àquele feito com editores ávidos por livros facilmente vendáveis.

Na enunciação, no entanto, o zelo linguístico trai a voz do enunciador ao referir-se à característica da empregada (professora) - “e tinha ligeiras náuseas quando usava mesóclise” (CS, 101) e ao discurso verborrágico da nora, a quem dirige insultos – para quem era importante “agilizar o conceito de fala” (CS, 103). O texto busca o promíscuo, porém alcança um tom desencantado entre o patético e a crueldade. A velhice esconde suas marcas e assume o gozo como maldição.

Como não poderia deixar de ser, as referências alusivas à literatura estão presentes. Dessa vez novamente a referência a Joyce (o nome da empregada), a Wittegenstein e principalmente a Chesterton que tem uma frase citada pela narradora “Se a tua cabeça te ofende, corta-a fora” dentro de um contexto bem expressivo: “Foi o que aconteceu com a minha, porque para mim depois de todas as reflexões sobre a sordidez, a ignomínia, a canalhice da humanidade, prefiro esquecer que um Chesterton existiu.” (CS, 102) É por sentir-se ofendida que Leocádia corta a própria cabeça, escondendo-a com uma fronha de rendas francesas a fim de não revelar aos amantes as rugas do rosto. Claro que a ação impiedosa do tempo não a marcou apenas no físico, mas cumulou-a de experiências negativas a ponto de expressar um desencanto radical com a vida: “sei tudo sobre crueldade, conheço Deus.” (CS, 103)

A velhice também surge como uma espécie de exercício de liberdade permitido pela estranheza da condição terminal humana. É uma alegria inconseqüente e louca propiciada pelo deslocamento e pelo distanciamento em que o velho é mantido. Tal fato justifica o pensamento de Leocádia:
Ah, como é delicioso e prático que as pessoas nos pensem estranhas... O conforto de não ser mais levado a sério, esse traquear de repente e sorrir como se não fosse com você, e poder acariciar um peixe morto na peixaria e chorar diante de um cão faminto. É bom ser estranho e velho. (CS, 105)

Dessa vez Eulália parece ter gostado da história, considera o fato de Leocádia ter terminado revelando ter reencontrado o rosto e a felicidade na promiscuidade. Aconselha então Stamatius a descansar porque já era sábado. Stamatius, entretanto, inicia a próxima história contrariando o pedido da amante.

"Sábado"

Se os apelos sexuais de Eulália não surtem efeito, as suas palavras ajudam a expansão de uma estrutura literária que parece resultar de um processo criativo organizado mediante a produção de ondas de significantes formadoras de zonas de significados, que, por sua vez, proliferam, valendo-se de elipses e desconexões, como se fundassem um universo em expansão caótica. Este conto toma como título a última palavra dita por Eulália no texto anterior, dando um andamento cíclico ao ritmo narrativo.

Não falta nele referência a livros. O narrador cita O suicídio – modo de usar e e refere-se de modo vago a outro autor − “lembro-me de alguém em algum livro ‘os gigantes devem ser mortos porque são gigantescos’”. (CS, 111)

A observação final de Eulália denuncia o hermetismo da composição. Mais uma vez ela fornece o mote para ao próxima história:” tô triste...” (CS, 112)

"Triste"

O protagonista dessa história é um estranho e anônimo. Alguém que não participa do comércio dos homens, diz sempre coisas sem nexo quando encontra outra pessoa na rua, está sempre com um maço de papéis em branco nas mãos, sempre reclamando da dificuldade de ser compreendido, como se fosse um retrato caricato de um genial escritor cujo pensamento estivesse fora do alcance de qualquer leitor.

A ansiedade dos habitantes da cidadezinha por novas palavras é rompida quando o homem começa a gritar – quero fudê! A linguagem chula quebra o pacto de convivência. Soa não com a naturalidade de um desejo represado por longo tempo, mas parece carregada com um teor ofensivo grave e imperdoável, corresponde a uma transgressão às noções mais elementares de comunicação, ao rompimento com as formas protocolares do convívio social. A foto de um menino segurando um porco, contendo no verso a inscrição “meu primeiro amor”, documenta um amor fora dos parâmetros da aceitabilidade: a zoofilia parece desterrar a humanidade da vítima.

No final do conto Stamatius, que leva Eulália às lágrimas, retoma o controle absoluto. É ele quem determina agora o rumo, quem decide quando parar e quem dá o mote para o próximo passo. “eu paro aqui. No oco das astúcias” (CS, 115). E a próxima narrativa denomina-se “De outros ocos”.
"De outros ocos"

É um longo e dramático monólogo de Tiu sobre a morte, sobre o ato da escrita, sobre perdas, sobre derrelição. Oco é um dos temas recorrentes na obra hilstiana, como pode ser comprovado pela última narrativa de Kadosh, intitulada justamente “O oco”. (HILST, 2002, 125-200) Possui, no entanto, marcas que o distanciam das histórias anteriores, uma vez que elas são autônomas em relação às cartas, já este relato não possui uma estrutura independente em relação às missivas, uma vez que Stamatius retoma elementos anteriomente citados, assumindo o duplo papel de narrador e personagem, criador e empregado de Karl simultaneamente. As epígrafes de Bataille e Cioran colocadas em seu início contribuem para aumentar a ambigüidade.

Stamatius e Eulália estão sozinhos em uma praia. Ele vendeu os livros, largou as tralhas, tudo. Stamatius lembra-se das atitudes de Karl e julga-as de modo negativo. Seu discurso está impregnado de sexualidade, tanto como reminiscência quanto de modo concreto, expresso por seu relacionamento com Eulália. Em muitos momentos o discurso do corpo em sua decrepitude coabita com a incessante recorrência à busca existencial: “Vou perguntando mas não espero respostas, quero continuar perguntando mas sabendo que não vou ouvir vozes, nem Daquele lá de cima que há muito viajou a caminho do Nada”. (CS, 124-125) Procura que em alguns momentos apresenta traços místicos, como naquele em que, ao evocar Hildegarde Von Bingen, Stamatius, refere-se a luzes em seu olho esquerdo. Isso após desqualificar a morte, chamando-a de “manhosa, meretriz, rascoa” e afirmar que ela quer que ele prove do bacalhau dela: nem a morte escapa da linguagem obscena.

A velhice apresenta sua face. O corpo se escreve com a linguagem da decomposição. Stamatius pensa em todas as tripas – “Na cloaca deste embrulho que é o corpo”. (CS, 126)

O ato de escrever se dá por proliferação. Stamatius escreve sem parar, quanto mais distante de qualquer resposta, mais intensa, caótica e fragmentária torna-se a escrita. O texto, concebido como uma estrutura incomum, vigendo fora dos padrões literários dominantes, é concebido como uma bizarria. As palavras assumem uma feição de visões místicas de uma realidade estilhaçada cujo fluxo voluptuoso é visto como uma orgia de fosfenas.

Se no plano interno Stamatius alcança uma espécie de transcendência, jamais se afasta do apelo dos sentidos, principalmente da força instintiva, brutal, animal de uma carnalidade obsessiva emanada da presença de Eulália, apesar de vislumbrá-la como pura irrealidade, projeção dos seus próprios desejos.

A identidade, apesar de uma consciência poderosa, linguagem-senhora de todas as personagens da narrativa, desaba, não consgue evitar a absorção do eu e todas as suas formas (Stamatius/Karl/Eulália), inquietudes e contradiçãos por um caos que tudo anula e iguala.
Eu despencando num caos laranja. Pinceladas ruivas dentro de um caos laranja. Bewusstsein. Bewusstsein, é muito mais Consciência que consciência. Consciência é sibilino, lânguido. Bewusstsein é grosso, quente. Como é, na realidade, a Consciência. Ter consciência é bewusstseiniano. Pesado, chumboso, ardente. Estou em chamas. Sou mortal e fundo e consciente e ainda assim devo acabar a vassouradas, num canto, igual a um rato. Nem tanto, me diz um outro. Pode ser na cama até. Dizendo coisas. (CS, 134)

A constante referência aos mais diversos autores é uma característica que se mantém neste relato. Assim, Lawrence, Henry James e Proust são referidos no meio da narrativa.

A voz demoníaca de Eulália ressurge e busca intervir na criação. Mais uma vez Stamatius cede à tentação. Descreve uma cena de sexo com a amante aparentemente atendendo a um pedido dela. Só que o relato não é centrado na descrição do ato sexual, mas nas lembranças que vão surgindo durante a sua realização, nos dados fragmentários de uma possível biografia de Stamatius.

A questão editorial, a visibilidade da obra, a sua aceitação, o valor a ela atribuído provocam uma reação indignada de Stamatius que faz uma crítica endereçada à valorização de elementos superficiais, puramente mercadológicos. Tal visão surge em diálogo com Karl que sustenta um ponto de vista de cumplicidade com o sistema editorial, razão pela qual é odiado por Stamatius:


Ponderava: Tiu, não tem essa não de ascese e abstração. Escritor não é santo, negão. O negócio é é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume. Continua: Tiu, com a tua mania de infinitude quem é que vai te ler? Aposto que serei o primeiro na vitrina e tu lá nos confins da livraria. (CS, 138)
A proposta literária do narrador choca-se com a imposição do mercado. Sua sensibilidade encontra-se insulada em um gueto, circulando num universo restrito a quase iniciados. Ao ceder à necessidade de ampliação de público e de busca de reconhecimento de seu valor, o autor parece anular a validade da própria criação. Esta é vista como salvação, redenção do espírito, uma tentativa de superar a morte e o desamparo da condição humana, por isso Stamatius pode pensar autocriticamente: “Consciência de estar aqui na Terra, e não ter sido santo nem suficientemente crápula. De inventar, para me salvar.” (CS, 141-142)

A necessidade de transcendência impede a concessão ao barateamento e à falsificação do literário. Prova da incapacidade de revestir a linguagem do verniz da superficialidade necessária ao êxito comercial fica patenteada no convite feito a diversos amigos para que lhe contassem histórias bem sórdidas. A insatisfação de Stamatius advém de um grau de exigência extremamente elevado. Os amigos contam histórias pornográficas, sujas, mas consideradas chatas, entediantes, pois não alcançam a dimensão de histórias de putarias, entendidas como experiências radicais que pervertem e ampliam o horizonte humano. Stamatius/Hilda Hilst não conseguem o registro pornográfico, a inventiva, a inquietação, a linguagem, tudo supera os limites estreitos de um erotismo cristalizado em fórmulas tão gastas quanto as perversões sexuais. É na falha do projeto pornográfico que a literatura hilstiana assume uma dimensão libertária, redimensionando o corpo e o sexo, transformando transgressão em transcendência, expelindo deus e demônio pelos poros da narrativa, que respira sarcasmo e abandono, perversão e luminosidade. O demônio pode surgir sem culpa ou medo, nu, de pau mirrado, citando versos de William Blake. O sexo atravessa todas as esferas do pensamento. Deus e demônio possuem pau. Os deuses falocêntricos organizam um universo machista, no qual a mulher – Eulália – é sombra, projeção, oco, buraco, espaço de descarga, acionado ou apagado por um narrador impiedoso e perdido.

O conto termina com o narrador matando Eulália, o seu duplo, reconhecidamente considerada como “...meu ganido-mulher-diante-da-vida de um jeito pungente e delicado, submisso e paciente.” (CS, 148)

As últimas palavras, no entanto, servem como senha para a última parte da obra. Ao dizer que vai engolindo Eulália e se demitindo, o narrador acrescenta que restarão os ossos dele e pergunta se deve poli-los antes de sumir. As histórias finais do livro parecem responder ao processo de canibalismo apontado.


Novos antropófagos

A última parte do livro, "Novos antropófagos", apresenta oito contos curtos e uma espécie de brevíssimo epílogo. A concisão liga-se estreitamente a um verdadeiro teatro de crueldade alimentado por pequenos episódios banais que explodem em extremados e minimalistas gestos de violência. Podem ser lidos como pequenas pílulas de veneno concentrado, ou como setas mínimas com curare na ponta, fatais para o leitor. Aqui, Hilda exercita o dom da síntese, excede na aproximação do horror e faz da linguagem literária seu campo de batalha, de onde, afinal, sai vencedora.

O primeiro conto é uma história sórdida na qual um homem mata a esposa com uma facada no peito. A violência irrompe em meio ao tédio e ao ressentimento cotidiano de um casal.

A segunda narrativa é um exercício estupendo de humor negro construído com a duplicidade de significado do termo fôlego. O protagonista vinga-se do amigo que condenava constantemente o seu estilo, propondo-lhe uma travessia que redundará na morte do crítico infeliz. A metaficcionalidade hilstiana deixa entrever nas características atribuídas ao estilo do narrador uma referência às do conjunto da obra da própria autora:


...tu não tens fôlego, meu chapa, tudo acaba muito depressa, tu não desenvolve o personagem, o personagem fica por aí vagando, não tem espessura, não é real. Mas é só isso que eu quero dizer, não quero contornos, não quero espessura, quero o cara leve, conciso, apressado de si mesmo, livre de dados pessoais, o cara flutua, sim, mas é vivo, mais vivo do que se ficasse preso por palavras, por atos, ele flutua livre, entende? (CS, 154)

Na terceira história, a violência brutal eclode entre um casal. O homem impede a mulher de vestir uma blusa fininha, porque os bicos dos seios ficavam visíveis. Contudo, resolve ceder aos desejos do cônjuge, permite que vista a blusa e vão passear pelas ruas. Inesperadamente, decepa-lhe o bico do seio esquerdo e coloca-o sobre o sorvete que saboreava. O conto termina de modo grotesco, o bar ficou conhecido como Bar do Bico e o narrador reproduz uma fala hipotética de maneira mórbida e debochada: “Sorvete, dona? Com bico ou sem bico, madama?” (CS, 154)

A próxima história é construída na mesma linha sórdida das anteriores, só que sem a presença de qualquer forma de humor negro. A trama explora o relacionamento entre uma menina entre onze e doze anos e um homem bem mais velho. O exercício de pedofilia tem na menina o agente sedutor e provocativo. É dela a iniciativa da abordagem e das ações. Age com segurança e de modo absolutamente profissional. Conduz o homem, determinando a relação, transformando-o em um pedófilo passivo, dando-lhe prazer e aniquilando-o.

A quinta história é um assemelha-se a um exercício de non sense. No início do conto somos apresentados ao protagonista que parece ter como objetivo na existência uma paz, uma quietude absolutas. Revela horror ao sexo e nojo de corpos nus. Sua ojeriza era tão violenta que se estende às idéias, percebe que as melhores também possuíam cheiro de sexo. Então só lhe restava esvaziar a mente. No entanto, a narrativa termina com o leitor da Ortodoxia, de Chesterton, sodomizado por um garotão. O percurso do protagonista, da negação do sexo ao esvaziamento da mente, passando pela negação das idéias, é, na verdade, uma fantasia que serve de refúgio à incapacidade de enfrentar o seu homossexualismo.

A sexta história é um relato clássico de iniciação sexual, organizado de modo bem convencional para o padrão hilstiano, sem vôos estilísticos, sem violência, estado agônico. Há uma sexualidade de descoberta doméstica à qual pode ser atribuída mais um caráter de travessura do que de transgressão. A sua estrutura concisa, linear e previsível faz com que destoe das outras histórias de “Novos antropofágicos”.

O sétimo relato explora o jogo entre a idéia de entrar e sair do corpo humano. O sexo não se conjuga com coprologia. Um peido adolescente interrompe a relação entre o protagonista adolescente e a empregada, Nena, tão desejada.

Eulália, que parecia para sempre apagada da história, ressurge para manifestar nojo e repulsa pelo mau gosto do narrador que a despacha também de modo flatulento.

A ultima história explora um humor delirante. O diálogo entre o poeta perfeccionista, que há dez anos tentava escrever o primeiro verso de um poema, e a mulher dele é totalmente hilário. A mulher não entende nada do que o poeta fala e, por sua vez, o verso é horrível: “Igual ao fruto ajustado ao seu redondo...” A tensão entre o casal, os recursos agenciadas na elaboração do relato, o humor corrosivo e metaficcional, o absurdo dos diálogos, entre outros elementos, transformam o conto em uma pequena obra prima.

Após esse conto, surge um minúsculo texto que acumula as funções de epílogo de Cartas de um sedutor e de retrato sintético de Stamatius: telúrico, único, imerso nos sonhos de deuses e da literatura, cruel porque desesperado por gritar e receber por eco a desesperança. Seus sonhos de favas negras e asas semeiam à terra de uma nova linguagem.

Notas

1) As ideias de Foucault sobre sujeito e subjetividade são fundamentais à compreensão do caráter proteico do narrador hilstiano. Disse o teórico francês sobre o sujeito algo que aparece com nitidez na obra hilstiana: “...no curso de sua história, os homens jamais cessaram de se construir, isto é, de deslocar continuamente sua subjetividade, de se constituir numa série infinita e múltipla de subjetividades diferentes, que jamais terão fim e que não nos colocam jamais diante de alguma coisa que seria o homem.” Apud, REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. São Paulo: Claraluz, 2005, p. 85

2) Vale notar que mil exemplares da primeira edição de Cartas de um sedutor foram devolvidos à Editora Pauliceia.



Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.
BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Trad. Tânia Pellegrini. 5ª ed. São Paulo: Papirus, 1991.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 4ª. ed. Trad. Maria Helena Kühner. São Paulo:
Bertrand Brasil,
HILST, Hilda. Cartas de um sedutor. São Paulo: Globo, 2002.
KIERKEGAARD, Soren Aabye. Diário de um sedutor. Trad. Carlos Grifo. São Paulo: Abril
Cultural, 1974.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.
REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. São Paulo: Claraluz, 2005.


* Publicado na Revista Travessias, nº 9, out.-2010, UNIOESTE, Paraná.

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Nas esquinas da modernidade




Uma cidade apresenta múltiplas imagens. Há sempre uma projetada para ser percebida à distância, dando-lhe reconhecimento externo, transformando-se em espécie de retrato oficial capaz tanto de identificá-la quanto de falsificá-la. Outras só podem ser construídas com a inserção do indivíduo em seu interior, sofrendo a angústia das ruas que a compõem. Essas imagens parciais jamais poderão ser reunidas, porque a soma não produz significado. Nada é fixo, nada pode ser imobilizado, mesmo o concreto das construções e o asfalto das ruas mudam a consistência, a direção e a forma. Ainda que as ruas permaneçam ruínas históricas sob o chão de novos traçados, o habitante da cidade vive um paradoxo: está ancorado na mobilidade.


A velocidade das mudanças e a contínua circulação de informações em nível extraordinariamente superior ao da capacidade de assimilação poderiam tornar a cidade um ambiente inabitável, não houvesse um mapa e instruções de uso em cada consciência, ajudando-a a selecionar os caminhos e os signos capazes de movê-la.

A cidade tornou-se o lugar de todos os acontecimentos:


Acontecimento artificial, portanto, ou, mais exatamente, acontecimento urbano porque, onde quer que se produza, se produzirá sempre na cidade. Há apenas uma alternativa: ou será um acontecimento qualquer que não se poderá distinguir dos outros, infinitos, que ocorrem na cidade e que será imediatamente absorvido, assimilado e esquecido no ambiente opressivo e repressivo da cidade moderna, ou será um acontecimento diferente, um acontecimento interpretável. E, como é interpretável por excelência o acontecimento histórico, eis que qualquer acontecimento interpretável, qualquer acontecimento que não se preste a ser recebido passivamente, qualquer notícia que não seja aceita estupidamente, assim como é transmitida pelas estações de rádio ou pelos canais de televisão, encerra em si uma virtualidade, a candidatura a ser um acontecimento histórico. (ARGAN, 1995, 222)


A poesia inscreve-se como um acontecimento que busca ser reconhecido, tornar-se visível e interpretável. Constitui-se, portanto, em um acontecimento histórico, sua linguagem carrega as marcas temporais.

O poema de Cacaso, intitulado "Logia e mitologia", do livro Grupo escolar, possui elementos capazes de verificar a validade dessa concepção:

Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí. (CACASO, 2002, 163)

Antes de encerrar-se na datação explicitada no segundo verso, o poema pode ser observado como um acontecimento histórico. O ano de sua concepção corresponde ao período de existência de um regime militar no Brasil assinalado e combatido pelo autor. A tensão daquela época já pode ser observada no próprio título antitético: logia, radical grego presente em palavras correspondentes a saberes diversos, logos, razão, confrontado com mitologia, no qual entra como constituinte, mas do qual pode aparecer deslocado semanticamente se o termo for entendido como explicação para a existência de um modo anterior ao surgimento da filosofia e da ciência. Por qualquer leitura, contudo, a rima soa falsa; a assonância, dissonância, moradia em território hostil.

As metáforas zoomórficas presentes nos versos – morcegos, cabras, hienas, porco –servem como representação simbólica da opressão e do mal-estar na cidade, dominada totalmente pelos aparatos da repressão. A cidade, sob a ditadura, torna-se estigma. Todos os signos são suspeitos, toda palavra é culpada. A ideologia é a do domínio total. A vida pode ser planejada, fiscalizada, vigiada e punida. Não só as leis, os decretos-leis, os atos institucionais e toda a legislação enquadram os atos praticados na metrópole, mas também censores vasculham todas as esquinas à procura de sinais de subversão. Se as figuras da repressão à época podiam ser simplificadas no guarda, no militar e no censor, a evolução das cidades tornou-as ultrapassadas. O sistema repressivo transformou-se em um polvo, já não precisa de censores, substituídos por câmeras e tecnologias de segurança, uma vez que os programas de perpetuação do poder na cidade já vêm inscritos nas consciências.

À época em que o poema foi escrito a rede de agentes repressivos, habitantes de porões clandestinos, era vista apenas como uma parte maldita da cidade, em breve sujeita à extinção. Não havia a mais delirante possibilidade de se perceber a conexão profunda entre cúpula (área de planejamento e decisões) e porão. Não havia como suspeitar do remodelamento, do repaginamento do poder, da construção de um consórcio entre ciência, informação, capital e repressão de tal modo que a possibilidade de transformação fosse completamente negada. A mudança foi introduzida no sistema de dominação e só pode ocorrer de acordo com suas necessidades de progresso e manutenção. Logo, as cidades não somente tornaram-se uma única cidade real ou ideal, mas esta é a única formação possível, absoluta, uma realidade tecnológica, humana e metafísica. A pluralidade, ou melhor, o princípio da negação, a possibilidade de construir outros modelos, outras aventuras humanas, a polifonia só pode existir, agora, como o coral das vozes consentidas (é o triunfo do "coro dos contentes"). Um mundo virtual e midiático sobrepõe-se ao mundo dos eventos. Os fatos e os acontecimentos só podem existir como representação e os meios e modos de construir essas representações são privados, expropriados por representações fantasmagóricas, já que se tornaram insuficientes os conceitos de burguesia, governo, elite, capitalismo. Embora fundamentais para a legibilidade da cidade, já não conseguem dar-lhe visibilidade, não obtêm a mesma clareza, a mesma nitidez na descrição de seus contornos conseguida outrora. Por não existir alternativa, a cidade vive crescente angústia: ao centro de decisões opõe-se o caos, o rito sacrificial no qual a cidade perece, suas muralhas de indiferença e desprezo são arrasadas e aqueles que vivem nela a experiência de privação, prisão e exílio vingam-se furiosamente, uma vez que nenhum signo é, para a legião de párias urbanos, portador de qualquer significado.

Em "Logia e mitologia" a referência vai além dos militares: está endereçada a todos que dão sustentação ao regime. Os animais escolhidos são normalmente apreendidos como criaturas negativas: o inofensivo morcego é associado pelo imaginário popular a um ser maligno, vampiro, criatura cuja vida depende da desgraça e miséria humana. É, ainda, um animal de hábitos noturnos, simbolizando as trevas, a noite, o escuro atribuído ao regime militar. As cabras vêm adjetivadas explicitamente de modo negativo: malignas, referência à suposta natureza demoníaca atribuída a elas desde os gregos. As hienas possuem a característica de se alimentarem de carnes de animais mortos e putrefatos, cabe-lhes no poema o papel infame de seres infiltrados, natureza perversa e traiçoeira. A surrealista imagem "porco belicoso de radar" permite efetuar a leitura da forma verbal "sangra" de modo ativo, desfazendo a ambigüidade possível com a de animal imolado. O termo "belicoso" denota marcial, militar; leitura reforçada pelo substantivo "radar", último termo da expressão. Cabe, assim, ao porco a execução da sentença de morte, tarefa rotineira como pode ser deduzido da repetição do verso "e que sangra e ri".

A onipresença do domínio militar é expressa pela disposição de "centuriões sentinelas" em toda a extensão do território brasileiro: "do Oiapoque ao Chuí". Esse controle total da cidade significa um estado de servidão, uma noite que a voz estruturadora do poema concebe como "provisória".

Quando a vida amanhecer, haverá, então, a volta da liberdade, a voz poderá assumir a existência inicial, marcada pelo verso "Meu coração", metonímia do corpo e metáfora da poética romântica, marcada pelo primado da subjetividade, para a qual a liberdade é um valor absoluto e qualquer sujeição, portanto, equivale à morte.

Esse poema, representativo de uma tendência marcadamente engajada na poética de Cacaso, conforme pode ser observado na composição que dá nome ao livro em que ele foi publicado - "Grupo escolar " - e em muitas outras, porta questões subjacentes à sua proposta estética. A mais relevante é aquela que aponta para uma disputa pela bandeira da contestação ao controle da linguagem administrada pelo poder, razão de uma viva contenda com outras vertentes.

Cacaso polemiza com os representantes literários da oposição reformista, aos quais criticou de maneira contundente: "O que tais poetas da esquerda oficial ainda não aprenderam é que não há engajamento possível fora da lição modernista, onde o engajamento prioritário é o da própria forma literária, onde se desenvolve uma ação crítica no domínio mesmo da criação." (CACASO, 1997, 122) [1] A crítica acerba acusa-os de maior queda para a oratória do que para a poesia, de desleixo artístico, de prática de uma poesia autocomplacente, dotada de um populismo paternalista, demagógica, de um maniqueísmo primário, repartindo o mundo entre o Bem (os oprimidos) e o Mal (os opressores).

Observe-se a demolidora denúncia de Cacaso aos estreitos limites estéticos da poética do autor mais representativo dessa tendência:


Caso muito curioso, sobretudo pela receptividade que alcança pela audiência que preenche, é o Thiago de Mello, cujo engajamento tem qualquer coisa de macumba para turista. Sua poesia combina o ranço paternalista de nosso populismo de gabinete com uma outra tradição, bem brasileira, a do poeta-bacharel, de fluxo incoordenado e palavroso, eloqüente e comemorativo, anunciando sempre a Aurora que virá, a Esperança que não morre, o Amor que não acaba, tudo enfático e solene. A completa falta de humor que se instalou na poesia brasileira, passando por 45, pelo Concretismo etc., atinge em Thiago de Mello uma inautenticidade tão grave que quase impõe o respeito. Depois de escrever um "Estatuto do homem", que raia pelo bestialógico, aproveitou o gosto do momento e fez um poema de louvor da anistia. Não duvido que venha por aí qualquer coisa sobre os índios... No Brasil há os que fazem poesia, e os que fazem carreira de poeta. Thiago de Mello faz carreira de poeta engajado. (CACASO, 1997, 168)


Cacaso procura retomar e adaptar à nova realidade as preocupações de Mário de Andrade com o engajamento do artista reveladas em O banquete, obra da última fase do autor de Macunaíma, na qual há uma grande preocupação em dar um caráter social à obra de arte, em torná-la participante ativa dos problemas da sociedade, numa atitude autocrítica a alguns aspectos do modernismo e uma condenação tácita aos procedimentos literários isolados da empiria. Cacaso retoma a pesquisa, a participação e a liberdade defendidas pelos escritores de 22, por isso aos seus olhos a poesia limitada à mera expressão de bons sentimentos e eloqüentes manifestos contra a opressão revela-se uma falsificação do engajamento artístico, perde a validade ao construir um poema com pensamentos comuns à esquerda, porém desprovidos da inquietação da linguagem, da pesquisa da forma, além de exibir uma insuportável harmonia com o universo acadêmico. Daí o pomposo, o retórico, o convencional em uma forma artística conservadora, transformada em metrificação de slogans e palavras de ordem.

A necessidade de demarcar terreno no ambiente urbano, implica apresentar-se como signo livre de dependências estéticas ou ideológicas em relação aos poderes que autorizam a legibilidade da cidade. Distinção similar à defendida por Adorno:


Teoricamente ter-se-ia que distinguir engajamento de tendenciosismo. A arte engajada no seu sentido conciso não intenta instituir medidas, atos legislativos, cerimônias práticas, como antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o parágrafo do aborto, ou as casas de educação correcional, mas esforça-se por uma atitude: Sartre, por exemplo, pela decisão, como condição do existir frente à neutralidade espectadora. (ADORNO, 1973, 52)


Ainda na disputa por visibilidade dos signos poéticos no ambiente urbano, Cacaso voltou-se contra a cristalização de uma noção de vanguarda despregada do chão da cidade, uma vanguarda olímpica, acima das imperfeições, como se fosse tradução para a técnica poética do planejamento racionalista do espaço, uma arquitetura cujo traçado deve ser seguido pelos habitantes, um projeto destinado a ser sofrido pelos destinatários como o ponto máximo de evolução da modernidade.

O poema "Estilos de época", também inserido em Grupo escolar, representa com nitidez as objeções à vanguarda concretista:

Havia
os irmãos Concretos
H.e A. consangüíneos
e por afinidade D.P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado
E foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em sutil lance de dados:

se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados. (CACASO, 2002, 152)

A ironia do título incide sobre o tom professoral assumido pelos poetas criticados, especialmente à prática de ministrar lições de vanguarda como se houvessem descoberto um modelo matemático e único, sem o qual qualquer procedimento inovador fica desautorizado.

A virulência de Cacaso alcança os nomes dos autores concretistas, reduzindo-os a simples letras: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari convertem-se respectivamente em H., A. e D.P. Subtrai a assinatura singularizante da obra de arte e assinala o rigor e a funcionalidade de um planejamento lógico e matemático. Ou seja, uma forma implícita de condenar o reducionismo praticado pelo concretismo, a valorização objectualista da palavra em detrimento de todos os vetores que entram na construção da rede de significados do poema. Nessa crítica pode ser observada a radicalização das assimetrias entre as metáforas elaboradas por Ítalo Calvino, cristal e chama (que não são antitéticos no objeto de arte, mas diferentes modos de construí-lo) tornam-se posições enrijecidas em perspectivas opostas: a vanguarda - resultante de uma atividade programada em moldes científicos, o poema próximo a uma experiência de laboratório, e uma poesia bruxuleante, construída com a memória das ruas e a sensibilidade do artista, cujo caráter inovador somente poderá brotar da praxis poética, não se constituindo em parte de um programa prévio. O enrijecimento de postulações teóricas é representado pelo verso "dado é a palavra dado", limite de uma poética incapaz de enriquecer o legado mallarmaico, cuja filiação é sublinhada no verso "em sutil lance de dados", e da qual torna-se prisioneira ao cair em um universo circular sob a forma de uma linguagem tautológica apontada por Cacaso.

A imagem triangular do final do poema reforça todo o conteúdo crítico dos versos anteriores; mais que imagem geométrica é uma representação da onipotência divino-literária, remetendo à Santíssima Trindade.

A crítica realizada no poema aparece em inúmeros textos críticos de Cacaso, talvez em nenhum momento de maneira mais nítida do que no ensaio "A atualidade de Mário de Andrade", cuja leitura é fundamental para o entendimento da concepção crítico-teórica do autor de Lero-lero:


O poema é considerado "concreto" sempre que o seu significante assuma o caráter icônico, de aparência imediata, das artes visuais. Com a abolição decretada do verso em geral, a noção de experimento em poesia vai se confinar e se confundir com o trabalho sobre a matéria gráfica do texto; a palavra passa a interessar pelo seu lado de fora, a sintaxe torna-se espacial. E o nexo do poema passa de interior a exterior. A atualização de meios expressivos não está nesse caso, como esteve no romantismo e no modernismo, associada à intenção cognitiva e crítica, mas visa sobretudo inserir a arte no ritmo do tempo, na era da indústria moderna, com seus processos instantâneos e massificados de comunicação. As técnicas do concretismo são as mesmas da publicidade moderna, dos anúncios, com a manipulação da sonoridade expressiva e do universo da visualidade. A noção de experimento, combinada com a pretensão de radicalidade, é confinada à sua dimensão técnica, tomada como plena, e estamos diante da inovação pela inovação, da pesquisa entendida como tarefa intelectual, desprovida de necessidade intrínseca e consequente. CACASO, 1997, 164-165)


O concretismo, aos olhos de Cacaso, tentou dar legitimidade estética à linguaguem da publicidade, tomando o código visual como única linguagem poética ao expurgar a poesia de qualquer possibilidade de verso, tido como técnica ultrapassada. A vanguarda, com isso, instaurou uma nova retórica sintetizada numa espécie de manual de instruções: o plano-piloto para poesia concreta. A cidade tecnológica, a ideologia industrializante, a presença do mercado (através de estratégia de manipulação e consumo) e a transformação dos signos urbanos em fetiche estético ajudaram a engendrar o conteúdo programático do grupo Noigandres.

A irrupção do concretismo como linguagem modernizadora segue as mesmas necessidades reguladoras do projeto arquitetônico da modernidade implantado por Le Corbusier. O remodelamento do espaço urbano significou banir a concepção aparatosa, ornamental, presa a técnica de "vestir" a cidade e a deliciar o olhar. A planta moderna moldou-se sobre racionalismo, funcionalismo, economia, síntese e leveza. O planejamento anexou estruturas fordistas e tayloristas, transformou a casa em "máquina de morar". A concepção de intervenção reguladora, a valorização da planta como diretriz a ser aceita pelos habitantes fica evidenciada na afirmação de Le Corbusier "A planta é geradora" (LE CORBUSIER, 2002, XXX), esclarecida mais adiante no mesmo texto, sob o título "Os traçados reguladores": "A obrigação da ordem. O traçado regulador é uma garantia contra o arbitrário. Proporciona a satisfação do espírito" (LE CORBUSIER, 2002, XXX). Esse projeto espacialmente revolucionário, remanejando formas e volumes, sustenta-se numa ideologia do progresso, do otimismo empreendedor. Quando o pai da moderna arquitetura afirma - "A moralidade da empresa se transformou; a grande empresa é hoje um órgão sadio e moral" (LE CORBUSIER, 2002, 203), mais do fornecer uma certidão de boa conduta, uma avaliação positiva, toma de empréstimo às formas economônicas os conceitos plásticos de remodelagem do espaço urbano. A modernidade é pensada como o ponto mais avançado, o caminho a ser seguido, uma construção exemplar, à frente do coletivo e servindo-lhe de parâmetro. A cidade não comporta conflito, discussão, elementos aleatórios, desordenadas, fora do controle. A planta é traçado regulador e determinador dos caminhos individuais. Os responsáveis pelos traçados, nesse caso, só podem ser pequenos deuses ou indivíduos eleitos, acima dos demais cidadãos a quem cumpre apenas sofrer os atos mágicos emanados de especialistas do bem-estar, do bem-viver e do urbanismo.

Se a valorização máxima da expressão livre, dos ritmos próprios e originais e do caráter anti-oficial do modernismo apontavam criticamente para todas as regiões da cidade, a vanguarda concretista concentrou-se em áreas nobres, reservadas à movimentação dos eleitos, daqueles que, mais do que exprimir a modernidade, monopolizavam a sua prática como únicos engenheiros e proprietários de novas linguagens.

O modernismo não se constitui na única referência histórica de Cacaso. Há uma presença constante do sopro romântico em suas composições, ora sob a forma de paródia, ora sob a forma de uma nítida filiação. Observe-se, como exemplo da segunda alternativa, o poema "Já já", pertencente ao último livro do autor:

Se a morte é mesmo certa
que seja também pra já
mas antes quero ouvir na laranjeira, à tarde,
cantar o sabiá

Se vier na flor dos anos
pois então que venha já
mas antes quero as três mil mulheres maravilhas
do sabonete araxá

A flor da idade floresce?
que venha a morte já já
mas que tenha, tomara, o mesmo perfume
da flor do maracujá

Bem-vinda bem-vinda a morte
que a morte venha já já (CACASO, 2002, 33)

A curta forma adverbial da palavra que funciona como título ao ser duplicada expressa uma temporalidade acelerada, o aproveitamento rápido e integral da existência condensada no minuto que passa. Instantaneidade sob a forma de uma música cuja alegria do ritmo poderia contrastar com a presença da morte, inscrita em todas as estrofes como marca de sua inevitabilidade, se a esta não tivesse sido subtraído o aspecto assustador.

O primeiro verso do poema relativiza o peso da morte através de uma estrutura condicional - "se a morte é mesmo certa" - capaz de suavizar o tom absoluto do tema. A sua vinda, portanto, resulta menos de uma inexorável finitude humana e muito mais da invocação feita pelo eu-lírico reiteradamente ao longo da composição. Algo, no entanto, antepõe-se entre o chamado e a morte: a vontade de viver três experiências distintas. Os terceiros versos dos quartetos rompem o predomínio da redondilha maior; apesar de introduzidos pela conjunção mas, usada para estabelecer contraste com a vinda da morte, explicitam as condições estabelecidas pelo eu-lírico para que tal ação ocorra.

No primeiro quarteto, o desejo do eu-lírico remete ao lirismo saudosista do poema "Meus oito anos", de autoria do poeta romântico Casimiro de Abreu: "Que amor, que sonhos, que flores, /naquelas tardes fagueiras / à sombra das bananeiras, / debaixo dos laranjais!" (ABREU, s/d, 41) A essa referência acrescenta-se um dos símbolos fundamentais do romantismo brasileiro para compor a musicalidade e dar colorido à cena natural: o sabiá (cuja inserção no poema faz aparentemente menção a Gonçalves Dias). Os elementos tomados à flora e à fauna para a expressão do desejo do eu-lírico revelam os limites de qualquer valorização de motivos naturais como formadores de uma suposta brasilidade. A poesia não está naquilo que se olha, mas no próprio modo de olhar. O desenho poético é construído a partir do espaço urbano que tanto fornece a linguagem com a qual se escreve a Natureza quanto o código que permite selecionar e inventar o passado. Conhecer-se é também se reconhecer em outros signos da cidade. A natureza paradisíaca, a pureza de seus frutos , o canto de um pássaro, a fruição do tempo que passa longe do tumulto urbano, tudo é uma estrutura anelante do tumulto das ruas. Quanto maior é a asfixia das metrópoles, maior a necessidade de uma utopia naturalista. É o local de inscrição do poema uma das marcas diferenciadoras entre o romantismo de Casimiro, eivado de sentimentalismo e nostalgia, e o de Cacaso, desafiador e hedonista. As grandes mudanças no ambiente urbano, apontadas por Argan, sustentam essa distinção: "Hoje a cidade não pode mais ser considerada um espaço delimitado, nem um espaço em expansão; ela não é mais considerada espaço construído e objetivado, mas um sistema de serviços, cuja potencialidade é praticamente ilimitada." (ARGAN, 1995, 219)

O ato de criar também é um processo de demarcar territórios no labirinto urbano. Demarcar-se, no presente, de práticas similares implica também investir e inventar territórios históricos. Por esse caminho o passado não é uma província remota, mas uma presença no agora das formas do antes. Como o tempo não restitui os seus significados, essa presença é o preenchimento da ausência com a invenção de significados para os signos flutuantes da historicidade. Se a própria vanguarda concretista inventa uma tradição - Pound, Joyce, Mallarme, Oswald, Sousândrade - também Cacaso recorta do passado poetas como se fossem ruas de passagem para alcançar a própria identidade.

A segunda estrofe constrói-se em torno de citação da "Balada das três mulheres do sabonete Araxá", de autoria de Manuel Bandeira, mediante um processo de intensificação representado pela multiplicação das mulheres e pelo deslocamento do substantivo maravilhas para a função de adjetivo, o que remete ainda para a presença da indústria cultural, assim as mulheres do sabonete araxá convertem-se também em mulheres-maravilhas, representação mítica da mulher sob o capitalismo norte-americano. Recupera-se poeticamente a área dos luminosos urbanos, da propaganda impressa, do anúncio como linguagem da modernidade. A mitologia urbana é caligrafada em textos de embalagem de produtos industriais, suas formas produzem o sonho, acendem desejos. O mito nasce do prosaico. Cacaso incorpora a síntese da poética bandeiriana: a poesia parece ser desentranhada do chão do cotidiano mais prosaico e brotar inesperadamente, num súbito alumbramento.

O último quarteto marca a irrupção da morte, mas não há nele nada de assustador, em que pese a mudança assinalada no primeiro verso, sem a forma condicional das estrofes anteriores. Embora aconteça em plena flor da idade, a vinda não desperta temor nem gera um tom dramático. O aspecto pungente é amenizado pelo perfume da flor do maracujá. Fruto e morte partilham o terreno da natureza, identificada, através da flor, como brasileira.

Cacaso retoma a preocupação romântica com a valorização de signos que possam funcionar como demarcadores territoriais, como pode ser verificado no poema "A flor do maracujá", de Fagundes Varela: "(...)/ / Pelas tranças da mãe-d'água / Que junto da fonte está, / Pelos colibris que brincam / Nas alvas plumas do ubá, / Pelos cravos desenhados / Na flor do maracujá. / / (...)" (VARELA, 1971, 90). A último estância do poema é um ofertório, no qual ao invés da amada surge a morte e condensa-se o conteúdo das estrofes anteriores.

O poema funciona estruturalmente como uma canção, marcada pela presença de três estrofes curtas seguidas do dístico final e pela visível associação com a música, assinalada por diversas formas de reiteração que lhe dão um ritmo leve e veloz.

O romantismo foi o responsável pela reintrodução da canção na poesia ocidental, particularmente da forma popular e folclórica. Isso justifica a presença de várias referências a autores e símbolos pertencentes a esse período. Por outro lado, Manuel Bandeira talvez seja o poeta modernista mais imbuído de uma musicalidade natural, inata ao seu processo criador. O poema, contudo, não se limita a fornecer o chão histórico no qual se desenha a poesia de Cacaso. A morte, ainda que inevitável, não abafa a alegria de viver, curva-se ao desejo do eu-lírico. A vida é tão forte, tão intensa, que só resta à morte prestar-lhe obediência. A morte, por esse viés, não rima com dor, sofrimento, desespero romântico ou com "a-vida-que-não-foi" bandeiriana. Ela pode vir com a velocidade que quiser porque o eu-lírico vive em plenitude. Ao contrário da espera anunciada nos últimos versos do poema "Consoada", de Manuel Bandeira – "Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar. " (BANDEIRA, 1973, 221) ¬–, o eu-lírico em "Já já" não possui nenhum motivo para esperá-la, para viver como se fosse um bom menino fazendo o dever de casa, deixando tudo arrumadinho e com medo de não ter feito a coisa certa. Não poderia fazê-lo, afinal vive a flor da idade. A vida se irradia por todos os poros.

Nada impede a percepção da necessidade de uma crítica a monumentalização do passado. Ela aponta para a sobrevivência de formas românticas como sedimentação de uma cidade em ruínas, chão onde não ocorrem mais eventos, cuja sobrevida significa um processo de mumificação e sacralização canônica, significa ainda transformar os poemas de pulsantes e renováveis possibilidades de interpretação em troféus e medalhas de significados enrijecidos em antologias de dupla natureza: vitrina e túmulo. Cacaso, na esteira de prática modernista, pode parodiar essa tradição. É o que concretiza no poema intitulado "Jogos florais":

I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

II

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?) (CACASO, 2002, 157)

As palmeiras continuam a expressar nacionalidade, porém já não estão infladas da visão ufanista romântica e bacharelesca. O canto perde beleza e majestade, o humilde e prosaico tico-tico substitui o sonoro sabiá. Este de símbolo passa a estorvo: além de emudecer, torna-se uma praga a furtar comida. Através dessa ação nociva no plano simbólico o autor denuncia a ingenuidade da perspectiva nacionalista na literatura, a crença romântica prolongada em vertentes modernas de literatura engajada de que o nacional corresponda necessariamente a um valor positivo. O sabiá destronado da imagem idílica e flagrado em ato infame é a tradução da idéia de que o nacionalismo naturalista é um signo da ideologia da classe hegemônica. A nação não corresponde a um conceito natural e unificador de todos os habitantes da cidade; ao contrário, é o palco no qual as forças sociais travam constantes batalhas. Desde a reforma de Haussmann na Paris do século XIX, isso tornou-se vísível nas ruas: "Isso faz do bulevar um perfeito símbolo das contradições interiores do capitalismo: racionalidade em cada unidade capitalista individualizada, que conduz à irracionalidade anárquica do sistema social que mantém agregadas todas essas unidades." (BERMAN, 1992, 154)

A modernidade surge de modo negativo, como perda de autenticidade e valor. A imagem da água que em vez de transformar em vinho vira vinagre metaforiza a modernidade como queda. A razão não realiza o sonho de progresso para todos, como já haviam percebido Adorno e Horkheimer: "O absurdo desta situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão da sociedade racional". (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, 49)

Berman propõe a existência de um dualismo constitutivo da formação da modernidade:


Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao "modernismo", encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da "modernização", um complexo de estruturas e processos materiais – políticos, econômicos, sociais – que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporânea dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno. (BERMAN, 1992, 129)

No poema de Cacaso, no entanto, o dualismo não aponta para a fusão entre modernismo e modernização. Ao contrário, parece claro o caráter beligerante entre as duas faces da modernidade. A relação entre modernismo e modernização é bastante complexa, são ao mesmo tempo faces da modernidade, professam intenções progressistas e protagonizam, simultanemante, um combate de formas antagônicas. Ora o modernismo tenta a conciliação, assumindo a tecnologia arquitetônica da modernização e seu processo acrítico de domínio sobre a natureza e evolução incessante das formas da cidade - proposta contida na estética do fascismo, do concretismo e de outros movimentos em que se busca a homologia entre o pensamento e a administração do espaço urbano -, ora volta-se contra a apropriação da legenda da modernização por poderosos e iluminados projetistas que subvertem os efeitos das promessas iluministas ao fornecerem exclusão e invisibilidade para a maior parte dos habitantes da polis e cumprirem o ideário apenas para uma espécie de nova aristocracia alojada em bunkers urbanos como uma corte imperial num zoológico.

Pertencente a Grupo escolar, publicado em 1974, a modernização contestada é especificamente o processo de planejamento burocrático e imperial de uma ditadura militar, cuja sustentação foi forjada por promessas de progresso. É interessante como as formas mais arrojadas do desenvolvimento econômico recorrem à linguagem teológica: "milagre brasileiro", eis o signo da modernização sofrida por Cacaso e sua geração. A incorporação do teológico não se restringe somente à época ditatorial, à censura e à engenharia megalomaníaca de obras faraônicas, de visibilidade barroca e majestática sob a forma de técnicas urbanísticas sofisticadas. Diante da cidade única, do pensamento único, da programação do destino via genoma, da domesticação de qualquer rebeldia, da construção de um padrão universal de vida, do seqüestro da ciência pelas linhas de financiamento de pesquisa, da cumplicidade da intelligentzia cooptada em nichos acadêmicos, midiáticos ou políticos, da confusão entre os princípios provincianos da política norte-americana e o simulacro de democracia exportado para todos os povos como mercadoria-balsâmica empacotada pelas empresas imperiais e agências de terroristas oficiais do Império, torna-se difícil perceber que formas de racionalidade podem sustentar o paradoxo em que caiu a modernidade: o caráter absoluto, imútável, imperial, uma rede que não pode ser rompida, um imperativo categórico kantiano, um fluxo eterno de poderes dispersos e cruéis, a impossibilidade de outros possíveis, um mundo com a forma definitiva, cristalizada, oxidada. Esse existir onipotente transformou a modernidade em nova divindade. Se Deus estava morto, não havia necessidade de ser ressuscitado. Isso não aconteceu sob a forma canhestra de uma ciência-franskestein como se pensava anteriormente, mas sob a forma reticular de uma labirinto onde se leva uma vida inautêntica, ambiente tão flutuante que pode ser identificado como modernidade terminal ou pós-modernidade, sem que seja modificado o mal-estar. Felizmente a cidade não está mais sob controle (se é que algum dia efetivamente esteve) de planejadores: há guetos, áreas não-administráveis, zonas sombrias, áreas móveis, novas, loteamentos clandestinos, territórios não demarcados. A cidade expande-se à revelia de seus habitantes.

Eucanaã Ferraz registra com propriedade essa metamorfose urbana:


A pluralidade é o corpo da cidade. A dispersão é seu modo. Sua economia é o excesso. Seu mecanismo ensaia uma aberrante perfeição, já que, enquanto máquina, parece haver eliminado a outrora necessária presença humana para conduzi-la, consertá-la, alimentá-la com novos dados, interrompê-la, etc. A cidade tornou-se um organismo tão perfeito, tão complexo, que experimenta – e aqui contrario o mais básico dos conceitos sociológicos – uma condição de verdadeira natureza. Seus signos são de tal maneira específicos, suas leis obedecem a uma ordem tão interna, que cada vez mais os os campos de saber procuram estabelecer novos métodos para penetrar essa espécie de outro mundo, esse misterioso planeta, esse perigoso fundo do mar - a cidade. (FERRAZ, 1978, 148)

A poesia marginal aponta para a mudança do plano da cidade ao forjar uma prática capaz de recusar o lugar marcado e criar o seu próprio espaço como um acontecimento.

A segunda parte (que pode ser lida como poema autônomo) leva a paródia aos limites da brincadeira, da blague. Avança além do prosaico e parece aproximar-se do terreno estranho à arte, cuja demarcação, no entanto, é traçada com as linhas do desejo de poesia. Demarcação observada por Argan: "Na atual condição da cultura admite-se até (por exemplo, nas poéticas dadaístas) que o mesmo objeto possa ser, simultaneamente, arte e não-arte, bastando para qualificá-lo ou desqualificá-lo como arte a intencionalidade ou a atitude da consciência do artista ou, até, de espectador." (ARGAN, 1995, 20)

Um mecanismo de silenciamento apaga a invocação a Palmares. O ambiente urbano foi pervertido por vozes de ocupação. A resistência esvazia os significados e repousa num exercício de metalinguagem que alia o non-sense à infantilização com raízes no primitivismo modernista. O poema adquire um tom farsesco próprio a um folguedo popular. O desalinho da poesia radica numa fuga anárquica, a poesia sobrevive encurralada em becos despidos de habitabilidade, refúgios à prática inquisitorial dos novos controladores do centro nervoso da cidade. Aparentemente a insegurança, transformada em esquizofrenia, alcança até a norma culta, colocando em dúvida as prescrições ortográficas emanadas por legisladores gramaticais que depuram a linguagem de erros e ousadias. Surge, então, de modo imprevisto uma poesia de resistência. A paródia de Cacaso incorpora o humor e a ironia como contraponto à seriedade reinante na sociedade. A alegria dá um novo sabor ao signo poético. É sob o reinado da inversão, da irrupção do lúdico, do riso que o ar sombrio é contestado, a gramática subvertida e a coerência da linguagem científica corroída. A contestação não ganha força por obedecer a forças canônicas de oposição, seu poder resulta de uma poesia que não reduz o viver a qualquer forma de domesticação.

Após a demarcação da poética de Cacaso de outras operantes no ambiente urbano, depois de tentar estabelecer o desenho histórico de que se nutre, resta buscar aquilo que a singulariza enquanto proposta artística. Para isso faz-se necessário recorrer ao poema "Na corda bamba", contido no livro homônimo:

Poesia
Eu não te escrevo
Eu te
Vivo

E viva nós! (CACASO, 2002, 55)

Aparentemente há uma dissonância entre o título e o texto: o primeiro, equivale a um caminho repleto de dificuldades, a um movimento que envolve astúcia e perigo; o segundo, enuncia uma proposta vitalista, vazada em alegria e descompromisso, cujo verso final soa como uma proclamação ingênua e otimista. Uma análise mais acurada do poema, acompanhada da observação sobre o lugar ocupado por ele na totalidade da obra poética e sobre as reflexões teóricas do poeta-crítico, pode ajudar a depreensão de um sentido mais profundo.

Hugo Friedrich observou a importância da tensão dissonante na formulação da poesia moderna: "A poesia quer ser (...) uma criação auto-suficiente, pluriforme na significação, consistindo em um entrelaçamento de tensões de forças absolutas, as quais agem sugestivamente em estratos pré-racionais, mas também deslocam em vibrações as zonas de mistério dos conceitos". (FRIEDRICH, 1978, 16) A tensão de "Na corda bamba" surge da impossibilidade de convívio entre o espontaneísmo propagado e a intencionalidade criadora das formas artísticas. O mesmo autor ainda aponta para a inconsistência da absolutização da intimidade como instância criadora e para ilegibilidade de poesia como linguagem do estado de ânimo:


O conceito de estado de ânimo indica distensão, mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que mesmo o homem mais solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir. É justamente esta intimidade comunicativa que a poesia moderna evita. Ela prescinde da humanidade no sentido tradicional, da "experiência vivida", do sentimento e, muitas vezes, até mesmo do eu pessoal do artista. Este não mais participa em sua criação como pessoa particular, porém como inteligência que poetiza, como operador da língua, como artista que experimenta os atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num assunto qualquer, pobre de significado em si mesmo. (FRIEDRICH, 1978, 17)

A publicização da intimidade e do vocabulário efetuada pela poesia marginal, através de todo um processo artesanal de confecção e distribuição de livros, pode ser entendida como uma resposta à privatização da esfera pública operada pela ditadura militar. A intimidade resulta da violenta pressão exercida pela censura e falta de liberdade, não corresponde necessariamente à reação ingênua e escapista. É produto da tensão entre o impulso criador e o fechamento de espaços urbanos. As tribos marginais medram do insulamento e constituem-se em nômades urbanos sempre migrando para novos espaços. Essa movimentação fortalece os laços entres os artistas e afrouxa os contornos entre proposta estética e comportamento geracional.

"Na corda bamba" aponta para os limites da poesia marginal. Expor a igualdade entre vida e poesia é anular a autonomia do processo artístico e suprimir o signo poético do universo citadino. Se cidade, indivíduo e poesia formam uma única dimensão, os signos poéticos pulverizam-se no devir, subsumidos na referencialidade concreta da cidade e na prática existencial do seres.

A gratuidade como ponto de partida e pressuposto da criação artística é abordada em vários textos do poeta-crítico, sempre tomando por base as práticas estabelecidas pelos autores modernistas. É o que fica patente no ensaio "Alegria da casa":


Para o artista, porém, pela natureza mesma do seu fazer, a possibilidade de auto-emancipação vai-se confundir com a preservação da indispensável preeminência de seu arbitrário pessoal, significando assim a conquista de um pré-requisito que faz parte de sua própria definição e condição de possibilidade. Do ponto de vista da criação, autonomia quer dizer mais ou ou menos gratuidade, finalidade desinteressada, portanto aquilo que no plano ideológico seria mais um horizonte, um ponto de de chegada, no plano artístico é ponto de partida pressuposto de sua existência. O modernismo, para quem a criação é igual à à realização, em ato, de um ideal, é portanto um esforço empenhado mas em prol da gratuidade, da autonomia das coisas e dos valores, um jeito de constranger para que a espontaneidade pudesse aflorar sem constrangimento, o que em si já configura um paradoxo. (CACASO, 1997, 180)

A questão apresentada por Cacaso aponta para a coexistência irresolvida e extremamente produtiva dentro do modernismo entre o calculado e o espontâneo. Essa fronteira de delicado equilíbrio constitui-se em uma verdadeira corda bamba. É a partir dessa linha oscilante que o artista pode desoficializar a poética da cidade, liberando-a da expressão de interesses imediatos e não assumindo nenhum engajamento instrumental, mas um engajamento da forma. Somente a gratuidade é capaz de travar o combate da arte enquanto tal, concebido como um engajamento sem retórica. A arte postula a liberdade como um dado prévio, já é um espaço de liberdade, portanto não a apresenta como um horizonte a ser alcançado, porém como condição prévia de sua própria existência, demarcando-se com isso das concepções estéticas da "poesia oficial de esquerda". Dessa maneira, há possibilidade de denunciar outras poéticas que circulam no universo urbano como degrau de subida na carreira social, instrumento de celebração e homenagens, retórica prestigiosa e auto-satisfeita e sob outras formas.

Nessa visão poética disposta a abolir a estabilidade e a permanência de valores, a gratuidade chega a ser proposta como valor absoluto:


...a obra verdadeiramente artística é, em certo momento e de certa forma, tão interessada em si mesma que é tida como desinteressada, tão livre e aventureira a ponto de deixar uma consciência onisciente como a de Mário ‘absolutamente incapaz de julgar qualquer coisa'. O pressuposto da criação nesse caso é a absoluta gratuidade proposta, uma desobstrução em regra das finalidades que não sejam as da própria coisa, num ato integral de liberdade e jogo automotivado. (CACASO, 1997, 192-193)

Cacaso incorpora as técnicas dinâmicas do inacabado, propostas por Mário de Andrade (cuja influência teórica é intensa em sua visão crítica), na construção de uma "arte malsã, corrosiva e solapadora, voltada para a crítica e a negação das formas esclerosadas da vida presente." (CACASO, 1997, 194)

Os riscos da valorização dessa gratuidade não eram desconhecidos e foram bem sintetizados na análise feita por Cacaso da produção poética de Chacal, um dos autores mais importantes da poesia marginal: "As contradições começam a se esboçar: ao propor uma quase coincidência entre a poesia e a vida, isso resultaria, no limite, no desparecimento, por desnecessidade, da própria poesia." (CACASO, 1997, 24)
O poema "Um homem sem profissão" é a síntese dessa visão de mundo:

Já que estava à toa resolvi fazer um poema
Agora faço pra ficar à toa (CACASO, 2002, 57)

O título já fornece um alinhamento crítico-poético às proposições de Oswald de Andrade. Se a disponibilidade engendra o poema, uma vez criado carrega-se de significados: nasce da disponibilidade, sua conclusão remete a ela, no entanto, não se esgota nela. Esse é o paradoxo indicado por Cacaso: a criação se dá no intervalo entre o calculado e o espontâneo, entre a necessidade de construir signos e a liberdade de construí-los de qualquer lugar da cidade.


Nota

[1] Ver principalmente os artigos "Engajamento e etórica", "Poesia comprometida" e "Atualidade de Mário de Andrade", nos quais a crítica a esse tipo de poesia é explicitada.


Referências

ABREU, Casimiro de. Poesias completas. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
_____; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. 2a. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 3a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 4a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BRITO, Antônio Carlos de. Lero-lero. São Paulo: Kosac & Naify, 2002.
_____. Não quero prosa. Org. e seleção: Vilma Arêas. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, Rio de Janeiro, RJ: Editora da UFRJ, 1997.
_____. A palavra cerzida. Rio de Janeiro: José Álvaro, Editor, 1967.
FERRAZ, Eucanaã. "O poeta vê a cidade." Poesia sempre, n° 16, Fundação Biblioteca Nacional, out. 2002.
_____. "Poesia como semiologia da cidade." Terceira margem. Revista da Pós- Graduação em Letras da UFRJ., n° 3. A cultura das cidades e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 1978.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
VARELA, Fagundes. Poemas de Fagundes Varela. São Paulo: Cultrix, 1971.


Rio de Janeiro, Jun-jul/2004


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Nos quatro cantos da cidade *




Nada representa mais a razão no interior da cidade do que o sistema escolar, verdadeiro motor a manter ativo o seu funcionamento, dando-lhe legitimação e condições de reprodutibilidade, mediante paradigmas de representação universal. O sistema escolar inclui os indivíduos no caminho percorrido pela humanidade, situando-os no que considera o ponto mais avançado, resultado de séculos de história. Há, consequentemente, um ordenamento, uma razão niveladora e universal a unificar os homens, conduzindo-os ao ponto mais avançado do pensamento e do desenvolvimento tecnológico, responsável também por suas formas sociais: cidadania, democracia, separação de poderes, representação política, liberdades individuais etc. A escola é o espaço sucessor do templo de um deus rebatizado de ciência, lugar de verdades inquestionáveis de uma ciência-razão soberana, projetado no rigor de uma construção iluminista, porém também lugar no qual o tempo permitiu à racionalidade realizar todo o seu programa de tal modo que essa realização alcançou, nas falhas, nos êxitos e nos limites da Razão, a percepção da inconsistência de proposições de verdades em um mundo cuja complexidade devora todos os modelos teóricos.

O segundo livro de Cacaso, ainda sob a assinatura de Antônio Carlos de Brito, toma um dos signos fundamentais do iluminismo como metonímia da cidade: Grupo escolar. Representa uma ruptura com os procedimentos adotados em seu livro inicial – apesar de incorporar alguns poemas escritos na mesma época –, movimento resultante de uma autêntica crise de criação, registrada na nota à primeira edição: nela o autor revela ter ficado cinco anos sem escrever um só verso, "desconfiando mesmo da poesia" (CACASO, 1997, 139), numa inquestionável demonstração de descontentamento com os rumos seguidos no livro de estréia.

É a partir dessa época (1974-1975) que Cacaso torna-se integrante dos grupos "Frenesi", com Roberto Schwarz, Francisco Alvim, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua; e "Vida de Artista", com Eudoro Augusto, Carlos Saldanha (Zuca Sardan), Chacal, Luiz Olavo Fontes. Esses grupos produziam suas próprias coleções, antologias e revistas. Mais tarde estabelece relações com os integrantes da "Nuvem Cigana", constituída por poetas mais jovens como Chacal, Charles, Guilherme Mandaro, Ronaldo Bastos entre outros (1). As transformações na poesia de Cacaso, além de corresponderem naturalmente às necessidades internas do autor, derivam não apenas da convivência com diversos poetas, porém de uma ação coletiva voltada para todas as artes.

O novo livro representa uma aproximação a temas e recursos utilizados por Oswald de Andrade. O universo escolar também foi utilizado pelo poeta do antropofagismo no título de um de seus livros: Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. Em ambos, no entanto, mais do que emblema iluminista, a escola é um espaço no qual a geometria cartesiana da razão é desconstruída por uma escrita que inscreve em seus códigos a ironia constestadora, a alquimia dos desejos, a caligrafia do espontaneísmo e a tensão entre civilização e subjetividade.

Já em 1975, José Guilherme Merquior observava, ao analisar os novos poetas brasileiros, que
A antiepifania, a descelebração, o humor corrosivo (mais ácido que o de
Alvim) em língua mesclada informam o verso de Roberto Scharwz e do Antônio Carlos de Brito de Grupo escolar. Dividido em ' lições' trocadilhescas (...) o livro alterna a sátira político-social e a polêmica literária, ao mesmo tempo em que embute ambas em andantes poéticos pontilhados por efeitos de distanciamento em estilo mesclado. (MERQUIOR, 1975, 18)
                                                                                                        
 O mesmo crítico, um pouco mais à frente, situa a poesia de Cacaso, numa notação precisa, "mais perto, no Brasil de agora, do salto mortale do verdadeiro engajamento estético-intelectual, eqüidistante tanto do ornamentalismo, sofisticado ou não, da maioria da lírica de celebração quanto do realejo 'participante'" (MERQUIOR, 1975, 19).

A organização de Grupo Escolar, contudo, exibe as marcas de um planejamento crítico em relação ao ordenamento iluminista. A linguagem, se por um lado estabelece áreas de edificação poética nas quais determinados temas serão privilegiados, numa espécie de zoneamento textual, por outro inscreve os nomes de seus territórios de modo pervertido, desqualificando a nomenclatura oficial, convidando não a um local preciso, mas à perda. Por essa perspectiva, o adjetivo trocadilhescas atribuído às lições pode conduzir a uma leitura reducionista, mais próxima da irreverência inconseqüente do que da ironia ácida com as quais foram efetivamente concebidas.

A primeira das quatro lições, denominada "Os extrumentos técnicos", erige a própria linguagem como área demarcada, central e primária em relação às demais, abordando as questões relacionadas à construção e à visibilidade do poema, O trocadilho no título expressa uma visão dessacralizante das técnicas ritualísticas da produção artística, fundamentadas na nobreza, beleza e raridade de seus meios de organização.

O poema inicial, "Cartilha" (CACASO, 2002, 142-143), funciona como uma declaração de princípios, na qual se explicita uma poética anticabralina. As cinco partes da composição, identificadas pelas letras vogais do alfabeto, quebram a seriedade do texto propositivo, sobrepondo uma camada de infantilização, liberadora dos condicionamentos impostos pela linguagem formalizada (à semelhança de procedimentos de largo uso pelo primitivismo modernista oswaldiano), à profundidade da reflexão estética, na linha de metapoemas que remetem ao "Profissão de fé", de Olavo Bilac. O poema tem a sua espacialidade determinada por uma função: no planejamento do livro, é o portal onde a cidade é nomeada e o projeto de sua constituição, delineado; a planta poética básica que estabelece a natureza e os limites da voz que se revela na cidade. Marca, assim, a existência de uma forma híbrida, de acordo com a poética clássica: a proposição épica transforma-se em carta de intenções líricas.

A primeira parte afirma-se mediante dialogia negativa com uma face da modernidade:


"Não quero meu poema apenas pedra
nem seu avesso explicado
nas mesas de operação".

O substantivo pedra, transformado em sinônimo de poética, é uma clara referência à poesia cabralina, uma das fontes de que o poeta se alimentara no primeiro livro, porém com a qual agora deseja romper.

Benedito Nunes, ao estudar a obra do autor de "O engenheiro", aponta a força exercida sobre ela pelas ideias de Valéry que:
(...) analisam a gênese da linguagem lírica a partir da transmutação dos estados vividos: a criação como ato de pensamento lúcido, que se completa no ato de escrever, ambos dirigidos no sentido do controle racional dos efeitos poéticos contra a interferências do acaso, que a inspiração e o sonho favorecem; o poeta-engenheiro, que calcula a impressão a ser produzida pela sua obra, adquirindo esta 'o caráter de um mecanismo destinado a impressionar um público'; e, ainda, a
página em branco, como espaço decisório, também campo de luta contra o acaso(...) (NUNES, 1974, 41-42)

Haroldo de Campos, ainda sobre a mesma composição, afirma:
Em O Engenheiro, a epígrafe de Mallarmé é sustituída por outra, de Lê Corbusier ('...machine à emouvoir'), que ambos, poeta e arquiteto, pertencem a uma mesma família espiritual - a dos construtores - , na qual se inserem as melhores admirações de JCMN. O poeta que, em Pedra do sono, exibia ainda as impregnações do alogicismo surrealista, aqui se volta deliberadamente à lógica (não científica, mas
poética) do construir. É a instauração, na poesia brasileira, de uma poesia de construção, racionalista e objetiva, contra uma poesia de expressão, subjetiva e irracionalista. Os poemas de O Engenheiro são como que feitos à régua e a esquadro, e sua semântica funda coincidentemente um âmbito plástico de referências. (CAMPOS,
1992, 80-81)

Cacaso afasta-se daquele "tipo de conhecimento que se move no espaço mental de uma racionalidade desincorporada, em que se podem traçar linhas que conjugam pontos, projeções, formas abstratas, vetores de forças" (CALVINO, 2003, 88), representado pela já referida metáfora do cristal na visão de Ítalo Calvino. Fato comprovado na terceira estrofe:

A sede neste deserto
não me conduz ao mirante, ou antes:
olho selvagem.
A sede ultrapassa a sede onde
renasce o objeto, sua
resposta miragem.

Novamente é criado um contraponto a Cabral. Cacaso dialoga agora com uma concepção estética mais radical do que a de "O engenheiro": aquela subjacente à estrutura do poema "Fábula de Anfion", que valoriza a criação sobre o vazio, o branco como positividade da qual surge a construção, a abstração absoluta da poética cabralina desssacralizando a pureza, o primado da objetividade crítica e reflexiva à qual, todavia, não faltam incertezas. Clareza, disciplina e controle fazem parte da modernidade construtiva. É do deserto, da suspensão da história, que a linguagem pode ser concebida como concretamente inaugural, liberta dos condicionamentos da linguagem-arquivo da cidade e sua sintaxe presa à previsibilidade. (FERRAZ, 2003, 81-98)

O paradoxo "véspera de trapezista" x "conduz ao mirante", na verdade, conduz à outra concepção, próxima à da "chama" de Ítalo Calvino. Tal proximidade pode ser comprovada pela existência de uma concepção da criação como um salto, radicalidade do mergulho (para o futuro) na experiência existencial, da projeção da cidade como construção de um "olho selvagem" e como "miragem" constituída pelos objetos que não são frutos, mas a própria "sede", instância em que a razão não elide o mistério.

A última estrofe sintetiza essa ampliação de pedra, resultado de um périplo ao qual todas as dimensões - "dentros e foras" - são incorporadas.

Inúmeros termos são buscados no universo do corpo, da ação física e da medicina "mesas de operação", "olho", "cadáver", "engulo", "agoniza", "vísceras", "morte", "sangue", "antisséptico", "veias", "talhe", "palavra higiênica", "noite orgânica", "fala", "orgasmo", "vagina", "falos", "morrer", "lábio", "morde", "trompa", "útero híbrido", "ossos", "mandíbula", "cadáver", "corpo" - levantamento restrito apenas a essa lição. O vocabulário reconstrói o mapa de uma cidade alegorizada como corpo social a exigir correção e tratamento constantes, onde o vir-a-ser aflora em um espaço de inabitabilidade, exposto às práticas sociais redutoras da plenitude dos seres e às intervenções necessárias para ajustar o estado de atonia vigente na pólis.

Os outros três poemas que também integram a primeira parte - "O poema anfíbio descansa", "Aqui cessa todo périplo" e "Protopoema" - são textos nos quais Cacaso revela suas preocupações com a linguagem póetica.

"Rachados e perdidos", a segunda lição, traz no título a idéia de miscelânea, reunião de dispersos e diversos momentos de apreensão poética do mundo, da qual não está ausente a própria reflexão sobre a criação poética, ao lado de composições que apresentam variações na construção formal e oscilam entre o lírico e o trágico.

A compreensão do poema inaugural dessa lição, denominado "Praça da luz", brota da relação antitética entre o título e o texto. Aquele aponta para o espaço urbano para o qual convergem elementos diversos, dando-lhe a função de centro regional de determinados territórios urbanos; este surge como resultado da justaposição de imagens que aparentemente só possuem como elemento de ligação o espaço onde circulam. No entanto, todas elas são construídas com marcas de uma flagrante negatividade: "inverno", "namorados sem ritmo". "gengivas conspiram", "abafadas "transações", "um marreco (...) se candidata a senador", "anjinhos (... ) com flâmulas e hemorróidas", "corpos horrendos que se tocam". Mais do que um valor surrealista, as imagens traduzem uma concepção poética expressionista. A luz prometida no título transforma-se em realidade sarcástica, ilumina uma realidade absurda, um desfile de seres condenados ao escuro da irrealização e do desencontro. Empurrados por uma arquitetura que determina a movimentação dos seres na cidade, todos desfilam por esse terreno no qual se tornam mais visíveis. O momento de maior exposição, quando todos podem ser notados, é, paradoxalmente, o de maior opacidade. Por isso os indivíduos formam o "espantoso baile dos seres", um balé de simulacros, no qual a comunicação reduz-se à conspiração, à transação abafada, ao proselitismo e a gargalhada fere fundo não só os "corpos horrendo que se tocam", como também as almas que afastam a possibilidade de luz ao apagarem qualquer gesto de compreensão e afeto.

No poema denominado "Política literária", localizado na segunda lição, Cacaso critica a luta travada entre as vanguardas pós-modernistas para ver qual a corrente poética era a autêntica representante do projeto mais radical da modernidade.

O poeta concreto
discute com o poeta processo
qual deles é capaz de bater o poeta abstrato.

Enquanto isso o poeta abstrato
tira meleca do nariz. (CACASO, 2002, 149)

Trata-se de uma forma parodística calcada no poema de título homônimo, publicado em Alguma poesia, livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade.

O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz. (ANDRADE, 1973, 11)

Argan, ao discutir as relações entre cidade ideal e cidade real, afirma que "não é certamente a lógica da história, mas a desordem dos eventos que se reflete na realidade urbana herdada do passado". (ARGAN, 1995, 75) Também na poética de Cacaso pode ser verificada a presença do passado como uma desordem contraposta às tentativas de ordenamento intentadas por diversas correntes.

O poema de Drummond retrata a política literária no contexto da Primeira República. Flagra uma hierarquia cultural correlata à hierarquia político-administrativa, organizada em função de um espaço social rigidamente demarcado numa direção ascendente. O prestígio poético, por essa visão, fornecia um meio de ascensão no universo cultural e este, por tabela, permitia galgar posições socialmente.

No poema de Cacaso, a estrutura do poema drummondiano é mantida intacta. As duas estrofes perrmanecem com o mesmo número de versos, a mesma sintaxe, a mesma organização interna. As mudanças ocorrem apenas na troca de palavras que indicam uma nova realidade: aquela criada pela ditatura militar. Na verdade, é o contexto que institui a diferença. Não há mais uma cadeia evolutiva, uma linha de progressão. A realidade cultural e social foi modificada. Surgem as vanguardas literárias disputando com todas as armas a respeitabilidade e a representatividade conquistadas, outrora, pelo "poeta federal". Infensa à cultura, nenhum poeta poderá tirar ouro da nova realidade. Razão pela qual Cacaso recorre a um processo de infantilização - a linguagem coprológica ("tira meleca do nariz") - como forma de denunciar o hiato entre a cidade e a atribuição de prestígio e visibilidade aos poetas.

Os poemas "Romance", "A verdadeira versão" e "Epopéia" revelam um Cacaso lírico, antecipando a concepção amorosa expressa em Beijo na boca. "As batalhas" é uma composição de cunha autobiográfico, centrada na figura do pai. "O futuro chegou" é um forma dialogal sobre impasse e suicídio.

A terceira 'lição' - "Dever de casa" - flagra uma Cacaso voltado para os aspectos econômicos, históricos, políticos e sociais da realidade brasileira. A reescrita de um elemento do universo escolar convencional, o dever de casa, com a transformação da 'casa' em 'caça', reforça o caráter de denúncia à anulação do indivíduo que pensava diferente (ou simplesmente pensava), criava, tentava exercer sua autonomia artística, política e social, em ser perigoso, sujeito à caça e ao abate por parte dos guardiães da cidade.

O primeiro poema dessa parte - "O que é o que é" - é organizado como uma adivinha. Apesar de revelar influência direta de Oswald de Andrade, especialmente daqueles poemas que fizeram uma releitura crítica da nossa história, a composição, construída como crítica ao modelo econômico adotado pelo governo militar, parece datada. "Logias e analogias", com suas rimas em -al, subsiste também mais como denúncia à mercantilização da medicina do que como texto de ponta. "Reflexo condicionado" e "Pré-história contemporânea..." são poemas de crítica corrosiva, ideologicamente marcados, mas que figuram redutoramente no campo do trocadilho literário. No entanto, em 'Sinais do progresso" e "As aparências revelam" surge novamente um poeta antenado com as questões de seu tempo, capaz de explorá-las em uma linguagem carregada de significado. O poema "Jogos florais", o mais relevante dessa lição, será estudado em outro momento.

A 'lição" final – "A vida passada a limbo" – tem como tema a própria vida, flagrada em flashes reveladores de um universo mais íntimo e pessoal. Apresenta na última composição (analisada em outro capítulo), que dá título ao livro, a reafirmação da poesia como forma de sobrevivência "nestes tempos de alquimia".

A exemplo do que ocorre nas lições anteriores, na última parte podem ser localizados aqueles elementos vistos por Cacaso na poesia de Chacal; "os germes da atitude revolucionária diante da cultura: esta deixa de ser tratada como fetiche, como algo apartado e alheio à vida, para recuperar seu posto e significado na continuidade viva da experiência social" (CACASO, 1997, 25).

Além de "Grupo escolar", os poemas "Cinema mudo", "Trago comigo um retrato" e "Logia e mitologia" também são analisados em outro capítulo. Os demais textos integrantes da parte final - "Até agora", "Imagens", "História natural", "Diário de bordo" e "Reencontro" - mantêm a qualidade dos demais, exceto "Até agora", cujo componente autobiográfico vem em uma roupagem lingüística destituída de recursos, incapaz de transformar o prosaísmo intencional do poema em linguagem poética, e formam um sensível universo subjetivo, permeado por referências ao filho, ao plano familiar e à memória amorosa.

NOTA

(1) As informações sobre a formação dos grupos formadores da denominada poesia marginal, suas atividades e o contexto no qual medraram foram levantadas nos trabalhos de Carlos Alberto Messeder Pereira, Retratos de época: poesia marginal anos 70, ainda hoje o melhor levantamento sobre esse tema, e de Heloísa Buarque de Hollanda, Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde: 1960/70, particularmente o capítulo 3 - "O espanto com a biotônica vitalidade dos 70".


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião (10 livros de poesia). 5a. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 3a. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1995.
CACASO. Lero-lero. Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
CACASO. Não quero prosa. Campinas-SP, Unicamp: Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. 3ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões d e viagem: cpc, vanguarda e
desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1980.
FERRAZ, Eucanaã. Anfion, arquiteto. In: Colóquio - Letras; Paisagem tipográfica, no.
157-158, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
MERQUIOR, José Guilherme. Musa morena moça: notas sobre a nova poesia
brasileira. In: Poesia Brasileira Hoje. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, l975.
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2ª ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1974.
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retratos de época: poesia marginal anos 70
Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.


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Canudos: a encenação do saber



Os sertões, de Euclides da Cunha, apresenta um terreno fértil ao estabelecimento de sintonias e antinomias entre a escrita concebida como traço autoconstitutivo e o discurso entendido como depositário de um real estranho a sua natureza. Traduzindo o primado de uma ótica informada pelo cientificismo característico do século dezenove, mantém, ao longo do seu caudaloso corpo, os aspectos marcantes dessa época, todos apontando para o primado da Ciência, elevada à condição de reino do absoluto, fornecedor da chave do conhecimento. Impregnado desse caldo de cultura – positivismo, iluminismo, materialismo, evolucionismo, determinismo e realismo –, emerge o relato nervoso, tenso, solene e militarizado do livro de Euclides da Cunha, cuja leitura coloca como uma das questões fundamentais ao seu deciframento a própria legibilidade do enunciado, ao retraçar em sua trama uma história segregada por um sujeito alheio, distante, deslocado e incapaz de precisar com nitidez os contornos do objeto sobre o qual se debruça numa esforço de compreensão, entremeado a um misto de espanto e indignação. Legibilidade embaçada por buscar noutro horizonte as letras de um universo excluído, onde circulam eternos habitantes do não-lugar, as massas expulsas pelos atropelos de uma história cuja linha de mudança mantém-se classicamente fechada, passando de pai a filho, de Monarquia a República, de Velha a Nova República, em salões palacianos, gabinetes, antros do poder nos quais a escrita histórica transforma-se em rasura, rabisco, a grafar na esteira da inversão, da "mudança sem transformação", do malabarismo semântico-político, uma continuidade que se exibe como farsa, sucessão inequívoca de momentos do mesmo, do uno, do estático, do sempre, num impedimento obsessivo e violento do povo na construção de sua história.

Seguindo a idéia positivista da história e da ciência, o autor subordina a imaginação à observação e à busca de leis invariantes, num processo de homologia com os procedimentos das ciências exatas. Todavia, se há obediência à objetividade, à veracidade, ao rigor científico, à referencialidade, à explicabilidade, há um claro desvio da impessoalidade como uma das características fundamentais ao discurso rigoroso e fiel à reconstituição dos fatos, considerados sob o prisma de uma pureza que só o cientificismo historicizante poderia encontrar. Graças a esse afastamento dos cânones, surge uma aproximação entre o sujeito e seu objeto, fruto da perplexidade, do acúmulo de dúvidas, contradições e esgotamento dos limites do modelo seguido. A enunciação hesita a ideologia que diz e o narrador, profundamente embaraçado e preso à teia da objetivação máxima, naufraga a onisciência que se atribui, o poder fantástico, capaz de nomear a origem e o destino da terra, da flora, da fauna e do homem, o conhecimento e o domínio total sobre o enunciado, quando erra o alvo e dá voltas em círculos concêntricos sobre a natureza real e profunda da guerra na qual, consciente ou inconscientemente, desempenha importante papel. Evidentemente, não participa do teatro de operações apenas como correspondente de guerra, formulador da versão histórica de um dos lados da questão. É como estrategista do relato, tático das palavras, articulador da Campanha de Canudos no campo raso do papel em branco que a sua importância avulta. Nela, o narrador não recorre à enunciação objetiva como apagamento, marca da ausência, mas circula absoluto por todos os meandros, estabelecendo um discurso monológico e univocal, uma escrita-denúncia – verdadeiro acerto de contas com a República que não lograra realizar efetivamente os ideais geradores do seu nascimento.

A preocupação com o levantamento científico da terra em que se desenrolam os acontecimentos leva Euclides da Cunha a recorrer às teorias científicas do seu tempo, buscando na inserção de citações na obra o aval sancionador da exatidão das informações fornecidas. Assim, desfilam ao longo de suas páginas os nomes de Eschwege, Lund, Huxley, Fred Hartt, Agassiz, F. Mornay, Wollaston, Herschell, Martius, Humboldt, Merton, Meyer, Trajano de Moura, Nott, Gordon, Nina Rodrigues (de quem foi aluno), Buckle, Bates, relação já extensa, porém incompleta, das figuras egressas do mundo da ciência, atuando no relato como testemunhas comprovadoras da justeza das observações do narrador. Essa preocupação com a documentabilidade da narrativa auxilia na construção de um modo de representação realista-naturalista. Além das provas científicas, o narrador exibe provas históricas e documentos diversos, incorporados ao seu relato, como a transcrição da carta de Pedro Barbosa Leal ao conde de Sabugosa (CUNHA, 1987, 41); trecho do livro de Irineu Joffily – Notas sobre o paraíso (CUNHA, 1987, 43) ; da obra de Draenert, O clima do Brasil (CUNHA, 1987, 57); circular do arcebispo da Bahia dirigida a seus párocos (CUNHA, 1987, 117); quadras do cancioneiro popular (CUNHA, 1987, 138-139). Esses exemplos vão apenas a título de levantamento da variabilidade documental, longe estão de esgotarem o estudo de sua utilização no corpo narrativo. Aliás, a minúcia com a qual o levantamento de fontes é mostrado em Os sertões revela com precisão o grau e o tributo pago por seu autor ao conhecimento científico de sua época. Dessa maneira, o texto vale pelo caráter mimético de que se reveste, reprodução vocabular do universo onde a história se processa. A linguagem, portanto, torna-se, instrumento de expressão do real, conduto da racionalidade, ferramenta a construir a imagem da razão.

A idéia kantiana de Aufklärung como um processo de emancipação intelectual resultante, de um lado, da superação da ignorância e da preguiça de pensar por conta própria e, de outro lado, da crítica às prevenções inculcadas nos intelectualmente menores por seus maiores (superiores hierárquicos, padres, governantes etc.), forma o substrato iluminista de um positivismo confundido com instrumento de inserção do intelectual na sociedade, dando um sentido utilitário imediato aos seus escritos. Daí o entrelaçamento entre vida e obra, a presença ativa do escritor nos lugares e tempos em que se situa a ação narrativa, a fusão de letras e luzes na tradução da literatura como forma de exposição dos problemas nacionais, conferindo ao ato de escrever um sentido missionário, pedagógico, civilizador.

Por trás de toda essa armadura de método e rigor, no entanto, corre, nas páginas de Os sertões, um "desespero acompanhado de secreto amor pelo homem heróico que resiste à tragédia de seu destino" (BOSI, 1969, 121). A escrita denuncia a chacina da massa aglomerada no arraial de Canudos através da encenação de um discurso solene, fatalista à maneira dos trágicos gregos e dramaticamente representado no palco dos condicionamentos imposto pela natureza ao homem.

A estrutura da obra assenta-se sobre um paradoxo fundamental: a tensão entre ciência e paixão, entre análise e protesto, conforme observação de Alfredo Bosi . Esse aspecto dilaceradamente contraditório, angustiado, trabalha em profundidade até as partes mais submetidas aos ditames do recorte científico, as numerosas intervenções da etnologia, da geologia, da antropologia, entre outros campos epistemológicos. A natureza, o mundo, o homem surgem plasmados numa expressão distorcida, lancinante, retrato vocabular da luta permanente da vida em seu exercício de existência. O relevo, o clima, a vegetação, o rendilhado litorâneo, as vastas regiões interioranas, os rios, tudo, enfim, exprime-se mediante um estilo áspero, brusco, nervoso, carregado de sofrimento, cuja figura central é o pensamento antitético, revestido sob a forma do oxímoro, assinalado com precisão por Augusto Meyer:


O jogo antitético percorre uma escala inteira de
variações. O famoso oxímoron Hércules-Quasímodo
daquela página que tanto nos impressionava no
ginásio não é exemplo muito raro em Euclides,
pertencem à mesma família paraíso tenebrososol
escurotumulto sem ruídoscarga paralisada,
profecia retrospectivamedo gloriosoconstrutoresde ruínas, etc. Pode-se escudar numa construção
paralógica: os documentos encontrados em Canudos
"valiam tudo porque nada valiam"; a cidadela "era
temerosa porque não resistia" ou "rendia-se para
vencer. (MEYER apud BOSI, 1969, 123-124)


Esse olhar hegemônico, perspectivando o real pelos filtros de uma hipersensibilidade, permite, graças ao conflito que se extravasa num jogo vocabular de contrários, enxergar Os sertões como "barroco científico", um projeto que recorre à intervenção salvadora do estilo nas falhas do projeto científico.
Essa característica molda, ainda, a excessiva verborragia, o gosto pela riqueza vocabular exagerada, por um saber aparatoso e ornamental, próprios ao drama de Canudos que, em certos momentos, lembra uma bíblia cabocla, na qual a figura de Antônio Conselheiro pode muito bem assumir a conformação de um messias, encarnação sertaneja de Jesus Cristo, atuando sobre as massas rurais no plano da dimensão mítica, operando a conversão da racionalidade ilustrada numa arquitetura explicativa do universo, alimentada pela lenda, pelo equívoco do messianismo, pela ignorância e por uma hipnose e histeria coletivas, advindas da miséria e do abandono.

Suas partes constitutivas teatralizam vida e história, permitindo ler a parte introdutória – A terra – como metáfora do mundo físico impressa sob a forma de um palco, conformado e conformante do drama que nele se representa; a segunda parte – O homem – descreve a anatomia dos personagens, reduzidos, na verdade, a criaturas inferiores a tipos, apenas tópicos standartizados, figurantes da história cuja previsibilidade é escrita pelos efeitos da ação tecida, no fundo, pelo destino disfarçado sob determinismos de toda a espécie. E o último e decisivo ato – A luta –, espaço cênico onde a ação representa a existência como intensa e desigual medição de forças entre o homem e os elementos. No fio dessa história, os atores são soldados e guerrilheiros caligrafando a violência de arcaicas estruturas sociais. O diálogo é travado no campo de batalha, entre o progresso (o moderno equipamento bélico) e o atraso (as armas primitivas da revolta e do fanatismo). Portanto, tal como a presença feminina (na verdade, reduzida a suprimento das tropas), o diálogo impõe-se como ausência absurda e absoluta, atribuindo, todavia, um grau de extrema fidelidade mimética do relato na transcrição das relações sociais na sociedade onde atuam as forças beligerantes. A escrita faz-se sobre os corpos da história e o gesto de sua impressão é a forma final do conhecimento visto como a resultante de uma experiência, passagem do extinto às tintas do texto, formulação aprofundada por Walter Benjamin: "...é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível". (Benjamin, 1985, 207)

Em outra passagem, Benjamin reforça o caráter seminal da morte na produção do relato: "A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade." (BENJAMIN, 1985, 208)

Ambas confirmam o grau de domínio absoluto sobre o relato por parte do sujeito que possui a experiência. Com isso, contudo, não resolvemos o lugar do narrador na obra de Euclides da Cunha. O narrador, encarnação textual do autor, carrega a experiência de seu relato situado num ponto de grande opacidade. Em primeiro lugar, as contradições que agenciam uma luta entre os próprios elementos narrativos dificultam qualquer fixação. Em segundo lugar, no registro da reprodução histórica a condição de narrador está subordinada a uma posição lateral, à beira dos eventos, voyeur no máximo indignado com a carnificina. Em terceiro lugar, diz o que diz a partir de um centro situado num dos lados do confronto e sem acesso ao conhecimento real e efetivo do "inimigo". Em quarto lugar, tece o entrecho da narrativa com os fios de uma ideologia que se trai ao transparecer sua incapacidade de justificar-se diante de si mesma.

Portanto, a experiência (erfahrung) benjaminiana pressupõe o desnudamento da obra. Em Os sertões a própria inserção do texto resiste a qualquer tentativa, não se assumindo como romance, apesar da tese aproximativa ao veio naturalista; crônica histórica; ensaio; relato de guerra. Serve, contudo, para que, ao estabelecer a morte como o ápice do drama, aponte para o caráter fechado de sua concepção. A morte, mediante seu caráter definitivo e absoluto, encarna o passado, a cessão do fluxo vital, colocando um ponto final sobre os acontecimentos e um ponto inicial à sua reconstrução pelo imaginário. Apresenta a vida completa, totalizada em todos os atos produzidos por seu sujeito. Assim, a reprodução do seu fluxo no fluxo do discurso vai além da fidelidade, da mimese, pois na base desse processo reprodutor repousa a cognoscibilidade, sem a qual o discurso não se diz. O cognoscível, quando advindo de extração direta, incrustado no ser pela experiência vivida, exercita-se soberano e onipotente, exibindo as marcas de seu poder absoluto sobre o enunciado. Esse projeto só pode ser expresso por um pensamento monológico, donde exclui-se o outro e do qual a univocidade, o primado de uma pseudo-objetividade trama transmitir ao enunciado características que imprimam às categorias da ciências, distendidas num tal grau que acabam, por baixo do pretenso cientificismo, dos artifícios da notação verista e especular, no engendramento de simulacros, fantasmagorias, a versão como sinônimo da Verdade, a identidade pessoal como uma voz (a voz da Razão) que encarna o pensamento no seu ponto mais avançado. Conquanto inclassificável na tipologia dos gêneros, Os sertões possuem um centro irradiador: a voz única que submete os dados do real ao ordenamento de um sujeito que não está nunca acima, fora, imune ao relato. Mas, ainda as sim, não é o seu primado que dá a qualidade literária ao discurso, mas as lacunas, os hiatos, o tateio, as falhas por onde brotam as contradições da história.

Essa voz poderosa vem sob a forma do monólogo interno – na concepção de Bakthin –, forma do discurso indireto livre, permitindo a aproximação entre enunciação e enunciado ao afastar a presença de uma complexidade narrativa. A questão relacionada aos aspectos intrínsecos do relato não é central em Os sertões. O que importa é a utilização de uma técnica capaz de sustentar a tese de sua formulação. Compare-se a obra euclideana à versão sobre Canudos elaborada por Mário Vargas Llosa. Nesta há pluralidade narrativa e a linguagem não possui a dimensão aristotélica da mimese. As personagens (em A guerra do fim do mundo) são discursos. O movimento do romance é o cruzamento de enunciações diversas, sendo a ação entre elas a produtora da enunciação final. Esse movimento exige sua leitura como processo não-linear, apreensão do significado disseminado ao longo do seu corpo, numa não-sucessividade narrativa, ao contrário da epopéia euclideana, dotada da mesma natureza do romance monológico, no interior do qual o narrador atua como um arquipersonagem.
Ela dota toda a natureza de um intenso e incessante animismo, moldando-a como expressão dos sentimentos humanos. Por esse traço estilístico, o planalto central movimenta-se, os mares se assoberbam, o relevo desata-se em chapadões, o planalto é despido, figuras e imagens que se repetem incessantemente. Juntamente com a extrema preocupação vocabular, concessão ao gosto de uma época vibrando com adjetivações esdrúxulas e a colocação dos pronomes, surge, logo na primeira página da obra, o ufanismo retórico das elites republicanas: "...majestoso palco, justifica todos os exageros descritivos – do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle – que fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais poderosa oficina". (CUNHA, 1987, 5)

O saber que se encena no branco da página está preso aos determinismos de sua época e à ideologia da classe dominante. A obra de Euclides da Cunha busca instaurar uma reflexão sobre a nacionalidade, voltando-se para o desconhecido e ignorado interior brasileiro, praticamente ausente de uma cultura cosmopolita, afrancesada e firmemente fixada na faixa litorânea e em suas raízes européias.

No entanto, essa inflexão corresponde à necessidade histórica da burguesia em ampliar e desenvolver a estrutura produtiva do país, equivalendo à ampliação de suas fronteiras culturais, graças à incorporação do amplo contingente das massas rurais, das cidades interioranas, ao processo produtivo. Graças a esse ambiente, Os sertões constitui-se numa expedição literária ao Brasil desconhecido, por isso mesmo assume a forma de um romance-relatório, manual científico-literário de um universo cuja legibilidade exige acesso a outros códigos, diferentes daqueles com os quais a nossa elite dizia o mundo e se dizia, simultaneamente. Seu relato guarda, assim, semelhanças visíveis e palpáveis com uma literatura de exploração, roteiro etnológico, geográfico, militar e dramático a uma inconcebível província denominada Canudos.

Referências

BAKTHIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOSI, Alfredo. O pré-modernismo. 3ª. ed. São Paulo: Cultrix, 1969.
CUNHA, Euclides da. Os sertões. 33ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
LLOSA, Mario Vargas. A guerra do fim do mundo. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.



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CACASO: uma poética urbana *




Uma cidade apresenta múltiplas imagens. Há sempre uma projetada para ser percebida à distância, dando-lhe reconhecimento externo, transformando-se em espécie de retrato oficial capaz tanto de identificá-la quanto de falsificá-la. Outras só podem ser construídas com a inserção do indivíduo em seu interior, sofrendo a angústia das ruas que a compõem. Essas imagens parciais jamais poderão ser reunidas, porque a soma não produz significado. Nada é fixo, nada pode ser imobilizado, mesmo o concreto das construções e o asfalto das ruas mudam a consistência, a direção e a forma. Ainda que as ruas permaneçam ruínas históricas sob o chão de novos traçados, o habitante da cidade vive um paradoxo: está ancorado na mobilidade.

A velocidade das mudanças e a contínua circulação de informações em nível extraordinariamente superior ao da capacidade de assimilação poderiam tornar a cidade um ambiente inabitável, não houvesse um mapa e instruções de uso em cada consciência, ajudando-a a selecionar os caminhos e os signos capazes de movê-la.

A cidade tornou-se o lugar de todos os acontecimentos:
Acontecimento artificial, portanto, ou, mais exatamente, acontecimento urbano porque, onde quer que se produza, se produzirá sempre na cidade. Há apenas uma alternativa: ou será um acontecimento qualquer que não se poderá distinguir dos outros, infinitos, que ocorrem na cidade e que será imediatamente absorvido, assimilado e esquecido no ambiente opressivo e repressivo da cidade moderna, ou será um acontecimento diferente, um acontecimento interpretável. E, como é interpretável por excelência o acontecimento histórico, eis que qualquer acontecimento interpretável, qualquer acontecimento que não se preste a ser recebido passivamente, qualquer notícia que não seja aceita estupidamente, assim como é transmitida pelas estações de rádio ou pelos canais de televisão, encerra em si uma virtualidade, a candidatura a ser um acontecimento histórico. (ARGAN, 1995, p. 222)


A poesia inscreve-se como um acontecimento que busca ser reconhecido, tornar-se visível e interpretável. Constitui-se, portanto, em um acontecimento histórico, sua linguagem carrega as marcas temporais.

Dois poemas de Cacaso podem ilustrar com exatidão esse movimento de inscrição da poesia como signo urbano, transformando-a em um acontecimento interpretável cuja visibilidade resulta da tensão entre poéticas em disputa territorial.

Logia e mitologia

Meu coração
de mil e novecentos e setenta e dois
já não palpita fagueiro
sabe que há morcegos de pesadas olheiras
que há cabras malignas que há
cardumes de hienas infiltradas
no vão da unha na alma
um porco belicoso de radar
e que sangra e ri
e que sangra e ri
a vida anoitece provisória
centuriões sentinelas
do Oiapoque ao Chuí. (BRITO, 2002, p. 163)

Antes de encerrar-se na datação explicitada no segundo verso, o poema pode ser observado como um acontecimento histórico. O ano de sua concepção corresponde ao período de existência de um regime militar no Brasil, assinalado e combatido pelo autor. A tensão daquela época já pode ser observada no próprio título antitético: logia, radical grego presente em palavras correspondentes a saberes diversos, logos, razão, confrontado com mitologia, no qual entra como constituinte, mas do qual pode aparecer deslocado semanticamente se o termo for entendido como explicação para a existência de um modo anterior ao surgimento da filosofia e da ciência. Por qualquer leitura, contudo, a rima soa falsa; a assonância, dissonância, moradia em território hostil.

As metáforas zoomórficas presentes nos versos - morcegos, cabras, hienas, porco - servem como representação simbólica da opressão e do mal-estar na cidade, dominada totalmente pelos aparatos da repressão. A cidade, sob a ditadura, torna-se estigma. Todos os signos são suspeitos, toda palavra é culpada. A ideologia é a do domínio total. A vida pode ser planejada, fiscalizada, vigiada e punida. Não só as leis, os decretos-leis, os atos institucionais e toda a legislação enquadram os atos praticados na metrópole, mas também censores vasculham todas as esquinas à procura de sinais de subversão. Se as figuras da repressão à época podiam ser simplificadas no guarda, no militar e no censor, a evolução das cidades tornou-as ultrapassadas. O sistema repressivo transformou-se em um polvo, já não precisa de censores, substituídos por câmeras e tecnologias de segurança, uma vez que os programas de perpetuação do poder na cidade já vêm inscritos nas consciências.

À época em que o poema foi escrito a rede de agentes repressivos, habitantes de porões clandestinos, era vista apenas como uma parte maldita da cidade, em breve sujeita à extinção. Não havia a mais delirante possibilidade de se perceber a conexão profunda entre cúpula (área de planejamento e decisões) e porão. Não havia como suspeitar do remodelamento, do repaginamento do poder, da construção de um consórcio entre ciência, informação, capital e repressão de tal modo que a possibilidade de transformação fosse completamente negada. A mudança foi introduzida no sistema de dominação e só pode ocorrer de acordo com suas necessidades de progresso e manutenção. Logo, as cidades não somente tornaram-se uma única cidade real ou ideal, mas esta é a única formação possível, absoluta, uma realidade tecnológica, humana e metafísica. A pluralidade, ou melhor, o princípio da negação, a possibilidade de construir outros modelos, outras aventuras humanas, a polifonia só podem existir nos arquivos da modernidade, agora o consenso reduziu-se ao coral das vozes consentidas (é o triunfo do "coro dos contentes") . Um mundo virtual e midiático sobrepõe-se ao mundo dos eventos. Os fatos e os acontecimentos só podem existir como representação e os meios e modos de construir essas representações são privados, expropriados por representações fantasmagóricas, já que se tornaram insuficientes os conceitos de burguesia, governo, elite, capitalismo. Embora fundamentais para a legibilidade da cidade, já não conseguem dar-lhe visibilidade, não obtêm a mesma clareza, a mesma nitidez na descrição de seus contornos conseguida outrora. Por não existir alternativa, a cidade vive crescente angústia: ao centro de decisões opõe-se o caos, o rito sacrificial no qual a cidade perece, suas muralhas de indiferença e desprezo são arrasadas e aqueles que vivem nela a experiência de privação, prisão e exílio vingam-se furiosamente, uma vez que nenhum signo é, para a legião de párias urbanos, portador de qualquer significado.

Em "Logia e mitologia" a referência vai além dos militares: está endereçada a todos que deram sustentação ao regime. Os animais escolhidos são normalmente apreendidos como criaturas negativas. O inofensivo morcego é associado pelo imaginário popular a um ser maligno, vampiro, criatura cuja vida depende da desgraça e miséria humana. É, ainda, um animal de hábitos noturnos, simbolizando as trevas, a noite, o escuro atribuído ao regime militar. As cabras vêm adjetivadas explicitamente de modo negativo: malignas, referência à suposta natureza demoníaca atribuída a elas desde os gregos. As hienas possuem a característica de se alimentarem de carnes de animais mortos e putrefatos, cabe-lhes no poema o papel infame de seres infiltrados, natureza perversa e traiçoeira. A surrealista imagem "porco belicoso de radar" permite efetuar a leitura da forma verbal "sangra" de modo ativo, desfazendo a ambigüidade possível com a de animal imolado. O termo "belicoso" denota marcial, militar; leitura reforçada pelo substantivo "radar", último termo da expressão. Cabe, assim, ao porco a execução da sentença de morte, tarefa rotineira como pode ser deduzido da repetição do verso "e que sangra e ri".

A onipresença do domínio militar é expressa pela disposição de "centuriões sentinelas" em toda a extensão do território brasileiro: "do Oiapoque ao Chuí". Esse controle total da cidade significa um estado de servidão, uma noite que a voz estruturadora do poema concebe como "provisória".

Quando a vida amanhecer, haverá, então, a volta da liberdade, a voz poderá assumir a existência inicial, marcada pelo verso "Meu coração", metonímia do corpo e metáfora da poética romântica, marcada pelo primado da subjetividade, para a qual a liberdade é um valor absoluto e qualquer sujeição, portanto, equivale à morte.

Esse poema, representativo de uma tendência marcadamente engajada na poética de Cacaso, conforme pode ser observado na composição que dá nome ao livro em que ele foi publicado - "Grupo escolar " - e em muitas outras, porta questões subjacentes à sua proposta estética. A mais relevante é aquela que aponta para uma disputa pela bandeira da contestação ao controle da linguagem administrada pelo poder, razão de uma viva contenda com outras vertentes.

Cacaso polemiza com os representantes literários da oposição reformista, aos quais criticou de maneira contundente: "O que tais poetas da esquerda oficial ainda não aprenderam é que não há engajamento possível fora da lição modernista, onde o engajamento prioritário é o da própria forma literária, onde se desenvolve uma ação crítica no domínio mesmo da criação." (BRITO, 1997, p. 122) A crítica acerba acusa-os de maior queda para a oratória do que para a poesia, de desleixo artístico, de prática de uma poesia autocomplacente, dotada de um populismo paternalista, demagógica, de um maniqueísmo primário, repartindo o mundo entre o Bem (os oprimidos) e o Mal (os opressores).

Observe-se a demolidora denúncia de Cacaso aos estreitos limites estéticos da poética do autor mais representativo dessa tendência:
Caso muito curioso, sobretudo pela receptividade que alcança pela audiência que preenche, é o Thiago de Mello, cujo engajamento tem qualquer coisa de macumba para turista. Sua poesia combina o ranço paternalista de nosso populismo de gabinete com uma outra tradição, bem brasileira, a do poeta-bacharel, de fluxo incoordenado e palavroso, eloqüente e comemorativo, anunciando sempre a Aurora que virá, a Esperança que não morre, o Amor que não acaba, tudo enfático e solene. A completa falta de humor que se instalou na poesia brasileira, passando por 45, pelo Concretismo etc., atinge em Thiago de Mello uma inautenticidade tão grave que quase impõe o respeito. Depois de escrever um "Estatuto do homem", que raia pelo bestialógico, aproveitou o gosto do momento e fez um poema de louvor da anistia. Não duvido que venha por aí qualquer coisa sobre os índios... No Brasil há os que fazem poesia, e os que fazem carreira de poeta. Thiago de Mello faz carreira de poeta engajado. (BRITO, 1997, p. 168)


Cacaso procura retomar e adaptar à nova realidade as preocupações de Mário de Andrade com o engajamento do artista reveladas em O banquete, obra da última fase do autor de Macunaíma, na qual há uma grande preocupação em dar um caráter social à obra de arte, em torná-la participante ativa dos problemas da sociedade, numa atitude autocrítica a alguns aspectos do modernismo e numa condenação tácita aos procedimentos literários isolados da empiria. Cacaso retoma a pesquisa, a participação e a liberdade defendidas pelos escritores de 22, por isso aos seus olhos a poesia limitada à mera expressão de bons sentimentos e eloqüentes manifestos contra a opressão revela-se uma falsificação do engajamento artístico, perde a validade ao construir um poema com pensamentos comuns à esquerda, porém desprovidos da inquietação da linguagem, da pesquisa da forma, além de exibir uma insuportável harmonia com o universo acadêmico. Daí o pomposo, o retórico, o convencional em uma forma artística conservadora, transformada em metrificação de slogans e palavras de ordem.

A necessidade de demarcar terreno no ambiente urbano, implica apresentar-se como signo livre de dependências estéticas ou ideológicas em relação aos poderes que autorizam a legibilidade da cidade. Distinção similar à defendida por Adorno:
Teoricamente ter-se-ia que distinguir engajamento de tendenciosismo. A arte engajada no seu sentido conciso não intenta instituir medidas, atos legislativos, cerimônias práticas, como antigas obras tendenciosas contra a sífilis, o duelo, o parágrafo do aborto, ou as casas de educação correcional, mas esforça-se por uma atitude: Sartre, por exemplo, pela decisão, como condição do existir frente à neutralidade espectadora. (ADORNO, 1973, p. 52)


Ainda na disputa por visibilidade dos signos poéticos no ambiente urbano, Cacaso voltou-se contra a cristalização de uma noção de vanguarda despregada do chão da cidade, uma vanguarda olímpica, acima das imperfeições, como se fosse tradução para a técnica poética do planejamento racionalista do espaço, uma arquitetura cujo traçado deve ser seguido pelos habitantes, um projeto destinado a ser sofrido pelos destinatários como o ponto máximo de evolução da modernidade.

O poema "Estilos de época", também inserido em Grupo escolar, representa com nitidez as objeções à vanguarda concretista:

Havia
os irmãos Concretos
H.e A. consangüíneos
e por afinidade D. P.,
um trio bem informado:
dado é a palavra dado
E foi assim que a poesia
deu lugar à tautologia
(e ao elogio à coisa dada)
em sutil lance de dados:
se o triângulo é concreto
já sabemos: tem 3 lados. (BRITO, 2002, p. 152)

A ironia do título incide sobre o tom professoral assumido pelos poetas criticados, especialmente à prática de ministrar lições de vanguarda como se houvessem descoberto um modelo matemático e único, sem o qual qualquer procedimento inovador ficaria desautorizado.

A virulência de Cacaso alcança os nomes dos autores concretistas, reduzindo-os a simples letras: Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari convertem-se respectivamente em H., A. e D. P. Subtrai a assinatura singularizante da obra de arte e assinala o rigor e a funcionalidade de um planejamento lógico e matemático. Ou seja, uma forma implícita de condenar o reducionismo praticado pelo concretismo, a valorização objectualista da palavra em detrimento de todos os vetores que entram na construção da rede de significados do poema. Nessa crítica pode ser observada a radicalização das assimetrias entre as metáforas elaboradas por Ítalo Calvino (CALVINO, 1990, p. 84-85); cristal e chama (que não são antitéticos no objeto de arte, mas diferentes modos de construí-lo) tornam-se posições enrijecidas em perspectivas opostas: a vanguarda - resultante de uma atividade programada em moldes científicos, o poema próximo a uma experiência de laboratório - e uma poesia bruxuleante, construída com a memória das ruas e a sensibilidade do artista, cujo caráter inovador somente poderá brotar da praxis poética, não se constituindo em parte de um programa prévio. O enrijecimento de postulações teóricas é representado pelo verso "dado é a palavra dado", limite de uma poética incapaz de enriquecer o legado mallarmaico, cuja filiação é sublinhada no verso "em sutil lance de dados", e da qual torna-se prisioneira ao cair em um universo circular sob a forma de uma linguagem tautológica apontada por Cacaso.

A imagem triangular do final do poema reforça todo o conteúdo crítico dos versos anteriores; mais que imagem geométrica é uma representação da onipotência divino-literária, remetendo à Santíssima Trindade.

A crítica realizada no poema aparece em inúmeros textos críticos de Cacaso, talvez em nenhum momento de maneira mais nítida do que no ensaio "A atualidade de Mário de Andrade", cuja leitura é fundamental para o entendimento da concepção crítico-teórica do autor de Lero-lero:
O poema é considerado "concreto" sempre que o seu significante assuma o caráter icônico, de aparência imediata, das artes visuais. Com a abolição decretada do verso em geral, a noção de experimento em poesia vai se confinar e se confundir com o trabalho sobre a matéria gráfica do texto; a palavra passa a interessar pelo seu lado de fora, a sintaxe torna-se espacial. E o nexo do poema passa de interior a exterior. A atualização de meios expressivos não está nesse caso, como esteve no romantismo e no modernismo, associada à intenção cognitiva e crítica, mas visa sobretudo inserir a arte no ritmo do tempo, na era da indústria moderna, com seus processos instantâneos e massificados de comunicação. As técnicas do concretismo são as mesmas da publicidade moderna, dos anúncios, com a manipulação da sonoridade expressiva e do universo da visualidade. A noção de experimento, combinada com a pretensão de radicalidade, é confinada à sua dimensão técnica, tomada como plena, e estamos diante da inovação pela inovação, da pesquisa entendida como tarefa intelectual, desprovida de necessidade intrínseca e conseqüente. (BRITO, 1997, p. 164-165)


O concretismo, aos olhos de Cacaso, tentou dar legitimidade estética à linguagem da publicidade, tomando o código visual como única linguagem poética ao expurgar a poesia de qualquer possibilidade de verso, tido como técnica ultrapassada. A vanguarda, com isso, instaurou uma nova retórica sintetizada numa espécie de manual de instruções: o plano-piloto para poesia concreta. A cidade tecnológica, a ideologia industrializante, a presença do mercado (através de estratégia de manipulação e consumo) e a transformação dos signos urbanos em fetiches estéticos ajudaram a engendrar o conteúdo programático do grupo Noigandres.

A irrupção do concretismo como linguagem modernizadora segue as mesmas necessidades reguladoras do projeto arquitetônico da modernidade implantado por Le Corbusier. O remodelamento do espaço urbano significou banir a concepção aparatosa, ornamental, presa à técnica de "vestir" a cidade e preocupada em deliciar o olhar. A planta moderna moldou-se sobre racionalismo, funcionalismo, economia, síntese e leveza. O planejamento anexou estruturas fordistas e tayloristas, transformou a casa em "máquina de morar". A concepção de intervenção reguladora, a valorização da planta como diretriz a ser aceita pelos habitantes fica evidenciada na afirmação de Le Corbusier "A planta é geradora” (LE CORBUSIER, 2002, p. XXX), esclarecida mais adiante no mesmo texto, sob o título "Os traçados reguladores": "A obrigação da ordem. O traçado regulador é uma garantia contra o arbitrário. Proporciona a satisfação do espírito" (LE CORBUSIER, 2002, p. XXX). Esse projeto espacialmente revolucionário, remanejando formas e volumes, sustenta-se numa ideologia do progresso, do otimismo empreendedor. Quando o pai da moderna arquitetura afirma - "A moralidade da empresa se transformou; a grande empresa é hoje um órgão sadio e moral" (LE CORBUSIER, 2002, p. 203), mais do que fornecer uma certidão de boa conduta, uma avaliação positiva, toma de empréstimo às formas econômicas os conceitos plásticos de remodelagem do espaço urbano. A modernidade é pensada como o ponto mais avançado, o caminho a ser seguido, uma construção exemplar, à frente do coletivo e servindo-lhe de parâmetro. A cidade não comporta conflito, discussão, elementos aleatórios, desordenados, fora de controle. A planta é traçado regulador e determinador dos caminhos individuais. Os responsáveis pelos traçados, nesse caso, só podem ser pequenos deuses ou indivíduos eleitos, acima dos demais cidadãos a quem cumpre apenas sofrer os atos mágicos emanados de especialistas do bem-estar, do bem-viver e do urbanismo.

Se a valorização máxima da expressão livre, dos ritmos próprios e originais e do caráter anti-oficial do modernismo apontavam criticamente para todas as regiões da cidade, a vanguarda concretista concentrou-se em áreas nobres, reservadas à movimentação dos eleitos, daqueles que, mais do que exprimir a modernidade, monopolizavam a sua prática como únicos engenheiros e proprietários de novas linguagens.



Referências 



ADORNO, Theodor W. Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
BRITO, Antônio Carlos de. Lero-lero. Rio de Janeiro; 7 Letras: São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
____. Não quero prosa. Org. e seleção: Vilma Arêas. Campinas, SP: UNICAMP, Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.


* Artigo publicado na Revista Garrafa, n° 3, maio/agosto 2004, programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ.

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Cidade iluminista, modernidade e modernismo *




Há uma tendência a se pensar numa relação homológica entre projeto urbano e concepção do mundo. No traçado das cidades estariam desenhadas as idéias que sustentaram determinadas épocas. O espaço reservado à catedral na Idade Média, o centro ocupado pelo palácio do soberano no plano radiocêntrico da cidade barroca, moldado por projetistas do absolutismo político, o núcleo no qual se erige a sede do governo ou a fortaleza, poderiam justificar essa idéia. Contudo, a observação atenta à evolução urbana compromete tal condicionamento automático, revelando a fragilidade de seus pressupostos.

O nexo entre cidade e concepção de mundo deve ser buscado, segundo a ótica de Sérgio Paulo Rouanet, "numa instância intermediária que guarde com a concepção de mundo uma relação de correspondência, mas não se confunda com ela" (1) , com isso a complexidade do planejamento urbano fica protegida da rigidez e do dogmatismo com os quais as visões de mundo normalmente constroem um conceito de verdade.

Essa instância intermediária é explicitada pelo autor:
Penso num elenco de princípios diretores, que constituam, por assim dizer, uma "tradução" para o universo do urbanismo da idéia iluminista. Se eles existissem, o urbanista poderia conciliar sua fidelidade a certos valores com uma considerável liberdade de criação. Reconhecendo a validade de tais princípios, cujo caráter é basicamente formal, não se sentiria obrigado a transformar os conteúdos de sua concepção do mundo em estruturas urbanas. Sob a condição única de que os princípios fossem respeitados, ele estaria livre para criar de acordo com seu próprio estilo e com as linguagens estéticas do seu tempo. Essas linguagens mudam, e, desse modo, os mesmos princípios poderiam atualizar-se em realizações urbanísticas que variassem de época para época. (2)


Desse modo, o urbanista pode fugir a qualquer tentativa de dirigismo e sustentar um mínimo de autonomia em sua prática. Aliás, a noção de autonomia, em todas as suas articulações, é nuclear à leitura que Rouanet faz do Iluminismo, vendo nele a persistência de vigor crítico. A Ilustração, configuração empírica do Iluminismo (entendido como a filosofia propriamente dita), foi fundamental para a construção da modernidade, alimentando o liberalismo, com os conceitos de liberdade e democracia, o socialismo, ao aguçar as tendências igualitárias e libertárias, e os movimentos ecológicos, originados do culto à natureza.

Na segunda parte do ensaio, Rouanet faz uma análise do verbete "cidade", contido no texto fundamental da Ilustração, a Encyclopédie, de Diderot e d'Alembert. A partir dele, levanta os fundamentos da reflexão urbanística da Ilustração, constituídos, na verdade, por quatro relações polares. A primeira antinomia abrange a relação abertura/clausura, isto é, entre os limites da cidade e aqueles territórios além deles, oposição ainda constitutiva dos projetos contemporâneos, mesmo naqueles em que se transformou em tensão entre centro e periferia urbanos graças não apenas à expansão territorial, mas ao processo de compressão do tempo-espaço (3). A segunda polaridade é a da relação entre o plano individual e o coletivo, responsável pelos direitos à individualidade e à ação coletiva, sempre assumindo novas formas frente às tentativas de manipulação e controle de ambos. A terceira contrapõe o estético ao utilitário, tocando nas questões pertinentes à função e à finalidade do ambiente urbano. Finalmente, a quarta relação envolve a tensão entre o novo e o antigo, polaridade praticamente presente em todos os momentos históricos. São essas polaridades que, de acordo com a versão de Rouanet, se transformam em normas de ação urbanística.

O núcleo normativo, constituído pelos princípios diretores do planejamento urbano, funciona como intermediação entre a idéia do Iluminismo e a materialidade urbana. O autor de O mal estar da modernidade denomina-o civitas, ao passo que a cidade real projetada pelo urbanista ou na qual ele intervém é designada como urbs. A observância à estrutura triangular dessa concepção permite ao autor propor um modelo de equilíbrio e racionalidade, capaz de neutralizar as tensões advindas das polaridades urbanas, no qual não se legisla a partir de uma ideologia, pois a civitas é expressão de autonomia e liberdade.
Dentro desse espaço, os urbanistas são soberanos. Podem ser modernos ou pós-modernos, funcionalistas ou historicistas, podem construir cidades em forma de tabuleiro, como Nova York; ou de leque, como Karlsruhe. Podem realizar cidades da Renascença, em forma de caracol, como Giorgio Marini; ou de espiral, como Filatere. Podem usar os materiais que bem entenderem: barro, vidro, alumínio. Mas não podem ignorar a civitas, pois é a observância das normas imanentes às diversas polaridades que define a cidade iluminista. (4)


Como se vê, obtém-se um modelo praticamente universal e transhistórico a presidir a proliferação e a expansão das cidades. Por isso, o autor termina o ensaio fundando uma cidade volitiva, irreconhecível fora do modelo idealizante no qual foi criada. De acordo com tal visão, a cidade iluminista é aberta, porosa, hospitaleira ao Outro, capaz de absorver a diferença, mantenedora do contraste entre a vida urbana e a natureza, inconciliável com as cidades-jardins, inimiga da ideologia antiurbana, intolerante com a miséria, com a exploração social, com a violência, com a poluição, além de ser bela e funcional. A questão não é que tais características não existam ou sejam falsas, porém não dão conta da cidade, sequer como representação abstrata das urbes.

Se o Iluminismo pode ser concebido como a infância da modernidade, seguramente legou-lhe modelos de planejamento, mais ainda: um modelo de olhar. O Renascimento operou uma gigantesca modificação das visões do tempo e do espaço, uma ampliação dos horizontes humanos que reduziu o planeta a sua dimensão finita, desabilitando antigas concepções mitológicas e teológicas. Todos os territórios, mesmo aqueles ainda não incorporados, tornaram-se vulneráveis. Além das modificações trazidas ao olhar por essa remodelação da paisagem, a fixação das regras fundamentais da perspectiva permitiu moldar as formas de ver. A reprodução fria, geométrica, sistemática, racionalista e a percepção em ótica infinita da dimensão finita constroem um sistema de representações (artísticas, econômicas, legais, políticas, psicológicas etc.) cujas linhas atravessam o percurso da modernidade e não desaparecem totalmente na pós-modernidade.

É a esse movimento de construção e representação sob controle, a esse processo de manipulação de elementos diversos para a obtenção de uma finalidade emancipadora que as vanguardas modernistas se ligaram, seja mediante a reconcepção das idéias iluministas, seja através de um movimento de profunda negação.

A observação de David Harvey sobre os limites da atuação iluminista ajuda a corroborar tal raciocínio.
Os pensadores iluministas também queriam dominar o futuro por meio de poderes de previsão científica, da engenharia social e do planejamento racional e da institucionalização de sistemas racionais de regulação e controle social. Eles na verdade se apropriaram das concepções renascentistas de espaço e de tempo, levando-as ao seu limite, na busca da construção de uma sociedade nova, mais democrática, mais saudável e mais afluente. Na visão iluminista de como o mundo deveria ser organizado, mapas e cronômetros precisos constituíram instrumentos essenciais. (5)


Levando em consideração a linha de continuidade entre Iluminismo e vanguardas, os projetos de Le Corbusier podem ser compreendidos como constituídos por uma radicalização da perspectiva de uma razão ordenadora, que instrumentaliza tempo e espaço, subordinando-os à lógica da acumulação capitalista.
E passo a passo, depois de se ter produzido nas fábricas tantos canhões, aviões, caminhões, vagões, dizemo-nos: Não se poderia fabricar casa? Eis aí um estado de espírito completamente atual. Nada está pronto, porém tudo pode ser feito. Nos próximos vinte anos a indústria terá agrupado os materiais fixos, semelhantes àqueles da metalurgia; a técnica terá levado bem além daquilo que conhecemos a calefação, a iluminação e os modos de estrutura racional. As construções não serão eclosões esporádicas em que todos os problemas se complicam ao se acumular; a organização financeira e social resolverá, com poderosos e acertados métodos, o problema da habitação, e as construções serão imensas, geridas e exploradas como administrações. Os loteamentos urbanos e suburbanos serão vastos e ortogonais e não mais desesperadamente disformes; permitirão o emprego do elemento de série e a industrialização da construção. Cessaremos talvez enfim de construir 'sob medidas’. A fatal evolução social terá transformado as relações entre locatários e proprietários, terá modificado as concepções da habitação e as cidades serão ordenadas em lugar de serem caóticas. A casa não será mais essa coisa espessa que pretende desafiar os séculos e que é o objeto opulento através do qual se manifesta a riqueza. Ela será um instrumento, da mesma forma que o é o automóvel. A casa não será mais uma entidade arcaica, pesadamente enraizada no solo pelas profundas fundações, construída em 'duro', e à devoção da qual se instaurou desde muito tempo o culto da família, da raça etc. (6)


A longa citação serve para demonstrar a crença depositada na produção de novas tecnologias e na organização do capital como fatores decisivos para a eliminação do caos urbano, ao qual, numa concepção evolutiva, sucederá o princípio da ordem representado por um planejamento científico e estético.

A poética de Cacaso surge na contramão de um projeto iluminista esvaziado de suas formulações originais, apropriado e deformado por um processo cuja razão cedeu a primazia à lógica brutal da acumulação e cuja autonomia passou a ser vista como possibilidade de fuga ao planejamento central.

Tanto Cacaso quanto Oswald de Andrade se aproximam em relação à construção de uma obra cuja legibilidade é assegurada por estarem inscritas nos limites dos sulcos que delimitam o território urbano.

Marshal Berman, em seu estudo sobre a modernidade baseado numa reinterpretação de Marx, aponta para um senso de totalidade entre vida e experiência, englobando polaridades diferentes das apontadas por Rouanet, mas fundamentais à legibilidade do mundo, como política e psicologia, indústria e espiritualidade, classes dominantes e classes operárias, A partir de uma concepção da vida moderna como um processo dotado de coerência, o autor critica o entendimento de uma visão dual sobre a modernidade: "O pensamento atual sobre a modernidade se divide em dois compartimentos distintos, hermeticamente lacrados um em relação ao outro: 'modernização' em economia e política, 'modernismo' em arte, cultura, sensibilidade." (7)

Mais à frente, o autor volta a estabelecer uma distinção entre modernismo e modernização:
Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao 'modernismo', encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da 'modernização', um complexo de estruturas e processos materiais − políticos, econômicos, sociais − que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporânea, dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno. (8)


O modernismo sempre reivindicou sua filiação a um processo de modernização da cultura brasileira, uma "atualização" cuja referência era toda eurocêntrica. Tal ação correspondia, destarte, à valorização de um dos princípios da quarta polaridade apontada por Rouanet: o novo. Quebrar velhas estruturas, romper os códigos literários vigentes, superar o declamatório, o discursivo, o retórico e as formas evanescentes herdadas do século XIX significava operar uma verdadeira revolução similar ao empreendimento remodelador das cidades, ao processo de atualização de nossos centros urbanos, modernizados de acordo com modelos fornecidos pelos países mais avançados. Esse gesto inovador no plano urbano ficou conhecido com a designação de "melhoramento". Sua expressão maior está representada nas alterações promovidas pela reforma efetuada pelo prefeito Pereira Passos na fisionomia do Rio de Janeiro, cujo novo traçado não apenas atualiza, apresenta nova conformação, novos projetos, como também busca desvencilhar-se da memória, ao mesmo tempo em que desloca os grupos indesejáveis de um centro transformado em vitrina e palco do progresso, em conformidade com o figurino estabelecido pela proposta criada pelo Barão Haussmann para Paris na segunda metade do século XIX. Esse "melhoramento" produz tanto resultados positivos quanto negativos, desenhando-se, portanto, como uma forma híbrida: se o racionalismo urbano estetizado dessa transformação traz o progresso, gera, simultaneamente, a favela.

A razão iluminista não é a Razão, os imperativos categóricos são tão flutuantes quanto qualquer formulação teórica. Sua constituição e emprego corresponde a uma representação dos interesses de determinada classe. A sobredeterminação do novo é a ampliação da mercadoria, estendendo a sua natureza aos atos e movimentos culturais. Esse novo passa a ser usufruído por aqueles capazes de reconhecer o seu valor de mercadoria. Nesse sentido, a modernização no Brasil, em quase todos os seus atos, surge como resultado da ação de uma elite colonial num processo de identificação que tenta criar instrumentos para igualar-se aos centros mais avançados. Os movimentos literários, a luta contra a insalubridade e pelo saneamento das cidades, o planejamento urbano, o processo de industrialização, portanto, apontam para espaços nos quais as classes populares nunca tiveram poder decisório, embora sempre apareçam como alvo, público, vítima ou como habitantes invisíveis.

Na verdade, a modernização com embelezamento proposto nas décadas iniciais do século passado tem seus desdobramentos na política desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek e chega às décadas de atuação de Cacaso sob a forma de um projeto de construção nacional megalomaníaco, fruto da associação entre oclusão política, vontade imperial, tecnocracia, radicalismo ideológico, financiamento externo e racionalismo normativo. Ou seja, o modelo de cidade iluminista proposto por Rouanet abriga a Reforma Pereira Passos, os projetos de Le Corbusier (9), cujo maior desdobramento é Brasília, cidade-símbolo do planejamento como utopia racionalista, e os planos engendrados pelos projetistas do Brasil Grande: Transamazônica, Itaipu, usina nuclear e as milhares de unidades financiadas pelo BNH país afora, dentre outros projetos arquitetônicos.


NOTAS




(1) ROUANET, Sérgio Paulo. A cidade iluminista. In: Memória, cidade e cultura. Coord. Cléia Schiavo e Jayme Zettel. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997, p. 3.
(2) Idem.
(3) Cf. HARLEY, David. Especialmente toda a Parte III - "A experiência do espaço e do tempo", p. 184-289. In: A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1993.
(4) ROUANET, op. cit., p.10-11.
(5) HARVEY, op. cit., p. 227.
(6) LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. Trad. Ubirajara Rebouças. 6a. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 166.
(7) BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 87.
(8) Ibid., p. 129.
(9) As idéías de Le Corbusier influenciaram nossos urbanistas. Conforme assinala LEME,Maria Cristina da Silva Leme. "Urbanismo: a formação de um conhecimento e de uma atuação profissional". In: Palavras da cidade. Org. Maria Stella Bresciani. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 90. "A passagem de Le Corbusier por São Paulo e Rio de Janeiro em 1929 e o retorno em 1936 são responsáveis pela difusão deste movimento no Brasil. Ele profere duas conferências no Rio: a primeira sobre arquitetura - Revolução Arquitetural - e a segunda sobre Urbanismo. Estes dois temas estão estreitamente articulados em sua fala - a cidade e a arquitetura moderna."



* Artigo publicado na Revista Zunái (http://www.revistazunai.com.br/) - edição de setembro/2007.

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Hilst: exílio da oikos *



Contos d’escárnio. Textos grotescos é uma narrativa que faz parte da trilogia obscena de Hilda Hilst. Pode ser entendido como um texto de deslocamento, aparentemente desorganizado pela perda de referências, uma espécie de narrativa caótica se confrontado ao padrão tradicional. É o relato de uma voz sem o abrigo e a certeza de uma oikos, de uma voz que vem de fora da casa, vem do terreno do excluído e do interdito. Não há nenhuma segurança, portanto não há roteiro. O texto é uma organização mis en abîme. As figuras hilstianas, seres residuais de um sistema extremamente eficaz na produção simultânea de riqueza, miséria e infelicidade, movem-se no lixo, nas sobras, no dejeto do existir. Foram desalojadas do real por excesso de realidade, foram excluídas não por carência, mas por abundância. A proliferação desenfreada do real anula a realidade e deixa os indivíduos à deriva. É dessa deriva que trata a obra hilstiana, do ser humano sem chão e sem céu., do mal-estar da existência, da privação, cujo maior símbolo é a presença de um deus ausente.

Crasso, o narrador-personagem, na auto-apresentação e justificativa realizadas nas primeiras páginas da narrativa, revela ter ficado órfão nos seus primeiros meses de vida: a mãe falecera logo após ele receber o nome de batismo e o pai morreu um mês depois em um bordel. O desamparo surge, dessa forma, como componente fundamental da sua existência. Corresponde a um não-habitar, a uma oikos deslocada, à intrusão em outra casa, no centro de relações que não são aquelas que formariam o seu espaço, a sua identidade, pois sua inserção na órbita do tio Vlad equivale ao desterro do mundo paterno, a uma condenação à vida no exílio.

A cena inicial contém ainda uma das características mais recorrentes na obra da autora: a preocupação com a escolha e a etimologia dos nomes próprios, extraídos geralmente de fontes culturais clássicas. Em outros momentos a autora opta por nomes raros, de ressonâncias herméticas. De qualquer maneira, os nomes são colhidos fora da contemporaneidade, ensaiam uma linha de continuidade com o passado, seja histórico, seja mítico. Esse processo de nomeação de personagens institui uma atmosfera que ajuda a inserir o universo obsceno contemporâneo numa linhagem dotada de uma espécie de nobreza cultural. Um dos recursos pelos quais a autora escapa ao aprisionamento nos marcos estreitos da pornografia é justamente essa sofisticada preocupação lingüística que se sobrepõe às sucessivas eclosões de vulgaridade e linguagem chula. O fascínio e a fixação por supostas propriedades inerentes aos nomes pode ser constatado na referência a uma das numerosas amantes de Crasso:



Ah, tudo que eu fiz com e por Otávia. Ela tinha trinta anos e todas as sugestões que o nome carrega: altivez, um pouco de fúria, cabelos negros, olhos grandes, escuros, e dizer Otávia na hora do gozo é como gozar com mulher e ao mesmo tempo com general romano, com rapagão e com Otávia inteira mulher de general. (HILST: 2002, 15)


A escolha do nome do narrador revela, ainda, outra marca do estilo hilstiano: a incessante referência a autores, livros e personagens (reais ou fictícios) do mundo da arte. Assim, apenas nas duas páginas iniciais, fora a escolha do próprio narrador, existem referências à mania (da mãe de Crasso) de ler História das Civilizações, à paixão por Vladimir Horowitz, além da citação de ...E o vento levou, Rebeca, Os sertões e Ana Karenina. Aqui pode ser observado mais um recurso que subtrai ao caráter pornográfico posição hegemônica na construção da prosa hilstiana. As referências ao universo mais alto da literatura, a crítica a determinados autores, a eleição de outros, a discussão de idéias e de trabalhos dos universos artístico, filosófico e científico não são recursos apropriados ao universo de revelação do interdito com intenção de prazer não-estético que é o caráter mais pertinente ao campo pornográfico. O pornográfico, em Hilda Hilst, encontra-se a serviço de uma estética do choque, da ruptura e do absurdo.

Crasso, alter ego de Hilda Hilst, expõe as razões que o levam a produzir o texto:



Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que lêem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa seqüência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. Então não vou escrever um romance como... E o Vento Levou ou Rebeca, Os Sertões e Ana Karenina então nem se fala. Os verbos chineses não possuem tempo. Eu também não. (HILST: 2002, 14)


A narrativa de Crasso surge motivada pela proliferação de textos. O excesso de livros é percebido como acúmulo de lixo. É a produção de resíduos textuais que justifica a obra, fruto, portanto, de um desequilíbrio ecológico, uma intervenção nociva do ser humano na natureza. Texto e pornografia surgem como formas de manifestação do desamparo que acabam fundidas em uma só forma – a arte – com a qual se busca freneticamente prazer, sentido e resposta.

A segunda seqüência traz as personagens Otávia e Lina, esta, poetisa de vôo limitado. O estilo de Hilda adquire em muitas passagens o caráter descritivo apropriado aos textos pornográficos, nos quais as minúcias realistas suprem o leitor da excitação necessária ao prazer e alívio que tais narrativas prometem. Paradoxalmente, Hilst não cumpre o acordo tácito com o leitor, pois o texto adquire conformações diversas do hiper-realismo sexual esperado e mergulha, incessantemente, em reflexões, digressões e cortes narrativos que impedem a sua redução a qualquer grau de previsibilidade. Mesmo quando descreve cenas em que o sexo é tratado de modo central, o narrador opera com desvios que despotencializam a crueza da expressão. É o que acontece na cena descrita abaixo:



Otávia por exemplo gostava de apanhar. A primeira vez que a “fodi” (ou que “fodia-a” ou que “fui fodê-la”, é melhor?) enganei-me na tradução de seu breve texto. Ela me disse: me dá uma surra. Entendi que era uma surra de pau. E fui metendo, me agüentando longamente para não esporrar, pensando na mãe morta, no pai morto, na missa de de sétimo dia do tio Vlad, que depois eu conto como ele morreu, e nesse todo patético deprimente que é morte e doença. Aí ela me interrompe a meditação ativa, dura e disciplinada.
surra, amor, eu disse. Surra, meu bem.
Então entendi. Meti-lhe a mão na cara quatro, cinco vezes. (HILST: 2002, 16-17)


O foco sobre o caráter obsceno do trecho é desviado mediante a irrupção de uma preocupação de natureza lingüística nas duas primeiras linhas. O desvio é acentuado pelo efeito humorístico provocado pela ambigüidade da palavra “surra”, na dupla função de submissão de alguém à intensa atividade sexual ou de sucessão de pancadas violentas em determinado indivíduo. Intensifica-se, finalmente, com o privilégio concedido à exibição em primeiro plano dos pensamentos do protagonista em detrimento da ação física, cujo detalhamento corresponderia à expectativa apropriada ao texto obsceno. Vale ressaltar que “a meditação ativa, dura e disciplinada” é constituída por uma reflexão sobre aspectos negativos, formando um plano antitético em relação à entrega a todo o tipo de prazer sexual: as idéias de Crasso concentram-se em torno de morte, dor, doença e sofrimento.

A atividade sexual também surge relacionada a um processo de animalização, à componente de bestialidade tão presente ao longo da obra da autora. A animalização não apenas representa a dimensão primária, vital e instintiva da sexualidade. Ela simboliza o esvaziamento do ser, destituído de sua própria humanidade, reduzido a uma forma viva que se confunde com qualquer outra. Assim, o auge do perversão prazerosa proporcionada por Otávia é explicitado numa comparação bastante reveladora: “Como se você estivesse fodendo uma onça-mulher filhote”. (HILST: 2002, 17)

O próximo bloco narrativo, dedicado a mais duas amantes, formula uma crítica a um comportamento típico do machismo: a desvalorização da inteligência como um atributo feminino, razão pela qual Crasso pode afirmar: “Quando eram cultas, simplesmente me enojavam”. (HILST: 2002, 18) Uma das amantes, Flora, era chata, culta (citava Lucrécio na cama) e extorquia dinheiro de Crasso. A outra, Josete, tinha gosto exótico na comida e no sexo, além de possuir mania de música. Todavia, sua importância para a narrativa consiste na obsessão por Ezra Pound. É essa paixão que fornece a Crasso, alter ego de Hilda Hilst, a oportunidade de criticar um dos ícones da poesia do século passado. Após manifestar repulsa à sua proposta estética do poeta, denominando-o repelente, fascistóide, engodo e invenção de letrados pedantescos, incorpora à obra trecho extraído da obra poundiana, intitulado “Do Caos à Ordem”, canto XV, composição construída em linguagem coprológica. A transcrição do texto, considerado lixo por Crasso-HH, não é suficiente. É necessário o recurso à crueldade: os versos de Pound estão tatuados em redor do ânus de Josete. A poesia do autor de Cantos mais do que negada, é ultrajada, relegada a lixo, escrita imunda, sem valor.

A referência direta ao leitor é utilizada ao longo da obra, como pode ser demonstrado em: “E agora, falando em igreja, lembrei-me que ainda não lhes contei como é que foi a morte do tio Vlad” (HILST: 2002, 23) ou em “Antes de falar da igreja vou falar do bordel a 30 quilômetros da Gota do Touro”. (HILST: 2002, 27) As cenas e os contos vão surgindo através de um processo caótico, já apontado no início pelo próprio narrador, freqüentemente com a quebra do ritmo por incursões do narrador que ora antecipa histórias, ora intercala reflexões, ora muda a forma discursiva, ora ausenta-se para logo retornar, ora surge sob nome diferente. Esse caráter protéico permitiria, com mais propriedade, considerá-lo um antinarrador (1).

Em meio às putarias, o narrador encontra tempo para ir à igreja, lugar que o conduz a discorrer sobre religião e a demonstrar familiaridade com a história do cristianismo, através de referências à perseguição que os católicos moveram aos cátaros no século XII. A presença na igreja não denota expressão de fé, pois dá vazão a uma crítica virulenta ao apego da instituição aos bens materiais. Na igreja encontra Clódia, uma nova amante.

O narrador faz referência aos autores lidos na mocidade, Spinoza, Kierkegaard, Keats, Yeats, Dante, ao mesmo tempo em que reconhece estar em um processo de decadência.

A obsessiva preocupação com o vocabulário parece na verdade um trabalho artesanal de demolição do tom pornográfico da narrativa, construída, num amálgama de intenção irônica e realização metalingüística. Surge, de modo inesperado, por meio de palavras consideradas inadequadas ao contexto lascivo em que são inseridas, como no momento em que sofre atração por Clódia:



Meu pau fremiu (essa frase aí é uma seqüela minha por ter lido antanho o D. H. Lawrence). Digo talvez meu pau estremeceu? Meu pau agitou-se? Meu pau levantou a cabeça? Esse negócio de escrever é penoso. É preciso definir com clareza, movimento e emoção. E o estremecer do pau é indefinível. Dizer um arrepio do pau não é bom. Fremir é pedantesco. Eu devo ter lido uma má tradução do Lawrence, Porque está aqui no dicionário: fremir (do latim fremere) ter rumor surdo e áspero. Dão um exemplo: “Os velozes vagões fremiam”. Nada a ver com o pau. Depois, sinônimos: bramir, rugir, gemer, bramar. Crê, como dizia o padre tutor do Tavim, nada mesmo a ver com o pau. Meu pau vibrou, meu pau teve contrações espasmódicas? Nem pensar. Então, meu pau aquilo. O leitor entendeu. (HILST: 2002, 32)


Aqui a autora esgota todas as possibilidades de expressão, porém não consegue descobrir um termo que traduza plenamente aquilo que pretende dizer. Resta apelar ao discernimento do leitor.

O jogo vocabular deixa transparecer o rico universo cultural de Crasso. Clódia, a museóloga e pintora de vaginas, e Crasso são nomes retirados do mundo romano. Clódia foi o grande amor de Catulo, um dos grandes poetas de Roma lido por Crasso aos dezoito anos.

A referência ao universo cultural que o nome Clódia evoca é pretexto para o surgimento de uma peça de oratória de caráter erótico e solene, como escrita para ser proferida por um nobre tribuno romano.



Ó conas e caralhos, cuidai-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando sempre abaixo de vossas cinturas! Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas, lolitas-velhas! Colocai vossas mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha vagarosa, dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de marfim, plantados nas gengivas luzentes! Cáustica, Clódia atravessa ruas, avenidas e brilhosas calçadas. Ó, pelos deuses, adentrai vossas urnas de basalto porque a leoa ronda vossas salas e quartos! Quer lamber-vos a cona, quer adestrar caralhos, quer o néctar augusto de vagina e falos! Centuriões, moçoilos, guerreiros, senadores, atentai! Uma leoa persegue tudo o que é vivo mole incha e cresce! Trançai vossas pernas, trançai vossas mãos atentas sobre as partes pudendas! Não temais a vergonha de andar pelas ruas em torcidas posturas, pois Clódia está nas ruas! (HILST: 2002, 36-37)


As reflexões lingüísticas multiplicam-se por toda a narrativa de Contos d’escárnio. Clódia é denominada “leoa dos plátanos” por conta da sonoridade da palavra, numa demonstração da força que os jogos com os significantes ganham nos textos hilstianos. A mesma personagem também é caracterizada pelo fato de falar diminutivos em alemão, marca lingüística por trás da qual Hilda Hilst esconde um de próprios atributos.

A narrativa, a partir de certo momento, adquire a conformação de um espelho no qual Crasso, o narrador, transforma-se em Hans Haeckel. Se o primeiro dá origem ao texto escabroso, lascivo, obsceno, o segundo correponde à figura do escritor sério, ignorado pela crítica, invejado por outros escritores, comprometido até a raiz com a literatura. Em ambos, no entanto, é visível a projeção da imagem de Hilda Hilst, como pode ser comprovado no diálogo entre as duas personagens:



Hans, vamos escrever a quatro mãos uma história pornéia, vamos inventar uma pornocracia, Brasil meu caro, vamos pombear os passos de Clódia e exaltar a terra dos pornógrafos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis.
não posso. Literatura para mim é paixão. Verdade. Conhecimento. (HILST: 2002, 41)


A seriedade do escritor em um ambiente hostil é uma espécie de suicídio, por isso Hans Haeckel mata-se logo após ouvir a proposta de Crasso. Sob a forma dialógica surge o impasse hilstiano, o insulamento de uma obra alimentada por paixão, verdade e conhecimento e o desejo de reconhecimento.

A formulação de uma história pornéia pode ser entendida como uma reação crítica e irônica à vulgarização de uma literatura de baixo nível, baseada em recursos técnicos primários e limitados, sem qualquer preocupação com qualidade, verdade e conhecimento, cuja maior representante é o best seller. Paradoxalmente, HH busca de modo deliberado na mais desprezada das literaturas de consumo, a pornográfica, esvaziada de intencionalidade estética, o alvo para a denúncia e a fonte de uma estética transgressora.

A concepção estética traz subjacente uma crítica política, fato observado por um dos maiores estudiosos de sua obra, Alcir Pécora:



Há uma analogia evidente entre, de um lado, a negatividade produtiva em Hilda Hilst face à indústria cultural e, de outro, a adoção de um registro obsceno face às circunstâncias do Brasil, que ela trata como país bandalho por antonomásia. O Brasil, segundo Hilda Hilst, é uma terra devastada onde o poder injusto e ilegítimo pactua com a a venalidade mais mesquinha no meio da celebração da malandragem e do triunfalismo nacional-popular-carnavalizante. (PÉCORA: 2005, 11)


Isso significa que Hilda Hilst condena o exercício do poder por um tipo de bandidagem que volta-se contra a prática de liberdade e lucidez representada, em seu estado mais profundo, pela literatura. Em uma realidade onde predomina a vulgaridade, a alienação completa, a velhacaria política e social, resta tão-somente a criação de um narrador entregue ao desengano, ao delírio, à loucura ou à morte. O texto hilstiano, de acordo com a ótica de Alcir Pécora, formula, dessa maneira, uma síntese amplificada de todas as obscenidades dissimuladas, institucionalizadas, normalizadas e naturalizadas na paisagem brasileira e humana.

Aponta ainda o ensaísta para um aspecto moralístico inerente à crítica hilstiana:



Para Hilda Hilst, em terra de pornógrafos, o que cabe ao escritor sério é produzir a evidência de uma pornocracia, isto é, da violência hegemônica da identidade bandalha. Pode-se pensar, pois, nesses textos obscenos como exercícios de prosa satírica nos quais a construção de tipos mistos e heterogêneos, que definem o vicioso, o execrável e o repugnante, está fortemente vinculada a uma moralística, desde que se dê ao termo o seu sentido rochefoucauldiano de exercício bem-humorado de destruição sistemática das afetações ou auto-indulgências desonestas compartilhadas civilmente. (PÉCORA: 2005, 12)


Após o diálogo entre Crasso e Hans Haeckel, surge um pequeno conto (o narrador aconselha o leitor a evitar a leitura, caso queira continuar vivo), denominado Lisa, que trata de um caso de zoofilia entre uma macaca (Lisa) e o seu anônimo dono, ambientado em uma pensão miserável, apesar do nome — Pensão Palácio.

O texto, depois da breve incorporação do conto de outro narrador, volta à profusão de cenas grotescas. Dessa vez Clódia vai presa por atentado ao pudor devido à idéia inusitada de pintar paus em plena rua, obsessão que acaba levando-a ao hospício. Lá recebe textos de natureza diversa: receita, conto e teatro.

O texto de receitas, intitulado “Pequenas sugestões e receitas de Espanto-Antitédio para senhores e donas de casa” , apresenta construções de puro non sense, algumas concebidas com crueldade, fórmulas de simpatias, receitas reveladoras de leituras científicas da autora, todas eivadas de uma ironia ferina. A última receita traz crítica explícita à literatura valorizada pelo mercado, verdadeiro leit motif em sua obra: “Recolha num vidro de boca larga um pouco do ar de Cubatão e um traque do seu nenê. Compre uma ‘Bicicleta Azul’ e adentre-se algum tempo nas ‘Brumas de Avalon’. É uma boa receita se você quiser ser um escritor vendável”. (HILST: 2002, 54)

Três pequenas peças teatrais são inseridas no corpo da narrativa. A primeira tem por título “Teatrinho nota 0, no. 1” e sua autoria é atribuída a Zumzum Xeque Pir. As personagens são paródias que acentuam o caráter de perversão das referências culturais da literatura ocidental, chegando uma delas a ser nomeada por um expediente de manifesto mau gosto – Bãocu (corruptela de Banquo, general de Macbeth; este, por sinal, reduzido a Madbed). A cena final ironiza os estereótipos de um país em que se escorraçam os letrados e o monstro das letras: o palco fica em festa com mulatas, seleção de futebol, samba e música frenética.

O segundo teatrinho, um diálogo entre pai e filho, denomina-se “Teatrinho nota 0, no. 2”, de autoria de Nenê Casca Grossa. Trata-se de uma violenta metáfora da dominação masculina. A animalização da mulher, metaforizada como ursa, deixa à mostra a condição inferior que lhe é imposta pela estrutura patriarcal da sociedade brasileira.

A terceira peça, constituída por um diálogo entre dois jovens — Sonsin e Nenéca — é intitulada “Teatrinho nota 0, no. 3”, atribuída a Sonson Pentelin. No texto, entretanto, aparece o título “O Pétala”. A cena é dominada por uma discussão sobre o tipo de linguagem e situação a ser encenado e como encenar, à qual é incorporada uma observação sobre a obra da própria Hilda Hilst: “Nenéca, é uma peça burlesca, já te disse, ou você acha que o pessoal quer a HH, aquela metafísica croata?” (HILST: 2002, 75)

A inclusão do discurso teatral à babel discursiva formada pela narrativa de Contos d’Escárnio contribui para acentuar a natureza dialógica do texto. Alcir Pécora, ao chamar a atenção para o uso do fluxo de consciência em Hilda Hilst., desvenda a peculiaridade de sua presença no universo da escritora:



Não se trata, contudo, da forma mais conhecida de fluxo de consciência, na qual a narração ou o enunciado se apresenta como flagrante realista de pensamentos do narrador. O fluxo em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo surpreendentemente teatral, sem deixar de se referir sistematicamente ao próprio texto que está sendo produzido, isto é, de denunciar-se como linguagem e como linguagem sobre linguagem. O que o fluxo dispõe como pensamentos do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente como falas de diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva da narração. Daí a impressão viva de que aquilo que no narrador de Hilda pensa está atuando. E atuando em cena aberta: atuando cara a cara com uma platéia tendenciosa, hostil e predominantemente estúpida. Mais do que a subjetividade ou a psicologia, o que a sua prosa encena como flagrante de interioridade é o drama da posição do narrador face ao que escreve: aquilo que se passa com alguém quando se vê determinado a falar, mais, digamos, por efeito de possessão ou determinação irresistível de certa forma vicária de ser e de viver do que por vontade própria. (PÉCORA: 2005, 4)


Da leitura de um novo texto de Hans Haeckel, Crasso muda para uma narrativa epistolar, pois desloca-se espacialmente à procura da produção inédita de Hans Haeckel, considerada pela própria mãe do infausto escritor como “lixo”. Desse modo, aparecem, então, reunidos os dois extremos da literatura: o baixo, constituído por obras destituídas de qualquer valor artístico, e o alto, representado por trabalhos marcados pela elaboração da linguagem, pelo apuro formal e pela qualidade estética. Cartas d’escárnio, nesse sentido, resulta do diálogo entre as duas faces da escrita hilstiana, alimentando uma tensão que busca romper o impasse que a submissão a qualquer uma delas representa para a autora.

“Conto póstumo de Hans Haeckel”, o próximo quadro no caos de Contos d’escárnio, é mais uma estória curta no meio da narrativa desordenada de Crasso. Além da manutenção do clima agressivo da obra, retratado de modo onírico através do sonho da personagem com o falo de Deus a jorrar sangue e sêmen negro, a pequena composição retorna ao desencanto com a realidade brasileira: “quanto à nação, seus sentimentos eram de revolta, dor, absurdez, porque ser brasileiro é ser ninguém, é ser desamparado e grotesco diante de si mesmo e do mundo.” (HILST: 2002, 84) Desencanto retomado mais à frente, de modo irônico, por Crasso: “E me lembrei, felizmente, que estamos no Brasil. O país bandalho”. (HILST: 2002, 88)

O próximo conto de Hans Haeckel é terrível. Dois meninos resolvem matar uma velha que catava lixo e seu cachorro magricela. Matam-nos, arrancam os olhos dos dois e comem com uma crueldade obscena e infantil.

O próximo quadro é denominado “Conto de Crasso em depressão”, motivado provavelmente por um mecanismo de contaminação provocado pelos textos de Hans. O que nele chama mais a atenção é o ataque hilário e mortal desferido em um dos mais destacados poetas contemporâneos da literatura brasileira, João Cabral de Melo Neto.



Ele deslizava a lâmina da faca na água da bacia. Lembrou-se de um poeta que adora facas. Que cara chato, pô. Inventaram o cara. Nada de emoções, ele vive repetindo, sou um intelectual, só rigor, ele vive repetindo. Deve esporrar dentro de uma tábua de logaritmo. Ou dentro de um dodecaedro. Ou no quadrado da hipotenusa. Na elipse. Na tangente. Deve dormir num colchão de facas. Deve ter o pau quadrado. Êta cabra-macho rigoroso! Chato chato. (HILST: 2002, 91)


A narrativa ainda prossegue com poemas, diálogos com Clódia, fluxo de consciência, mais um conto de Hans Haeckel (tematizando morte e infância) e outro de Crasso (um diálogo entre o narrador-personagem e a mãe), um diálogo entre o narrador e o demônio, curiosamente representado por um senhor de meia-idade, lingüista, interessado em semântica, semiótica e epistemologia.

Quase ao final do livro, Crasso-Hans Haeckel-Hilda Hilst pode insistir na acusação- justificativa que atravessa toda a obra:



Pensar que tenho ainda que pensar uma nova estória para as devassas e solitárias noites do editor. De um hipotético editor. Enfim todos os editores a meu ver são pulhas. Eh, gente, miserável mesquinha e venal. (Vide o pobre do Hans Haeckel.) Morreu porque pensava. Editor só pensa com a cabeça d o pau, eh gente escrota! Quando o Hans Haeckel pensou em escrever uma estorinha meninil muito da ingenuazinha pornô para ganhar algum dinheiro porque ele passava fome àquela época, o editor falou: escabroso, Hans, nojentinho. Hans, isso com menininhas! Mas que monturo de nomes nomes estrangeiros ele publicava às pampas! Que grandes porcarias! Bem. Vamos lá. (HILST: 2002, 104-105)


Qualquer referência aos textos de Hilda Hilst não deixa escapar a questão da obscenidade na configuração da obra. No caso específico de Contos d’escárnio: textos grotescos, o caráter obsceno confere à narrativa uma força demolidora que desconstrói os paradigmas da literatura pornográfica graças a um processo de aguda ironia, à perspectiva crítica da enunciação e aos requintes de uma linguagem capaz de incorporar os mais diversos registros. Uma leitura fixada apenas no apelo ao escabroso e às solicitações de uma sexualidade mais vulgar, portanto, é uma recepção incompleta do universo hilstiano; nele a palavra obscena funciona como aquilo que está “fora de cena” (MORAES & LAPEIZ: 110), isto é, refere-se àquelas cenas que não são apresentadas no palco da sociabilidade cotidiana. É o espaço do proibido, do não-dizível, do censurado.

Se tal característica permite perceber a natureza dramática da escrita hilstiana, por outro lado vale a pena ressaltar que a obscenidade não é o centro, mas parte de um processo agenciado por uma pluralidade de temas: morte, deus, amor, velhice, questões metafísicas, problemas sociais tratados com sutileza e ironia etc.

O leitor desavisado sofre uma espécie de golpe violento ao ser iniciado em HH, torna-se para ele uma processo complexo identificar as diferentes seqüências narrativas, relacionando-as a personagens mutáveis em um universo ficcional que contrasta imagens, que aproxima o inesperado e que não se curva às relações causais próprias da referencialidade à qual faz alusão. O espaço da sujeira e do vocabulário chulo convive com a assepsia da erudição.

A pornografia não é imposta pelo consumo, ela resulta da repressão, da violência e da interdição. Por primária, instintiva e natural pulsão sexual, a linguagem do reprimido retorna como fetiche do proibido. Não é o mercado que cria a pornografia. A imaginação tenta traduzir uma linguagem cuja interdição é uma forma de invisibilidade, essa tradução ao revela a forma proibida (re)produz prazer. O prazer pornográfico esgota-se nos limites da sexualidade básica, animal, em sua fisicalidade. O prazer advindo da obscenidade envolve uma dimensão social, um deleitar-se comum que ultrapassa os limites da pura sexualidade, invadindo o estético, o político e o social.

A narrativa de Hilda Hilst, portanto, subverte o pornográfico, retira o rótulo de interdito, de escrita menor, ultrapassa os limites entre o erótico, o obsceno e o pornográfico, criando uma obra em uma fronteira que a crítica nunca conseguiu assentar com nitidez, apesar de todo o repertório conceitual. Talvez pelo extraordinário grau de indeterminação da natureza humana, por ser uma região profunda, insondável, apesar de a razão tentar mapeá-la. O atávico, o primordial, o caráter fundador na pulsão sexual, por não encontrar no vazio o eco onde o seu rosto reapareça, lança-se à busca. É esse o caminho cruzado por perversão e santidade, escrita suicida e escrita de desamparo, prece e blasfêmia, insulamento radical e radical desejo de encontro do Outro, Ele, no cerne da obra hilstiana.

A pornografia tem sido, ao longo do tempo, um reduto masculino. Uma linguagem normalmente produzida por homens, destinada à leitura de um público masculino. Nele a mulher é alvo, objeto de manipulação. Ousar invadir domínio tão machista, já provoca estranheza em relação à mulher, embora diversas mulheres tenham cometido tal ousadia. Maior é o espanto quando alguém invade a cena pornográfica para pervertê-la, e a perversão de Hilda Hilst é furtar à interdição a sacralidade de ser um ritual encenado em teatro subterrâneo e dar ao texto qualidade estética. A pornografia em Hilda Hilst é uma linguagem ascética encenada a céu aberto. Não esconde suas chagas e feridas, não domina seu alto grau de insanidade. É capaz de mostrar-se e evitar todo o grau de exibicionismo implícito em qualquer texto pornográfico.

Uma leitura de Contos d’escárnio sob os olhos da ecocrítica exige uma compreensão mais refinada da ecologia, capaz de ultrapassar as simples referências ambientais e apreender o significado mais profundo desse campo de conhecimento “que não é, primordialmente, um problema econômico e político, mas, sim, um problema de relação do homem consigo mesmo, com os outros e com as coisas”. (CASTRO: 1991, 13) Essa densa e extensa rede de relações que encobrem a existência humana é exposta por Hilda Hilst em estado agônico, em crise, numa exibição nua e crua da falência de um tempo e modo de organização da humanidade, espelhado no caos de gêneros com o qual o livro é arquitetado, na rarefação de personagens da narrativa, no colapso de hierarquias e identidades.



A etimologia da palavra ecologia lança luzes sobre à compreensão de seu significado e auxilia a perceber como Hilda Hilst contribuiu para revelar áreas menos visíveis da questão ecológica. Manuel Antônio de Castro relatou o processo de formação da palavra:

Ecologia se constitui de dois termos gregos. 1º. Oikos, que significa: habitação, família, raça: este, em grego, se forma do verbo oikizein, que significa: instalar,
construir, fundar. 2º. Logia, que se formou do verbo leguein: dizer, anunciar, ler, ordenar. A este verbo se prende também a palavra logos (daí logia), que significa: palavra, razão, discurso. Percorrendo e confrontando os diferentes significados possíveis dos dois termos gregos, notamos que em nenhum momento aparece a palavra natureza. Muito pelo contrário, se há um significado central no termo ecologia, este é HABITAÇÃO. (Castro: 1991, 14)


Na narrativa hilstiana podemos observar a presença em todas as narrativas, de uma forma ou de outra, da existência de seres desalojados e desamparados. As criaturas hilstianas movem-se nos escombros, nas ruínas ou no lixo de um lar, vivem, portanto, em um permanente estado de exílio. Compare-se, por exemplo, Hillé, de A obscena senhora D, domiciliada no vão de uma escala, ao Stamatius, de Cartas de um sedutor, escritor que vive remexendo o lixo, com o Karl, do mesmo livro, cuja paixão incestuosa pela irmã inviabiliza a habitação, o viver compartilhado sob o mesmo teto.

NOTA
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1 Designação tomada de empréstimo a Alcir Pécora que a expôs no prefácio de Contos d’escárnio. Textos grotescos (p. 6).


Referências

CASTRO, Manuel Antônio de. “Ecologia: a cultura como habitação”. In:
SOARES, Angélica. Ecologia e literatura. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1992.
GLOTFELTY, Cheryll. Introduction-literary studies in an age of environmental
crisis. In: GLOTFELTY, Cheryll & FROMM, Harold; eds. The ecocriticism
reader – landmarks in literary ecology. Athens / London. The Univ. of
Geórgia Press, 996.
HILST, Hilda. Contos d’escárnio. Textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002.
MORAES, Eliane Robert e LAPEIZ, Sandra Maria. O que é pornografia. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
PÉCORA, Alcir. Hilda Hilst: call for papers. Disponível em: http: //
www.germinaliteratura.com.br/enc_ago5.htm.
QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Mulheres, 2000.
RUECKERT, Willian. Literature and ecology: an experiment in Ecocriticism. In:
GLOTFELTY, Cherryl & FROMM, Harold; eds. The ecocriticism reader
– landmarks in literary ecology. Athens / London. The Univ. of Geórgia
Press, 1996. p. 105-23.


* Trabalho publicado em Garrafa, n° 16 - Jan/abr 2008 - Revista do Programa de Ciência de Literatura da UFRJ


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Galáxias; uma escrita babelbarroca *



                                        

 1. Introdução


João Alexandre Barbosa, ao discorrer sobre o poema moderno, observou que este apresenta dois níveis de leitura: “aquele que aponta para uma nomeação da realidade em seus limites de intangibilidade, operando por refrações múltiplas de significado, e aquele que, ultrapassando tais limites, refaz o périplo da própria nomeação, obrigando a linguagem a exibir as marcas de sua trajetória”. [1] Evidentemente, a segunda hipótese ajusta-se à estrutura de Galáxias, de Haroldo de Campos, objeto de nossa investigação, cuja construção/desconstrução revela o tempo como o único traçado visível, fio condutor da viagem cuja existência deve-se, no entanto, à fala que o diz. A linguagem molda um balé de saltos e rupturas, orquestrando as mil vozes do discurso numa polifonia de estilhaçamento de vida e linguagem, mergulho radicaos instaurado por uma poiésis lábil em incessante irrupção de significantes. A prosa haroldiana, pulverizada por múltipla explosão fonética, expurga-se das impurezas, expelindo os significados como matéria residual, desnecessária, portanto, a um dizer que é o que é, não aquilo que explica, prova, confirma ou traduz. Galáxias, então, comprova que o valor reside na viagem, na sua substancialidade, e não em qualidades que adjetivam sua natureza substantiva.

Um texto com a pretensão de abolir as fronteiras entre a poesia e a prosa trabalha na tensão estabelecida pelos limites e corre o risco de criar novos marcos. Daí optarmos pelo trabalho sobre o veio barroco, a pré-história poética do autor, o outro lado de quem arquitetou a experiência do concretismo, em cuja paideuma o barroco ocupou posição secundária.

Da experiência de vanguarda, Haroldo de Campos recolhe a maioria dos processos fundamentais à constituição de Galáxias: a) o emprego da palavra-montagem joyceana (de que já fizera uso em Ciropédia ou a educação do príncipe); b) a utilização de blocos sincopados de frases no marco da página; c) suturas semânticas; d) exfoliação de vocábulos; e) “conglutinação” fônica; f) uso intenso de técnicas reiterativas; g) a sintaxe de rupturas e dissonâncias. Tais procedimentos possibilitam o engendramento de uma obra capaz de incorporar desde a proposta de modernidade poética às anotações biográficas, construindo aquilo que Benedito Nunes denominou mundigrafia: “texto plural (mistura de matéria vivida à ‘matéria delida deslida treslida’), nascido duma espécie de action writing (continuum verbal que o silêncio descontinua, a realizar a ideia de poema-vida que tanto seduziu Mário Faustino, companheiro de geração de Haroldo de Campos), pertence à categoria das produções “escriptíveis” (scriptibles) de que nos fala Barthes de S/Z.” [2] A viagem é tomada como percurso da escrita, a ação que movimenta o mundo. As anotações pessoais misturam-se aos registros culturais, pois a biografia entrevista também é uma viagem ao redor do mundo e, simultaneamente, um mergulho na tradição, círculo onde o autor se move em múltiplas direções, tanto quanto a linguagem, transformando-se a obra num universo polilíngue – babel discursiva a provar, também na fala, o fragmento e a impossibilidade de êxito a textos que surjam do campo esfacelado do absoluto, do inteiriço, da certeza, da visão global e totalizadora. Mesmo os dados de uma possível biografia surgem parcelares, atomizados, num plano de ruptura histórico-sintática capaz de inviabilizar uma leitura cronológica. O tempo, em Galáxias sempre sob a hegemonia do presente, rompe o mero registro sequencial, linear, o encadeamento sereno e tranquilo dos fatos. A acumulação do tempo é rompida pelo privilégio concedido à brusca mudança dos planos e à valorização implícita das lacunas e silêncios temporais. Característica observada por Severo Sarduy: “Figura [a parábola] que abarca e define toda essa produção, em seu progresso rumo à concretude, como um ‘mundo total de objetiva atualidade’, apreendida num instante − como se capta um ideograma −, e não numa série de leituras analíticas, próprias do tempo discursivo e de sua equivalência na sintaxe tradicional”. [3]



Na teia do discurso, a tradição mantém um vivo diálogo com o narrador: Homero, Joyce, a Bíblia, Dante, Bashô, Hölderlin, Gauguin, Volpi, Sófocles, Schiller etc. Os referenciais artísticos, culturais, juntamente com as passagens em diversas línguas, dão à obra, por vezes, um sabor enciclopédico, assemelhando-a a uma excursão requintada à suma do saber, fixada numa antiprosa de formação na qual o autor retraça sobre escritas-fontes uma escritautologia impressa em palimpsestos. Não há como negar certo maneirismo poliglota e perigosa proximidade ao erudito, quase passagem à dicção de scholar, nessa exploração barroca da árdua construção, da gongórica opacidade de um texto saturado de si mesmo.

Como contraponto a esse exercício de sinalização cultural, surgem anotações pessoais, flashes, olhares acesos em relâmpagos sobre a pequena margem residual de uma possível trama, uma suspeita de ordenação de rumo, jamais permitida, contudo, graças à intervenção de uma visão parcelar, evitando a irrupção da história no centro do relato, relegando-a ao mínimo. Eludido qualquer eixo que confira à linguagem valor instrumental, expulso da narrativa o privilégio concedido ao significado, despida de veleidades documentais, Galáxias, avançando além do fictício, alcança o ficcional, produzido pelo peso atribuído a cada palavra e pela transformação das certezas do dito em não certezas do escrito, perspectivando qualquer tentação de Verdade. A escrita amazônica do livro não tem por objetivo o estabelecimento de um valor capaz de formular um sentido para um real extralinguístico, é, antes de tudo, o produto de uma racionalidade capaz de prescindir de qualquer outro valor para que possa ser entendida ou justificada.

Composto por cinquenta fragmentos, o livro não apresenta qualquer preocupação em delimitar uma ordem que estabeleça qualquer continuidade: os fragmentos não possuem título, não há qualquer divisão em partes ou capítulos, internamente, os textos não apontam para uma “direção” prevista de sua própria leitura. Escrito ao longo de treze anos, fica patente a homogeneidade de sua estrutura e a natureza aberta de sua concepção, cuidadosa em ocultar um caminho para sua decifração e obrigando o leitor a transformar a leitura na invenção daquilo que lê.

A proposta do presente trabalho não é analisar a obra in totum, porém deter-se sobre alguns fragmentos que possam contribuir, significativamente, para revelar com maior nitidez a extraordinária caligrafia dessa escrita babelbarroca (expressão tomada ao Fragmento 13, onde aparece aplicada à cidade de Paris). Evidentemente, relembrando a imagem da serpente mordendo a própria cauda, usada por Valèry e reaproveitada por Haroldo de Campos, uma escrita autocentrada, disposta a explorar ao máximo a mobilidade de seu corpo sonoro, a ponto de transformar a palavra em voluta distendida ao infinito, assume uma dimensão labiríntica, convertendo-se, mediante um incessante jogo de dobraedesdobra, num “dédalodiário” no qual a corporeidade do texto alimenta o desejo de si mesmo.

Tomamos, assim, para análise, três fragmentos: o 31 (“o que mais vejo aqui”); o 44 (“cadavrescrito”); e o 46 (“esta mulher-livro”). Tal escolha não significa, no entanto, melhor construção ou a primazia deles sobre os demais. São tomados não apenas por auxiliarem a fixação de alguns traços gerais da obra, mas principalmente por serem acentuadamente metapoéticos.


2. Do fragmento 31 (“o que mais vejo aqui”)


A escrita não ocupa um lugar no papel, desponta do próprio vazio, transforma o nada, o branco, o silêncio no seu topos, ponto seminal de onde se evadem em hieróglifos galáticos a constelar na página um escrever sobre escrever capaz de sobreviver ao veneno autocorrosivo do escorpião, tradução simbólica da mão dobrando e desdobrando signos na tela vazia do livro. Isso afasta uma possível distinção das palavras como externalidade trazida ao universo da ficção, ao visualizá-las como partes constitutivas do silêncio e dele geradas.

o que mais vejo aqui neste papel é o vazio se redobrando escorpião
de palavras que se reprega sobre si mesmo...


Porém esse vazamento não libera a sua secreção a partir de um jorro descontrolado, fluxo livre a inundar o espaço desabitado com um texto revolvido livremente de suas entranhas, à semelhança da escrita automática surrealista. É resultante da ação de escrever enquanto inscrição feita por ferrão, ou seja, traçado venenoso impresso num gesto de violência, de trabalho de ourivesaria semântico-sonoro responsável por sua limpidez, desanuviando-a de efeitos anestésico sob o qual o comércio verbal termina por embalsamar os vocábulos, transformando a língua num gigantesco depósito de sentidos. Somente uma “unha aguda”, “seu pontaço”, para “ferrar”, ferir, o silêncio e escancariá-lo, ampliar ao máximo a ferida, a cicatriz textual que é a palavra na pele de papel, os arabescos retalhando a carne do nada.

Labiríntico esse dizer-se o tempo inteiro um escrever reescrever escrever. A estrutura de Galáxias assume as dimensões de uma linguagem em espiral, constituindo-se cada fragmento numa volta ascendente, cujo começo na realidade não é nunca o princípio, mas um recomeço, por deixar implícita a ideia de um continuum verbal, da sua permanente “suspensão”, de um texto movendo-se num território aquém de si mesmo, e cujo final, analogamente, é uma parada, um corte, não um fim dador da ideia de completude, uma vez que mergulha num além-texto. Tal conceito não é modificado pelo fato de o primeiro e o último fragmentos funcionarem como entrada e saída, inclusive sendo visualmente marcados por grifo. A fuga à fixidez, à compreensão do real como uno e estático, ao aprisionamento do existir a moldes que representam a aderência do ser a um absoluto, traduz-se mediante as letras de um discurso veloz e fugaz, mobilizadas na articulação de um jogo onde circulam múltiplos acontecimentos, vislumbres de seres impressos como nesgas de personagens, esboços de lugares/paisagens, bordando um rendilhado onde a língua se tece, ata e desata, qual indústria de aranha urdindo no canto da página uma teia de avesso:

onde o eu se
mesma e mesmirando ensimesma emmimmesmando


A contaminação de uma palavra por outra funciona como produtora de uma reação em cadeia fonético-semântica a operar uma irradiação constante de significantes cujas relações entre si constroem a totalidade do relato, tornando-se cada termo uma espécie de palavra-móbile, circulando e repercutindo entre outras.

“...cravo no vazio os grifos desse texto em garfos
as garras e da fábula só fica o finar da fábula
...”

Emerge do fragmento a concepção da escrita enquanto inscrição. Unhagarfogarrapontaçoaguilhão (através do qual o escorpião fere) surgem como instrumentos que riscam o papel, abrindo no liso de sua textura a mínima cavidade onde flui o negro veneno dos signos. Ideia reforçada pelo emprego dos verbos ferrar
cravar e transvasar, todos nomeando o ato de insculpirincrustarcavar veios numa superfície plana de sentidos, escalpelando-a, roendo a polpa das palavras. Num livro que é o exercício de ensaiar-se, a mutabilidade experimental de si próprio, verdadeira “anarcopédia de formas volúveis”, como ser lido no fragmento 45, brota da


“...mais mínima margem
da mais nuga nica margem de nadanunca orilha ourela orla da palavra


Inscrição iniciática, exige o difícil, o imprevisto, a opacidade semântica, o acesso a um plano linguístico mais denso e elaborado, já que o “nigrolivro um pesteseller um horrídeodigesto de leitura apfelstúrdia” destina-se a “vagamundos e gatopingados e sesquipedantes e sestralunáticos”, expressivas afirmações do fragmento 45, corroborando as linhas do fragmento em análise que expõem com clareza a escolha do autor:

e se você quer o fácil eu requeiro o difícil...”

Logo identificado com o risco de pensar o silêncio de onde a fábula se desprega, cisco solto no vácuo, no espaço sem palavras do livro, dessa viagem que se faz ranhura entre nada e nada. Dificuldade que induz à indagação sobre o sentido do claro-escuro, dos turnos de negro e branco, esse diurnoturno que caracteriza a tensão das dactiloletras num dualismo barroco, pleno de “cala” e “fala”, mas onde o texto é a falha que, logrando avesso e anverso, indo contra o silêncio, o sujeito e o nada, insiste, resiste e existe como texto.

Escorpião que se reproduz ao contrair seu próprio veneno, o texto de Galáxias faz de cada fragmento uma composição onde “a linha é revogada para que a frase se constele” (4) e a anulação das fronteiras torna “a página uma pulsação, não um registro, da múltipla vida; microcosmo do próprio livro”. (5) Pulsação que neste fragmento é transmitida por um ritmo oriundo da junção de palavras e processos aliterativos a partir de um leitmotiv que vertebra seu corpo – a expressão “o que mais vejo aqui”. Ela estabelece, também, o primado da visão, do mover-se da córnea sobre um campo branco, centrando no claro-escuro desse olhar a relação entre a página inerme e o verme da fábula, reduzida a um balbuciar, a nomeação de toda uma galáxia de categorias de avesso: nadanuncabrancovaziosilênciocaladocalestagnadonão tocadodactilonegamnegramsonegamavessocárie etc. Ainda que em preto-e-branco, a hegemonia da visão situa-se no mesmo plano dos outros fragmentos, onde a percepção pictórica intensifica ao máximo os pormenores e dá, ao conjunto, grande densidade plástica.

Voltando à pulsação e ao ritmo dessa prosa inovadora, é a palavra o instrumento trabalhado para a sua obtenção, embora haja passagens como:

e se você quer o fácil eu requeiro o difícil e se o fácil te é grácil
o difícil é arisco e se você quer o visto eu prefiro o imprevisto e
onde o fácil é teu álibi o difícil é meu risco
...”

verdadeiras sequências de  jogo antitético instaurando um bloco frásico à maneira de uma ilha no mar de linhas onde as palavras buscam autonomia (compare-se com a passagem do fragmento 3: “se eu lhe disser que o mar começa você dirá que ele cessa seu / lhe disser que ele avança você dirá que ele cansa se eu lhe disser / que ele fala você dirá que ele cala...”). Procedimento de natureza barroca.

Quanto à explicitação da autonomia vocabular recorremos a Severo Sarduy:

a palavra, a matéria mesma do verso teria que abandonar (...) seu lastro conteudista, seu nexo ou ligadura estreita e como que inevitável com o referente, seu binarismo platônico aferrado à ideia; romper, ou fazer vacilar em direção ao fônico – e logo em direção ao gráfico – o equilíbrio estável do signo, abandonar, obliterar, ou pelo menos deslocar, transformar, ‘sacudir’ a base do significado, o persistente ‘sentido’ sem o qual parece como que se abalar todo o sistema da significação.” (6)



3 – Fragmento 44 (cadavrescrito)

Inesgotável fluxo narrativo, diuturna produção de signos, o trabalho de criação pode ser comparado às histórias das Mil e uma noites, a uma Scherazíada moderna, desfiando ad infinitum o novelo da própria voz num território habitado por ninguém, graças à conversão da página numa “nihilíada” prenhe de “nenhúrias”, vítima da incursão e investida selvagem dos sons no menos da história – “poalha de fábula”. Subtração da escória que faz do branco da página espelho do mundo, superfície refletora de outro real, literatura especular, amarrada a uma mimese de reconstituição, o texto é proposto, segundo Andrés Sánchez Robayna: “como imantação ou aderência infinita de objetos e motivos, como absorção de paisagens e figuras, ‘condena a prosa a descarregar-se de todo objeto exterior a ela mesma.” (7)

Afirmação a que se pode acrescentar a emitida por Benedito Nunes a respeito de Xadrez de estrelas, qualificando-o como portador de um: “realismo absoluto (o poema existindo espacialmente como objeto, em sua materialidade de signo, e equivalendo ao processo de sua estruturação)”. (8)

Só que esse realismo já não é tão absoluto assim em Galáxias, bem como o anti-historicismo também é filtrado por intermédio não só do plano formal, cuja inovação é ela própria uma estrutura histórica, como também pelos diversos registros biográficos que espalham em seus rastros uma possibilidade de montagem/desmontagem/remontagem temporal.

Cadavrescrito, o vocábulo detonador do fragmento, é uma palavra-fusão assinaladora dos limites da mobilidade irruptiva do novo, a categoria fundamental dessa dicção: a fixação inerente da escrita que se escreve matando-se, escorpião aprisionando palavras num papel ao preenchê-lo, cristalizando e imobilizando o relâmpago de seu veneno, diluído numa linguamarga/morta/torta, inutensílio que labora a magia de sua química, mistura capaz de corroer o tempo – “noutubro/nãovembro/deslembro”.

Nesse babelório impresso, incrustado num veio de silêncio, o recurso a um instrumental específico, apropriado à abordagem interpretativa das milumapáginas desmorona face ao deslizamento contínuo do sentido, nunca tributário das costas dos significantes. Daí ser inútil o apelo a:

“...mitemas fabulemas ou novelemas ou se
perder no encalço da melhor tradução para récit ou do distingo entre
novel e novela nem é útil saber se fábula ou conto-de-fadas é o
termo que equivale ao russo skaz
...”

ofício de bichos-da-seda, a produção do umbilifio que escorre da obsessão ampliada até à morte, retomando no meio do fragmento a ideia inicial (é na cova que se aloja o cadavrescrito), guarda, porém, a imagem da morte como um corpo que se encaixa, incrusta, inscreve, numa superfície que se despoja (de terra, a cova; do branco, a página). Não é outra a razão da passagem abaixo:

“...uma delenda esquiva escava e só
encontrarás a mão que escreve que escava a simplitude do simples


Ela revolve as entranha galáticas, segredando-se um escrita intestina, autófaga, reinscrevendo-se como sucessão de cortes na sua própria pele.

A presença da rosa comparada à prosa, coloca esta como uma construção cuja materialidade não é parte necessária do domínio do sujeito, revolvendo as pacíficas colocações de “autor”, “narrador”, instâncias embutidas na linguagem, atuantes, contudo, num espaço acima, ordenador, dominante, mas deslocadas agora, pois: “em Galáxias não é o relato que importa; não o que diz com a ajuda da linguagem, mas o que nela se diz.” (9)

Alcançando a sua legibilidade pela repetição entendida como uma eficaz forma de afirmação, daí o eco de Gertrud Stein nessa passagem, e o fio da linguagem concebido como menosmargemmínimomigalha. Justamente sobre o conceito de menos o fragmento estrutura o espaço concedido à fábula, o resto, a sobra do silêncio, garrafa ao mar, navegando à mercê de vento e maré, inclui-se o lance de dados, ação do acaso escavando uma leitura indiferente ao sujeito. As palavras lançam-se a esmo, às tontas, às cegas, mesmirando-se, cosmonaves em constelações nucleadas sobre si mesmas, interminável jogo apofônico dirigindo seus raios sonoros sobre os termos vizinhos, todos, mallarmaicamente, aparentados entre si, jogando o jogo do seu sonho:

“...se no dois não acerto jogo no três
e ainda tenho uma vez
...”

Desse modo a estética de fraturas de Galáxias revela-se dimensão lúdica, grafada nas cores de um experimentalismo que evita o velho, nega-o, renega-o, sempre à procura não de um sentido redutor do mundo, mas do devir da linguagem, babélico, múltiplo, bordelizando o papel. Daí o fragmento terminar descrevendo-se: “...meu canto não conta um conto só canta como cantar”.

A condensação de palavras atinge o clímax no “cantomenos” contido neste fragmento. Concreção irruptiva do tensionamento do vazio, Galáxias busca a infinitude do universo na infinitude da linguagem, justificando o título como homologia do texto, espaço onde se dialetiza o micro e o macro, na pulsação inquieta e ziguezagueante de suas páginas.



4 – Fragmento 46 (esta mulher-livro) 

Tematizando o próprio processo de sua produção, Galáxias expõe tal preocupação como o momento introdutório a diversos fragmentos, alem deste: ao oitavo (isto não é um livro), ao décimo-nono (como quem escreve), ao vigésimo-nono (o poeta sem lira), ao trigésimo (pulverulenda), ao trigésimo-primeiro (eu sei que este papel), ao trigésimo-quinto (principiava a encadear-se um epos). A maioria dessas entradas narrativas está intimamente relacionada a uma concepção negadora do velho, do já estabelecido, do convencional, e opera a corrosão das estruturas que desenham e formam o corpo da prova, ou provoca a erosão das convenções que alimentam a arquitetura poética de determinada obra. Voltada para a abolição das fronteiras entre gêneros, Galáxias tende a construir os esboços de uma antiprosa, supressora dos filtros por onde o mundo dos eventos se irradia e assume a hegemonia do texto, capaz de evitar a contaminação pelo conceito especular da escrita. A racionalidade, com isso, equivale ao processo de produção da linguagem, portanto não é concebida como uma voz que vem de fora, como algo distinto e que não se funde ao dizer que a diz.

Aqui o pocesso formal (nem verso nem linha) serve à contextualização de uma prática que constrói seu objeto barrocamente, girando incessantemente nas voltas e revoltas que dá em órbita de seu próprio centro. Na velocidade desse registro o sentido se esboroa, desconstrói-se, ininterruptamente, inscrustando o texto de múltiplas projeções, sombras, esboços, imagens fugazes de um esquivo significado. Essa profusão de dados, cores, imagens, figuras, a fluir de cada linha, descoordena o todo, o inteiro, mediante a babel de vozes buscando seu leito, o babelório enquanto mescla, a múltiplia tentativa de apreensão do vazio onde começa e cessa a fala.

Neste fragmento a criação textual exibe a sua faceta prazerosa, dionisíaca:

esta mulher-livro este quimono-borboleta que envelopa de vermelho um
gesto de escritura
...”

De um lado, colocados num mesmo plano, o corpo humano e o papel; do outro, as vestes que o envelopam, quimono ou a leveza e o eterno movimento de borboleta, voo da linguagem que se desnuda, envoltório pictórico e aéreo sobre a pele branca da página, a dourar o papel do japão:

“...fólio-casulo deixa ver o corpo
escrito de vermelho e filetes de ouro esta mulher pousada em seu poema


Todo o fragmento joga com a metáfora do papel visto como a pele onde se acaricia ou arranha a linguagem e a do livro comparado a um corpo de mulher. Daí advêm o sensualismo e a sensorialidade, o desfazer-se da mulher no poema, enquanto fusão do ser ao objeto nas dobras violentamente velozes do tempo do gozo, e a tacteabilidade como gesto gerador do discurso, onde as palavras são manuseadas, pesadas, pensadas, tateadas, ao mesmo tempo em que exalam cores e perfumes em profusão (no que tange à notação pictórica, vale registrar que o terceiro fragmento traduz todo o processo de mutação contido no mar através de uma estonteante sucessão de cores, usando em maior intensidade o recurso de explorar o uso da cor na constituição das formas adotado em praticamente todos os outros fragmentos). Leveza e graça são introduzidas pela associação a todo um clima oriental: quimono, papel-japão, seda, nanquim, ventarola, linha d’água, amarelo-mandarim etc.

Erótico jogo de palavras, adoçando em mel, borboleta, seda e ventarola o ritmo dos seus movimentos, a obra assume as formas da sedução, do relacionamento assinalado pelo fascínio existente entre a cunha, o alfinete-estilete e a tábua argilosa do corpo, o papel-japão. O aparecimento do livro-mulher é viabilizado pelo lascivo tateio do risco cuneiforme num ventre velino – pergaminho e epiderme de papel. Além das percepções táteis e visuais, também as auditivas e as gustativas espalham-se ao longo do fragmento:

“...uma borboleta sugando mel por trombas minúsculas...”
ouço as yonis sussurrando como ocarinas e manando seiva amorosa
“...a saliva vista através das paredes da garganta...”
“...abelhas minam o mel do sentido...”

Reproduz ao longo de sua extensão termos como: ogivasninfacoxiabertasventresexo-chagalábios de feridacrini-púbisseiva amorosaincesto, e outros que dão ao conjunto da composição uma conotação claramente situada no campo da elaboração textual vista como forma de realização amorosa.

Branco sobre branco, a escrita exercida sobre palimpsestos, além de dizer e redizer, transformando o risco em rabisco, rasura que cria, descria e recria seus signos, volta-se eroticamente sobre si mesma, incesto absoluto e radical do ser que extrai seiva e prazer de suas próprias entranhas. Espaço gerador dos signos, alvéolos destinados a errantes e famintas abelhas, cuja ação canela e arruína esses alvéolos-signos em diuturna floração.

Esse procedimento antecipa passagens posteriores da obra de Haroldo de Campos, como essa estampada em A educação dos cinco sentidos:

o táctil o dançável
o difícil
de se ler / legível
visibilia / invisibilia
o ouvível / o inaudito
a mão
o olho
a escuta
o pó
o nervo
o tendão
 (10)

Veja-se a passagem do fragmento onde a linguagem é traduzida como ramagem onde enfolham nervuras, ou o roçagar de “páginas pés-plumas”, dualismo entre significante e imaginário na raiz de sua constituição. Todos os elementos, no entanto, estão voltados para apontar quem: “...fechada é um livro e aberta mulher...”

Antitética construção entre o fechado e o aberto, da qual surge a linguagem, a matriz e a criação dos significantes. Luxúria da palavra sobre o caos dos instantes, tece seu corpo alveolar com o mel do próprio ventre, moldando sua forma fugidia e hipnótica, egressa do casulo de sonhos onde se guarda, a dissolver-se no momento de sua gênese, semelhante ao gozo que vibra e morre na mesma fração do tempo.


5 – Conclusão


A ourivesaria haroldiana guarda ressonâncias mallarmaicas, principalmente na obediência ao verso:

Donner un sens plus pur aux mots de la tribu (11)

e ao centramento na polpa da linguagem, no desventramento radical de sua textura como desvelamento da arte. Não deixa de figurar, no palimpsesto do texto, o reaproveitamento da idéia expressa por Mallarmé no prefácio ao Un coup de dés:

La fiction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de
l’écrit, autour des arrêts fragmentaires d’une phrase capitale dès le
titres introduite et continuée. (12)

Tal inscrição está submersa em Galáxias como rasura presente no apagar e introduzir de novos traços, portanto alimenta a construção da obra, na qual outras vias e desvios dão à dissipação e à mobilidade outras referências fundamentais. Ressonância notável na arquitetura galática é Pound: não o dos manuais voltados para a caracterização de questões levantadas pela poesia; mas o Pound que está de corpo inteiro nos Cantares, gigantesco e enciclopédico projeto-programa-levantamento poético abrangendo técnicas, procedimentos, eras e dados, mobilizados na articulação específica da síntese poundiana da Poesia (extração sobre os veios que se estendem da aurora grega às margens da modernidade, com inclusão, nesse percurso, de fecundas expedições a universos ideogramáticos, fundamentais à sua legibilidade), cuja erudição lança seus reflexos em Galáxias. Outra referência fundamental, cuja importância parece mais relevante, é aquela que introduz a aproximação com o barroco, na esteira da dicção própria a Gôngora. A presença intensa do pictórico, dissolvendo a linha, tornando todas as coisas confusas, misturadas, conduz ao descentramento, a um babélico dizer o mundo. Esse desprezo pelos contornos definidos, pelas linhas, pela apreensão do real como claridade e nitidez, trabalha no sentido de verticalizar o olhar contra a luminosa ótica de superfície, mobilidade horizontal da visão. A quebra dos contornos é o esfacelamento da unidade, a irrupção da multiplicidade; em Haroldo de Campos, não tensionada ao modo barroco, mas trabalhada como encarnação linguística do caos, do caráter efêmero, fugaz, da linguagem enquanto homem, ou do homem enquanto linguagem, alçados, em Galáxias, ao mesmo plano de instabilidade, ao mesmo plano de existência e legibilidade, abertos inteiramente a metamorfose, figura predominante, principalmente sob a forma particular da anamorfose, traço que torce e distorce, nos marcos ou arcos do discurso, curvas, volutas, dobras, rugas, sinuosidades que lançam o pólen da linguagem sempre adiante, lálonge, láemfrente, prospectivamente voltado para um ponto além de si mesmo, dotado da tensão que funda e instaura essa antiprosa – a tensão entre o silêncio e a sua fala.

A modernidade (ou pós-modernidade) e a tradição gongórica mantêm um diálogo na obra haroldiana, da qual se pode dizer:
Fábrica escrupulosa, y aunque incierta,
siempre murada, pero simpre abierta. (13)

Ainda é a Gôngora que se recorre para explicitar a tradição de uma poesia “difícil”, hermética, iniciática, leitura para poucos iluminados:
- aun a pesar de las tinieblas bella,
aun a pesar de las estrellas clara. (14)

Trevas e estrelas são termos que reconstroem o ambiente noturno, o espaço onde os seres e as coisas exigem um esforço do olhar à sua apreensão. Os versos gongóricos trabalham sobre o contraste, a intensidade da luz nas trevas, a irrupção da beleza entendida como um brilho que melhor se observa com a ajuda da ausência de claridade. Galáxias traz já no início a associação entre a escrita como um fio de luz que exerce seu fascínio no escuro, estabelecendo identidade entre noite e página. Essa face noturna desborda para o seu deciframento como extensão de sua natureza, isto é, transforma a sua leitura num trabalho de arte, de escrita ou reescrita, também, destarte, não se destina a leitores ingênuos, não iniciados nos mistérios da linguagem. Aqui, Haroldo de Campos, Gôngora e Mallarmé conseguem aliar-se na formulação de uma estética que encena um ritual, solenizando as palavras em sua sonoridade, transformando-as em:
pasos de um peregrino son, errante” (15)

Só que não há mais o périplo que o poeta retraça mediante a linguagem. Agora, a linguagem é o peregrino e a peregrinação.


Notas


[1] Barbosa, João Alexandre. Um cosmonauta do Significante: Navegar é preciso. In: Signantia quase coelum, p. 11

[2] Nunes, Benedito. Xadrez de Estrelas – Percurso Textual, 1949-1974. In: Signantia quasis coelum, pp. 144-145.
[3] Sarduy, Severo. Rumo à Concretude. In: Signantia quase coelum, p. 123.
[4] Lima, Luiz Costa. Aguarrás do tempo, p. 354.
[5] Ibidem, p. 354.
[6] Sarduy., op. cit., p. 119.
[7] Robayna, Andrés Sánchez. A Micrologia da Elusão. In: Signantia quase coelum, p. 138.
[8] Nunes, B., op. cit., p. 144.
[9] Lima, L. C., op. cit., p. 337.
[10] Campos, Haroldo de. A educação dos cinco sentidos, pp. 13-14.
[11] Mallarmé, p. 66.
[12] Ibidem, separata, p. 7.
[13] Gôngora, Luís de. Antología, p. 23.
[14} Ibidem, p. 27.
[15] Ibidem, p. 23.


Refereências


CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Ex Libris, 1979.

_____. Xadrez de estrelas. São Paulo: Perspectiva, 1976.
_____. Signantia quasi coelum (Signância quase céu). São Paulo: Perscpetiva, 1979.
_____. A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
GÕNGORA, Luís de. Antología. 6ª. edición. Madrid: Espasa-Calpe, 1960.
LIMA, Luiz Costa. Aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
MALLARMÉ. São Paulo: Perspectiva, 1974.


* Trabalho publicado originalmente na Revista Zunái (www.revistazunai.com), maio/2008.





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HILST - vivez nos vãos *




     O livro A obscena senhora D, de Hilda Hilst, foi publicado em 1982. O registro temporal serve apenas para situá-lo como um texto revelador de toda a riqueza do mundo hilstiano, revelado ao público em 1950, com o lançamento de Presságio, um livro de poesia, e enriquecido com dezenas de publicações de textos dramáticos, ficcionais ou poéticos.

     A escolha dessa narrativa como objeto de reflexão deve-se, independentemente de sua qualidade intrínseca, à posição central no conjunto da obra, ao seu poder de síntese da escrita hilstiana, em que pese a ausência de manifesta intenção da autora em operar de modo racional esse percurso e as lacunas produzidas pela não abordagem de um ou outro ângulo essencial à apreensão do complexo universo da autora. O fato essencial é que o relato apresenta temas recorrentes: a experiência amorosa na variabilidade entre o terno e o pornográfico; a inquietação metafísica e a dúvida teológica traduzidas ora em linguagem de alto grau de apuro formal, ora em irritadas expressões de furor e revolta; a constante ironia incisiva pulverizando a normalidade, os gestos cotidianos construídos com hipocrisia e incompreensão; o humor negro, vingança sobre a própria condição humana e seus limites estreitos; e o domínio da linguagem, a montagem de um texto capaz de abolir hierarquias tipológicas ao incorporar ao fluxo narrativo um ácido, cortante e pungente lirismo e um drama que se encena no palco da consciência.
   
     Hillé, a narradora-protagonista, desponta logo no início da narrativa como personagem marcada pelo deslocamento: "Vi-me afastada do centro” (HILST 2001: 17). Sua excentricidade corresponde ao deslocamento de seus passos, expulsos do caminho da normalidade resignada do mundo e desviados para um percurso que conduz à 'cegueira silenciosa', sinestesia explicitadora da inconclusividade da busca existencial.

     A escrita é busca e perda. A consciência de apenas ser na linguagem, formulação heideggeriana, é insuficiente para alcançar a, chegar a, uma vez que não há nada no horizonte − ele está contido no olhar e por isso é projeção especular da finitude humana. Não representa um desenho fixo, não possui centro. À deriva, o ser faz do caminho balbucio, tateio, tropeço. Os limites, se por um lado representam impossibilidade, oclusão, por outro lado, contêm a promessa de ruptura e de ampliação porque a expansão está presente, ainda que sob a forma de ilusão, no horizonte humano. O devir, destarte, é uma tensão dialética entre finito e infinito. Essa tensão pulsa no romance de Hilda Hilst com uma certa conformação barroca − a linguagem mais grotesca, baixa, vulgar convive de modo antitético com sofisticada pesquisa ontológica e indagação teológica. A não obtenção de respostas não é o fato mais significativo − o mover-se é impulsionado pela recusa ao não e à ausência. Hillé, mulher de sessenta anos, carrega um pesado histórico de buscas, sem alívio, sem a ilusão de respostas

     É no interior de uma falta transformada em Falta que o termo Derrelição − desamparo, abandono − pode ser compreendido. Ele remete ao nascimento para assinalar que não nascemos, ou seja, que nunca estamos preparados para o mundo, sozinhos não vingamos e, apesar de tangências afetivas − apesar de Ehud −, ancorados em nossa radical incompletude, estamos sempre em pânico e à procura de abrigo. Só os acontecimentos interpretáveis podem afastar esse estado angustiante, por isso viver é a tentativa de leitura de mundo (isto é, a tentativa de dar significação aos acontecimentos, não importando se eles a possuam ou não). Por essa razão, a linguagem investigativa de Hillé dissemina-se de modo tautológico nas páginas do romance.

desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no fundo das calças nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e morte, esses porquês (HILST 2001: 17-18)


     A angústia provocada pelo desamparo não se confunde com a ansiedade, pertencente aos fenômenos do temor, pois não é provocada por um ente determinado: este ou aquele. Na filosofia de Heidegger:

Sem dúvida, a angústia é sempre angústia diante de..., mas não angústia diante disto ou daquilo. A angústia diante... é sempre angústia por..., mas não por isto ou aquilo. O caráter de indeterminação daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo, não é apenas uma simples falta de determinação, mas a essencial impossibilidade de determinação
[...]
A angústia manifesta o nada.
"Estamos suspensos" na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios − homens que somos − nos fugirmo-nos no seio dos entes. É por isto que, em última análise, não sou "eu" ou não és “tu” que te sentes estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento
deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se.
A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua totalidade fugir, e assim, justamente, nos acossa o nada, em sua presença, emudece qualquer dicção do "é". (HEIDEGGER 1969: 31-32)


     A inquietação metafísica não é apresentada em nichos discursivos demarcados, capazes de assinalar uma posição superior; pode irromper a qualquer momento, durante a realização dos atos mais prosaicos ou mesmo em ocasiões inusitadas, como em plena atividade sexual. Essa natureza confere à reflexão um caráter obsessivo, compulsivo, redimensionando todas as outras práticas em função da hegemonia concedida à indagação ontológica, cujas questões − irresolvidas porque irresolvíveis − alteram toda a prática social, as relações familiares, as relações de amizade e as de vizinhança que, deslocadas, fazem emergir a diferença, a singularidade como estranheza, doença, anormalidade.

     Por outro lado, como reação a não obtenção de respostas o sujeito descentrado da narrativa engendra uma estratégia da espera: "Não, não compreendia nem compreendo [a ausência de resposta], no sopro de alguém, num hálito, num olho mais convulsivo, num grito, num passo dado em falso, no cheiro quem sabe de coisas secas, de estrume, um dia um dia um dia" (HILST 2001: 19).

     Deus − a resposta que unificaria todas as outras − pode surgir também em qualquer ponto da narrativa. Surge do e no corpo da protagonista. O Todo, o Incomensurável, o Mais, materializado em alimento − símbolo de uma apropriação espiritual − é inserido em meio à fala de Ehud que denota o ato sexual. Hillé toda molhada de excitação orgíaca é a mesma a engolir fundo, salivosa, a hóstia purificadora, lambendo-o como se fosse um pênis. O sexo e o sagrado cruzam as linhas do destino, sem que haja diferença axiológica.

   A estranheza de Hillé estigmatiza a sua casa, o refúgio uterino de sua trajetória regressiva − Casa da Porca, na referência depreciativa dos vizinhos. O relacionamento com o mundo, expresso no estigma lingüístico, é de confronto, rejeição e distância. Os gestos obscenos, as caretas, os urros, os palavrões, as máscaras e as janelas fechadas evitam a impureza de contato, mantêm o vazio necessário a investigação do ser, todavia são signos que legitimam a exclusão operada pela razão legisladora ao reforçarem o estigma.

     Há um exílio deliberado: "Não pactuo com as gentes, com o mundo, não há um sol de ouro no lá fora” (HILST 2001: 25). Morar no exílio é habitar o abismo do ser. As máscaras não ocultam, antes são revelações da identidade, melhor, formas de busca, retratos de um desvelamento existencial de um 'alguém-mulher', memória de um aprendizado de sombra e crueldade do real enquanto perda e esvaimento perenes. Incomodam pelo que revelam, por exibirem a leitura secreta dos papéis sociais: por essas letras percebe-se a ilogicidade da gramática social e a hipocrisia das convenções, a cisão entre o ser-aí e a teia da vida social. É o mundo, do outro lado da máscara, que esconde sua certeza e sua civilização e exprime a forma clandestina do seu rosto: o medo, o receio, o pavor ao que não pode ser controlado. E não há nenhuma certeza, nenhuma forma de controle sobre a existência. Como mecanismo de defesa, a vizinhança, alteridade sem troca, sem diálogo, transforma-se em vigilância e estatui um código de conduta para situações em que se veja ameaçada: em seus implícitos e explícitos, o estigma, a censura, a condenação, o preconceito, a exclusão, a zombaria e outros processos similares: em seus pressupostos, a anulação de toda diferença.

    A rejeição ao mundo, a desconstrução do nascimento, investe Hillé de propriedades regressivas. Assim, a casa é mãe; o vão da escada, a placenta; o pai, o prazer inaugural reprimido; Ehud, um novo pai-amante; as provocações à vizinhança, novos e cruéis jogos infantis; as máscaras, caretas e urros, formas primitivas de linguagem; a animalização, símbolos da quebra de vínculos humanos.

     A metamorfose animal é um tema recorrente em toda obra de Hilda Hilst, expressa uma volta a um estado de inocência, como bem observou Cláudio Carvalho:

O desejo de er "porca", "zebu", "girafa" é uma tentativa de escapar do simbólico e da internalização dos códigos culturais. Só assim − despida de de palavras, munida apenas de urros − ela, talvez, pudesse ser ‘teófaga ncestuosa' sem sentir culpa. É para um real impossível − como diz Lacan –, para um útero cósmico só acessível aos animais que a Senhora D deseja retornar. Um mundo imaginário e pré-simbólico. Como podemos perceber, a Senhora D nunca abandonou, de fato, suas mais remotas fantasias infantis. (CARVALHO 1999: 120-121)


     Ser búfalo, zebu, girafa desde sempre implica um tempo anterior à humanidade, um mergulho no escuro, pasto de Hillé-búfalo, lugar que não desperta temor, pois sem consciência de ser não há sofrimento, dor, angústia, nem saber sobre morte e infinito.

    É ainda no plano da animalidade que Hillé e Deus podem tornar-se amantes: a protagonista, transformada em porca, compartilha a mesma natureza de um deus sob a forma de Porco-Menino Construtor do Mundo. Um deus-porco permite florescer a natureza da teófaga insaciável. Os gestos de ambos mancham a existência de dúvida e inquietação.

     A remissão à pré-humanidade, a relação incestuosa com deus-pai-eterno não esgotam o caráter regressivo da animalização. Há uma terceiro aspecto essencial para decifrar o enigma hilstiano, a percepção no olhar da protagonista de uma propriedade pertencente ao "olho adiáfano, impermissível, opaco" (HILST 2001: 27) dos bichos: "o olho dos bichos é uma pergunta morta” (HILST 2001: 30).

    A privação de luz, a opacidade do olhar, a ausência de brilho correspondem à inexistência de explicações, justificativas, razões. Devastado o território de legibilidade do mundo, a senhora D vira presa fácil.

é em A obscena senhora D, talvez, que o universo agônico da escritura hilstiana tenha chegado ao seu ápice. Um dos efeitos de sua dramaticidade advém da força plástica das imagens, no movimento de acuo de fera em que se debate a personagem, em sua violência impotente, a imprimir uma dupla dinâmica a senhora D (de Derrelição): por um lado, ela externaliza as dilacerações de seu ser, embora não se mova para fora de si; por outro lado, seus diálogos-monólogos funcionam como bumerangues, que batem em Ehud e voltam, sem no caminho encontrar respostas apaziguadoras. Nessa espiral, o leitor não tem como escapar ileso: vê-se tão encarcerado quanto a senhora D. Pode-se considerar, numa perspectiva crítica feminista, que a personagem mulher, por suas históricas e sociais experiências de aprisionamento, catalise com maior efeito dramático tais situações (...) o que (i)mobiliza Derrelição é algo de outra ordem, embora seu nome, desmembrado em tantos outros, seja também Deus, mas um Deus que figura ora como caçador, ora como caça. O vocábulo ‘presa’, em sua tripla articulação de substantivo, verbo e adjetivo, configura de modo eficaz o campo semântico e o perfil da personagem: presa em delírios, entre os vãos da escada, à caçoada dos passantes, que buscam sem sucesso aproximar-se e alimentá-la, D, a louca, ata e desata os limites de sua lucidez.(QUEIROZ 2000: 21-22)


     O sonho nirvânico de retorno a um estado primitivo é perturbado, no entanto, pelo lá fora. As vozes externas localizam-se a partir de Hillé, brotam de sua memória e de suas reflexões. A multiplicidade de focos inviabiliza a unificação imperial do sujeito que relata uma verdade. O sujeito descentrado sustenta-se na narrativa polifônica, fica implícito no significado das vozes por onde ecoa a sombra de sua identidade. O sujeito é o eco da pergunta lançada ao cosmos, o eco reprodutor do desabar de certezas e conhecimento.
  
     O mundo social, transformado em forma discursiva, exibe referências que extrapolam o texto, ao apontar para uma perspectiva crítica em relação à produção da autora. Uma delas corresponde à deslegitimização das obsessões metafísicas da senhora D (e da obra hilstiana). A qualidade textual deveria ser buscada na valorização do aqui e agora, dos elementos da realidade moderna, ironicamente denominados modernosos pela narradora. A alma e a morte, aos olhos de tal concepção estética, são temas marginais, ocupam uma posição secundária nos interesses dos seres encantados com os movietones, os vídeos, as formas do instante, as notícias e a logorréia dos controladores do mundo e da informação do tipo o-que-que-está-acontecendo-agora. Puro engodo, o aqui-agora transformado em espetáculo, a multiplicação de informações com a finalidade controladora de impedir a gênese de qualquer pensamento, de promover o esquecimento das dúvidas essenciais, de mascarar o fluxo temporal de ser para a morte, de abortar o nascimento do demônio pessoal − a descoberta da voz interior como marca de identidade.

    A preocupação metalingüística faz-se acompanhar de referências a outras narrativas, revisitadas no texto, num gesto de explícita filiação. A experiência radical de Rimbaud aguça as dúvidas, reforça a perplexidade, ao mesmo tempo em que revela a linguagem como o único código de busca. A correspondência entre Kakfa, Milena e Brod possui analogia com os textos hilstianos: são "textos bizarros" (HILST 2001: 44). O suicídio de Tausk desponta na presença de diversas mortes no romance: do pai, de Ehud e da própria senhora D. A referência a Lou Salomé e Freud inscreve-se como marca da (in)compreensão da natureza humana. Certas referências denunciam um impacto tão profundo que são capazes de surgirem no relato de maneira surpreendente. Hillé paralisa uma cena de apelo erótico ao trocar as carícias de Ehud por uma inesperada reflexão sobre A morte de Iván Ilitch, uma novela de Tolstóy. O pensamento enunciado pode ser lido como análise do texto tolstoiano ou como referência à própria vida de Hillé: "Por favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo” (HILST 2001: 18) poderiam servir como síntese da narrativa, caso fosse possível simplificá-la em fórmulas sintéticas.

     A constante aparição de Ehud organiza uma relação familiar quase comum, banal. Ehud é uma espécie de filtro da realidade externa, um tradutor do lá fora, um marido em exercício de dominação, ainda que amistosa e suave. Em várias passagens do texto almeja que lhe seja servido um café e sempre solicita agrados sexuais, ou seja, demarca o espaço doméstico feminino como o local de execução de tarefas estabelecidas por um centro − o marido. É um interlocutor duplo: vivo, é a voz do aconselhamento, das ligações com o real concreto, da racionalidade social − sabe que não existem respostas −: morto, é vivenciado por Hillé como pungente experiência de perda. Ehud é o interlocutor, aquele para quem Hillé fala, porém, num perturbador paradoxo, também é uma voz de Hillé. A presença do companheiro é um fio estruturante da narradora, uma vez rompido, Hillé sente-se mais desamparada. Troca os peixes por simulacros de papel porque não há mais como cuidar da vida. Pela mesma razão subtrai o brilho ao olhar. Em ambos os atos a tradução da dependência afetiva em relação ao marido, aquele que teve o poder de (des)nomeá-la, reduzindo o nome a apenas uma letra, reduzindo-a de mulher a problema − por isso reclama que as pessoas precisam foder, que está cheio dos sussurros e dos cochichos por trás de portas entreabertas quando passa pela vila, cheio de explicar ao mundo as excentricidades da esposa.

   A perda de Ehud acentua os traços regressivos e o viver deslocado. A senhora D, totalmente enclausurada em seu mundo interior, não pode aceitar o gesto de boa vontade de uma vizinha a lhe oferecer dois pãezinhos. O presente possui um preço muito elevado: a interferência de estranhos em sua vida, uma profunda transformação de espaços, gestos e pensamentos. O ato amistoso pressupõe um pacto de convivência. Caberia a senhora D evitar a a criação de constrangimentos para os moradores. Oferta vã: não pode haver conciliação, porque ela não almeja con/viver, mas viver.

  A linguagem pesada, obscena, registra o fracasso das tentativas de acordo. O desencontro manifesta-se numa escrita de cólera, fúria, autêntica forma impressa da hybris, da cisão entre sujeito e significado.

    Na literatura de Hilda Hilst a preocupação com a palavra não está presente de modo semelhante ao da obra de Clarice Lispector. O texto hilstiano não se fixa naquilo que a palavra revela, mas naquilo que é inominável na linguagem. Busca a senha iluminadora do vazio no próprio vazio, resulta, dessa forma, de um intrincado jogo de máscaras (já que nenhum rosto é possível) textuais no qual se busca a transcendência do existir.

    Dotada de fúria iconoclasta, de um pathos reflexivo, de um lirismo difuso, a narrativa hilstiana pode ser vista como uma forma híbrida, responsável pela dificuldade oferecida a apreensão crítica: "No nível da microestrutura textual também é um texto difícil de classificar. Incorpora registros orais populares, palavras e raciocínios mais sofisticados, palavras chulas, construções poéticas atrevidas e inusitadas, desrespeito às normas gramaticais”. (CARVALHO 1999: 111)

    A fragmentação discursiva possui uma arquitetura capaz de sustentar a legibilidade do enunciado: "...a estrutura ficcional de Hilda Hilst constrói-se por meio de microestruturas estilísticas (o uso de um texto poético em verso em meio a uma estrutura narrativa ou dramática) e de macroestruturas técnico-compositivas − a colagem intragenérica de textos que resultam num texto híbrido único".(QUEIROZ 2000: 63)

    A dicção hilstiana é modulada mediante um alto trabalho de elaboração estética, capaz de levar o receptor a internalizar a vertigem metafísica do universo do enunciatário;

A idéia de opacidade do discurso hilstiano diz respeito não apenas aos temas com os quais trabalha, mas sobretudo à sua linguagem literária, responsável pelo que chamei de 'força de repulsão', na medida em que sua engrenagem é movida, já se disse, a marteladas. Se, por um lado, tal discurso articula-se em meio a perguntas de vigorosa ressonância filosófica, religiosa e mística, no no sentido de busca por uma transcendência que supere os vazios inerentes à condição humana, utilizando então uma dicção culta, não raro de alto lirismo e de metáforas inaugurais, por outro lado, quando as respostas a tais perguntas falham − e elas falham quase sempre −, a ira incontida, a fúria e a iconoclastia apossam-se do discurso, e a frase será então uma torrente incontrolável e incontornável de impropérios, de imagens coprológicas, de blasfêmias. Tal processo ocorre sem mediações, de modo que o leitor se vê numa montanha russa, em alta velocidade, de onde não pode descer − ao menos enquanto viger seu pacto com a leitura. (QUEIROZ 2000: 19)


    Hillé busca a si mesma. Não há uma identidade, o seu rosto é protéico, adquire a conformação de quem se volta para ele, por isso não corresponde a um sujeito, porém a diversas representações dele; nenhuma exata e nenhuma incorreta. A construção de um sujeito implicaria a legibilidade do mundo, o perecimento de qualquer questão. Assim, Hillé constitui-se em diversas perspectivas. Há uma excêntrica Senhora D − a grande porca acinzentada − para os moradores da vila. Outra versão doméstica da grande porca circula na narrativa − a pequenina porca ruiva, repleta de indagações − para alguns conhecidos. Existe também sob a forma de pura pergunta, autêntico e altivo paradoxo, endereçada à mãe. Ao pai, apresenta-se como segredo, escuta, concha, simbologia edipiana de sentimentos clandestinos. Para Ehud, Hillé é a mulher contraindo-se em uma letra, em um vão da escada. Nenhuma é Hillé porque todas o são.

    Porco-Menino é o abismo no qual não se vê representada, nele perecem os textos e as palavras. Interlocutor de ausência e amante da sua carne e do seu espírito, Deus entope a boca de Hillé de terra, cascalho, de palha, ou seja, é mão castradora do discurso, a causalidade culpada do homem e de sua incompletude, a desarticulação de perguntas e respostas.

    Nenhum outro ser humano possui a capacidade de decifrar o deus-enigma. Isso fica evidenciado no diálogo com o padre que vem, a pedido da vila, 'auxiliá-la'. Ao descobrir que o religioso é "um homem como outro qualquer" (HILST 2001: 32), ou seja, não possui nenhuma resposta para as perguntas essenciais que formula, expulsa-o inconformada.

    O Menino Precioso, Luzidia Divinóide Cabeça, desperta sentimentos de amor e ódio. O amor é explicitado na tentativa de encontrar o Menino-Porco, o ódio resulta da indiferença divina, pois o criador, mesmo dissolvido em todas as coisas e seres por ele concebidos, não faz parte do lixo criado. Hillé investiga impiedosamente esse deus. O aspecto coprológico adquire então um significado mais preciso. O buraco de Deus (imagem e semelhança), o ânus divino, é o espaço do nascimento. O universo todo, portanto, é constituído por dejetos, os elementos rejeitados por Deus, daí o abandono e o silêncio.

    Hillé percebe Deus como uma figura paterna:

como será a cara DELE hen? é só luz? uma gigantesca tampinha prateada? não há vínculo entre ELE e nós? não dizem que é PAI? não fez um acordo conosco? fez, fez, é PAI, somos filhos. não é o PAI obrigado a cuidar da prole, a zelar ainda que a contragosto? é PAI relapso? (HILST 2001: 38)


    Para Freud, o pai é visto pela criança como sucessor da mãe no plano da proteção familiar. Apesar disso, também é percebido como fonte de perigo, já que associado à mãe, figura como rival na disputa pela atenção materna. Desse modo, os sentimentos da criança são ambivalentes, moldados por desejo, admiração e temor. Ao crescer, o indivíduo pode tornar-se independente da ação do pai biológico, mas a sua identidade psicológica permanece condicionada à idéia de um ser que o livre do desamparo:

Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai constitui motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as conseqüências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer − reação que é, exatamente, formação da religião. (FREUD 1970: 29)


    Cabe a esse pai proteger o indivíduo contra os terrores da natureza, exorcizando a força destrutiva dos elementos desconhecidos e protegê-lo da morte, compensando-o por todos os sofrimentos e privações da existência. Essa prática protetora corresponde ao acordo cobrado pela protagonista.

    Um deus que não cumpre a promessa de felicidade só pode ser concebido como um menino louco. Ignora qualquer acordo ou contrato, pois não pode preencher as lacunas humanas porque também vive no deserto, no vazio escuro, também habita o nada. O diálogo entre o Menino louco e Hillé capta o desencontro, Hillé não pode escutar o discurso de deus, entre ele e ela existe um fosso intransponível.

    Quanto maior o silêncio, mais alto fala o desejo. E o desejo de deus assume formas sensoriais, daí o apelo constante à visão, ao tato, ao olfato, à audição e ao paladar. A teófaga precisa degustar o divino, incorporá-lo organicamente, canibalizar a divindade, única forma efetiva de relação incestuosa entre o humano e o sagrado. Através desse ritual em que deus é materializado no plano sensorial, única aproximação possível, Hillé pode ser possuída e possuir o pai, não obstante o caráter fictício da posse, autêntica construção no abismo, no nada. Resta-lhe apropriar-se da fórmula bíblica do abandono irremediável: lama sabactani.

    A morte surge como expressão máxima do sentimento de desamparo. Apresenta o tempo como uma escrita de ruínas, de decomposição eterna dos seres e do mundo. Os mortos surgem em suas formas decompostas, resíduos da existência, fezes, dejetos. O pai, o amante, Hillé, todos comidos, regurgitados e expelidos por um deus-demônio no palco vazio do universo.

    A narrativa hilstiana consegue circunscrever o leitor nesse círculo de desamparo, como registra com precisão Vera Queiroz:

O amor é flagrado, sobretudo, em seus vários estados de decomposição, arrastando consigo uma linguagem ao mesmo tempo sublime e chula com altos vôos líricos e vocábulos de baixo calão. Isso se dá em razão de que as tramas hilstianas organizam-se em torno de estados agônicos de ser dos personagens mobilizados por situações apresentadas já em seu clímax, de modo que o leitor é convocado desde o início a partilhar, sem escolha, da vertiginosa voragem de questões postas em geral ao ser catalisador dos abismos: − Deus, cujos nomes desdobram-se em dezenas de outros, por processos também eles múltiplos − metáforas, metonímias e perífrases configuram aqui estratégias de cerco ao nome e à coisa, e também ao leitor, por elas capturado. Nesse sentido, a literatura de Hilda Hilst vige à beira de, e projeta no leitor um estado de sítio constante, em função das excruciantes demandas pelo inominável − o sentido da vida, o sentido da morte, as formas do amor, a fatalidade do tempo. Tais os grandes enigmas e os abismos metafísicos que engendram os personagens essa obra única, e que os obsedam. (QUEIROZ 2000: 16)


    Se for levado em consideração o raciocínio de Freud de que a culpa é a reação a um impulso repudiado, A obscena senhora D é uma narrativa impressa com a caligrafia da culpa. Inscrição tão forte que nenhum ato de exorcismo será capaz de anulá-la. Aos olhos do lá fora, a excentricidade de Hillé é um movimento antinatural. Sua recusa à banalidade cotidiana, sua busca enlouquecida é estigmatizada. Hillé exibe as marcas da possessão em seu corpo, a porca que a habita e devora. Graças à estranheza de suas atitudes é demonizada, nela estariam presentes os demônios Asmodeu e Astaroth.

    A culpa é símbolo da transgressão à legislação da razão instrumental: "o sentimento de culpa torna-se um dos mecanismos mais eficientes do controle social e de garantia da autoridade, inicialmente marcada pelo pai, e depois transferida para o Estado e suas instituições" (MANTEGA 1979: 17).

    Ao lado da culpa sob a forma de condenação externa, surge a culpa atribuída por ela aos próprios gestos.

    Seu deslocamento corresponde a um movimento em direção a que não se completa, um desprender-se que não se liberta, um mergulhar que resulta em naufrágio. Hillé é um Édipo-mulher, uma crente herética e selvagem, um ser emancipado da cena do cotidiano e colocado em pleno domínio de Ehud, do homem: a cerrada e torturada reflexão metafísica. Rompe fundamentalmente vários e submersos preconceitos, inclusive metafísicos: o de que a mulher é criada para a imanência e não para a transcendência.

    Ainda de acordo com o pensamento freudiano, não existe possibilidade de os homens serem felizes porque a sociedade obriga-os a reprimir os instintos de prazer − totalmente acesos na narradora-protagonista. A vila − metonímia do superego − impõe regras de comportamento, todavia os instintos de Hillé não podem ser atenuados, sublimados, despidos de sua carga de prazer.

    Hillé dilacera-se por padecer de uma antitética natureza barroca: floração de instintos e intelectualismo refinado.

   Apesar da aventura radical, o vôo cobra pesado tributo: a culpa, cuja metáfora é a senhora P, é a tatuagem da regressão no obsceno corpo da senhora D.

    A proposição de novos paradigmas faz com que a obra de Hilda Hilst adquira uma papel cuja importância só tende a ser ampliada com a constituição de uma crítica capaz de captar toda a sua riqueza, tudo aquilo que acrescenta à literatura de autoria feminina brasileira.

Se tais perguntas constituem, em última instância, o húmus que fertiliza toda grande obra literária, o processo em Hilda Hilst singulariza-se no contexto da tradição brasileira pela violência que ela imprime ao diálogo com esse Deus onisciente, a presidir um mundo em caos, de que resulta uma espécie de teogonia pagã e escatológica, cuja linguagem jamais se detém face a regras ou convenções "bem comportadas”: o jogo de Hilda é uma aposta na desconstrução radical do bom tom e da literatura morna em favor de uma frase que atinge extraordinárias voltagens líricas, cuja pungência maior advém do encontro entre os limites do baixo e do alto, em que o escatológico, e mesmo o coprológico, se lêem como contraface do mesmo movimento lírico. Hybris urbana e pagã, a voz que perpassa o discurso ficcional de Hilda Hilst refrata e coloca em cena um mundo em caos, cujos estilhaços compõem a face do homem contemporâneo em sua solidão e desamparo, submetido às violentas desordens sociais, impostas pelo viés mais cruel das economias de mercado. Tal desordem, contra a qual as crônicas publicadas em Cacos e carícias constituem um libelo contundente, funcionam na arte literária de Hilst como motor de uma engrenagem discursiva movida pela fúria iconoclasta, pela uebra dos padrões e pela vontade de dobrar, enfim, os limites da palavra, da sintaxe e das convenções banalizadas. (QUEIROZ 2000: 10)


    A fusão de corpo e alma, o entendimento entre porca e louca, não propicia o menor alívio. Em ambas a mesma ferida sem vivez, o mesmo processo regressivo: o estado de pulverescência de Hillé.


Referências

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Parente (org.). Desafiando o cânone. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1999. pp.109-124.
CUNHA, Helena Parente. "A mulher partida: a busca do verdadeiro rosto na
miragem dos espelhos". In: SHARPE, Peggy (org.). Entre resistir e
identificar-se: para uma teoria narrativa brasileira de autoria feminina.
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FREUD. Sigmund. O futuro de uma ilusão. Ed. standart brasileira das obras
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HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? Tradução Ernildo Stein. São Paulo:
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MANTEGA, Guido. "Sexo e poder nas sociedades autoritárias: a face erótica da
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QUEIROZ, Vera. Hilda Hilst: três leituras। Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.


Trabalho publicado originalmente na Revista Garrafa, nº 14, jul./set. 2007, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. 




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O carnaval na narrativa de Aníbal Macahdo



Introdução


     O Carnaval é a festa  mais representativa da cultura popular brasileira, consequentemente sempre despertou a atenção e a curiosidade de nossos escritores, fato comprovado em  diversos textos a ele dedicados por Manoel Antônio de Almeida, José de Alencar, Machado de Assis, Raul Pompéia, Coelho Neto, Olavo Bilac, João do Rio, Lima  Barreto, Mário  de  Andrade, Aníbal Machado, Marques Rebelo, entre  tantos outros  (1), ora sob  a  forma  de  textos  circunstanciais, impressões de momento estruturadas em crônicas ou  simples anotações  meramente informativas, ora sob a forma de textos realmente  literários; aqueles  nos  quais o carnaval é ficcionalizado. Observar essa multiplicidade de visões é acompanhar a sua  recepção   pela intelectualidade, o modo  pelo  qual é construído no imaginário de nossos  autores  e, simultaneamente, o modo pelo qual o constrói. 

     Na evolução histórica do Carnaval, podemos constatar que há, desde a  Idade Média, modos  diversos  de  relacionamento das elites  com  essa tradição popular. Às vezes predomina a aceitação da força dos elementos espontâneos da cultura popular, vistos  como um rolo compressor, perante o qual  qualquer  resistência  é  nula; em  outros  momentos ocorre a aceitação parcial, ou seja, a cultura  oficial  concorda em legitimar o Carnaval desde que possa fazer algumas modificações, estabelecer normas e subtrair aspectos  que considera negativos; além disso, existe a rejeição pura e  simples, fruto de  uma  concepção  de  mundo incapaz de ver algum valor  nas  formas  populares de cultura, consideradas baixas, impuras, ilegítimas, expressão grotesca das  classes  inferiores. Por trás de  toda  essa  relação há  uma constante: a tensão entre o caráter espontâneo e popular da  festividade carnavalesca e os impulsos domesticadores e regulamentadores das forças institucionais que representam a cultura oficial.

    Mikhail Bakhtin fornece algumas indicações que  ajudam  a  compreender  a origem dessa convivência conflituosa:


                                      Na verdade, o carnaval ignora toda distinção entre atores e espectadores.    
                                      Também ignora o palco, mesmo na sua forma embrionária. Pois o palco
                                      teria destruído o carnaval (e inversamente, a destruição do palco teria
                                      destruído o espetáculo teatral). Os espectadores não assistem ao
                                      carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza
                                      existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra
                                      outra  vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ela, pois o   
                                      carnaval não tem nenhuma fronteira  espacial. Durante  a  realização da 
                                      festa, só  se  pode    viver de  acordo com suas leis, isto é, as leis da
                                      liberdade. O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar
                                      do mundo. Essa   é   a  própria   essência   do   carnaval, e   os   que  
                                      participam dos festejos sentem-no intensamente. (BAKHTIN, 1987, 6)
                          

     Essa concepção do carnaval como um espaço de liberdade, de inversão de  todos os papéis sociais, de supressão das interdições, leva  o  estudioso russo a vê-lo como  expressão de "um segundo mundo e uma segunda vida" (BAKHTIN, 1987, 5), prova da existência de uma "dualidade do mundo". (BAKHTIN, 1987, 5) Ou, de acordo com Peter Burke, outro autor preocupado com  a  cultura  popular, o carnaval  marca o aparecimento de um "mundo virado de cabeça para baixo". (BURKE, 1989, 212)

    A batalha entre o Carnaval e a Quaresma, fixada em tela por Brueghel, sempre esteve presente ao longo dos anos também nas festas momescas realizadas na cidade do Rio  de  Janeiro, espaço em que são ambientados os relatos aqui analisados. É certo que, desde as informações mais remotas, pode-se  constatar a existência  de  tensões  entre o caráter anárquico e libertário de suas práticas populares e a preocupação de controle  e  seriedade  do  mundo  oficial. Este, mesmo em suas práticas públicas de diversão, cultiva uma forma civilizada, ou seja, move-se no interior de fronteiras flexíveis a expansão de jogos, festas e brincadeiras, com a condição de que sejam capazes de assegurar o rumo, o  controle, as  regras de  polidez, respeito e manutenção da hierarquia.

    Essa  tensão  histórica  e  universal  faz  com  que a nossa elite, em um primeiro momento, volte-se contra o entrudo, vendo-o  como  um  procedimento  inaceitável, caracterizado  pela falta de decoro e  por  traços transgressores ao afrontar  os  elementos  simbólicos  da  ordem constituída:

                                   
                                       
                                       Quando   chegou   entre  nós,  já   no   século   XVII, vindo  de
                                       Portugal, importado, segundo Melo  Morais  Filho, dos  Açores,
                                       teve imediata aceitação por parte do público.
                                       Não  havia   música  nem  dança, mas  muita bebida e correrias,
                                       perseguições,  sujeira    e   violência.  Mereceu,   por    isso,  das 
                                       autoridades, desde  o  início, rígidos   alvarás   e  proibições   da
                                       brincadeira    pelos    problemas     que    acarretava:    pequenas
                                       contusões  e  muitas  cenas vexatórias. (VALENÇA, 1996, 13)




    Essas "cenas vexatórias" tornam-se mais nítidas  na observação de Maria  Clementina  Pereira da Cunha:


                                       (...) escravos brincavam de esfarinhar-se como branco.em uma
                                       encenação evidente de sátira social. Cartolas e casacas envergadas por
                                       altivos senhores  tornavam-se  alvos   preferenciais da pilhéria, que
                                       consistia em, literalmente, destruir tais signos de  distinção  social 
                                       entre assuadas e gargalhadas – mesmo sob o risco de intervenção da
                                       polícia.  (CUNHA, 2002, 396)


    O momento inaugural dos festejos carnavalescos da cidade do Rio  de  Janeiro é visto com desconforto pelos autores nacionais, à exceção de  Manuel Antônio de Almeida  que  descreve a presença dos ranchos das baianas  (dos quais  se originaram os ranchos carnavalescos) à frente das procissões numa narrativa picaresca constitutiva de  um  espaço  de  inversão  e na qual  as formas populares não são anatemizadas. Os demais  escritores, Joaquim  Manuel  de Macedo, Laurindo Rabelo, entre outros, expressam  nos textos e na ação social  uma preocupação de encobrir, reformar, civilizar os excessos críticos, satíricos, anti-hierarquizantes presentes no entrudo. Por isso os intelectuais da segunda metade do século XIX  (inclusive  Manuel Antônio de Almeida) articulam-se e criam as Grandes Sociedades, processo de europeização, civilização e disciplinamento do carnaval carioca que tenta dar-lhe  clima  assemelhado ao de Nice e Veneza. Esse projeto de  emascaramento, na verdade, corresponde ao desenvolvimento de uma forma assumida pelo entrudo após a fase inicial: ao lado do carnaval   de  rua, surge um carnaval em casa, doméstico, assegurando a  tranquilidade das famílias, protegendo-as do caos citadino e evitando, portanto, a ruptura e a  inversão operadas pelas classes populares (2). Desse modo, a Quaresma  organiza-se  e  tenta  estabelecer  filtros  de  contenção  da  energia ilimitada do Carnaval.

    Vale ressaltar que,  paralelamente a esse Carnaval defensivo, enclausurado  no  lar, a  elite  carioca descobre, um  pouco antes de  engendrar  as  grandes sociedades, outro caminho para fugir à promiscuidade das ruas, ao  convívio  forçado  com os escravos e demais subalternos, percebido como uma ameaça insuportável das classes perigosas:

                                       Inspirada  [a esposa do dono do elegante Hotel Itália, situado na
                                       atual   Praça   Tiradentes]  nos  costumes de sua terra natal, essa
                                       italiana  organizou  em  1835   o   primeiro  baile   de   máscaras          
                                       o  objetivo  de  atrair a sociedade aos  folguedos  carnavalescos.
                                       Os  bailes   do   Hotel   Itália  se  tornariam  uma   constante  no
                                       carnaval carioca e seu  sucesso estimularia a concorrência. Não
                                       apenas  hotéis  e clubes  se lançariam à nova moda: em 1846  se
                                       inaugura   uma   tradição   que   duraria   mais  de  um  século: a
                                       realização   de   grandes    bailes    carnavalescos    nos    teatros
                                       cariocas. (VALENÇA, 1996, 21) 

  As tentativas de enquadramento do caráter espontâneo e livre da  festa  carnavalesca  continuaram depois do surgimento das  Grandes  Sociedades, fato  que comprova a extraordinária dificuldade de domínio das classes hegemônicas sobre  as manifestações  carnavalescas, pois estas sempre assumem novas formas, modificam outras, fogem ao ordenamento e à razão legislativa do poder. 

     O surgimento de "cordões" e o desfile do corso foram novas formas de  controle  concebidas pela elite para esvaziar o potencial transgressor do carnaval.

    No corso a elite divertia-se, brincava, enquanto simultaneamente  exibia  o  novo  símbolo  de poder, o automóvel adornado de mulheres  bonitas.

O cordão era uma tentativa de aprisionamento da  energia  e da  liberdade
populares, uma vez que constituía  uma  evolução  dos  antigos  zé-pereiras, transformados  em  "sociedades  regulares, com estatutos, sede e cumprindo exigências da polícia". (CUNHA, 2002, 399) 

    A obediência aos  imperativos legais, no entanto, jamais subtraiu aos elementos populares a força criativa e o caráter original: "Os  blocos e cordões, embalados pelos instrumentos  de percussão, cantavam  músicas  próprias, carregavam  um  estandarte e eram comandados por um mestre e seu apito". (PIMENTEL, 2002, 30) Surge uma música apropriada ao  ritual  carnavalesco  e  uma organização elementar que contém o gene das escolas de samba.

    Apesar da interferência de idéias inoculadas pela  classe dominante, como  a  exigência de que o desfile dos ranchos abordasse  temas  nacionais, tese defendida com êxito  por  um dos maiores incentivadores dessa forma carnavalesca, o escritor  Coelho  Neto,  as  agremiações populares sempre conseguiram superar as limitações impostas pelos poderosos.

    Nenhum ato de regulamentação, contudo, consegue  enfraquecer o  Carnaval  carioca  que parece ganhar força  com o tempo, incorporando  de vez o universo negro à tradição momesca. Assim, as formas do rancho, dos blocos e cordões  e das  grandes  sociedades  fundem-se nas escolas de samba num processo de sucessivas  transformações  temporais.

    Para  a maior manifestação  do carnaval carioca confluem a forma  de desfile dos ranchos, uma ala que migra do desfile religioso para o profano como prova do estreito  relacionamento  entre  esses dois mundos; a pujança e riqueza dos carros  alegóricos  das grandes sociedades, emoldurados por estonteantes beldades do teatro de revista e  do  mundo glamouroso da  arte,  além de outras belezas sob o olhar da  suspeita, todas  transformadas  com o  tempo em caçadoras de mídia; o luxo e o esplendor dos concursos  de  fantasias  criados  para  glória  e gáudio de seleta assistência em salões exclusivos de grandes hotéis ou outros  palcos nobres, paradoxalmente  transformados  em espetáculos populares; a incorporação da cultura  acadêmica mediante uma simbiose entre a tradição  carnavalesca  com  artistas  plásticos, cenógrafos, coreógrafos, intelectuais e técnicos de diversas áreas, fato que naturaliza a assimilação e o uso de tecnologias no mundo do samba capazes de modificar a tradição do desfile.

    A evolução histórica do carnaval do Rio de Janeiro aponta  para  a existência de  períodos diversos. Qualquer  que  seja a divisão adotada, sempre deverá ser observada a manifestação predominante em cada época. Em sua primeira fase, o entrudo é a  expressão máxima. O  segundo momento é representado pelo desfile das Grandes Sociedades. O terceiro marca o surgimento e domínio das  escolas  de  samba. Essa  terceira  fase pode ser  subdividida em dois momentos: o da gênese e fortalecimento  das  escolas, quando  ainda  convivem  com  outras  formas populares  – ranchos, sociedades  e frevos; e o da  hegemonia  absoluta, quando  as escolas passam a constituir a única forma de desfile reconhecida.

    Os textos de Aníbal Machado nos quais o Carnaval é ficcionalizado correspondem ao momento inicial do desfile das escolas de samba, à sua fase romântica na qual a  tradição  popular é mais viva e espontânea. As escolas ainda não eram administradas em  moldes  empresariais e os blocos carnavalescos eram capazes de rivalizar  com  elas, alguns  chegavam  até  a ser mais famosos  e agregavam um número muito maior de foliões. É, ainda, a época do Carnaval de rua, isto é, o povo ia para as ruas do centro da cidade para brincar, pular, divertir-se ou simplesmente assistir aos espetáculos e  às  performances  individuais. Quer  vestido  normalmente, quer fantasiado, o folião, anônimo ou  não, solitário ou em  grupo, fazia  das  ruas  da cidade um palco de improviso e invenção de um mundo sem fronteiras e sem distinções.

    Esse  universo  aparece  parcialmente  representado no conto "A morte  da  porta-estandarte" (MACHADO, 1985, 223-233)  e  em um extenso trecho do  romance  João  Ternura (MACHADO, 1978) , obra  póstuma, editada  em 1965, cuja redação inicial teria ocorrido provavelmente entre 1930 e 1940. Tudo aponta para a inexistência de um intervalo muito grande  entre  a gestação de ambas; é bem possível, aliás,  que tenham nascido de um mesmo processo  organizado em modalidades diferentes: conto e romance. O romance parece ter concentrado toda  a  atenção do autor que levou anos em sua elaboração, a ponto de a obra tornar-se famosa antes de ser publicada tal a expectativa criada em torno do lançamento.

    Apesar da proximidade temporal, a diferença no plano  da  forma  revela  uma  riqueza  de  observações sobre  a  festa  de Momo.

    No conto, o autor constrói uma história linear, porém  rica  para  a compreensão dos nexos existentes entre o mundo colocado fora dos eixos e o império do cotidiano.

    No romance, uma espécie de  relato  memorialisticofragmentário e  bildungsroman-lírico, o carnaval, conquanto não seja o tema, ocupa um lugar especial e  a  narrativa  de  Aníbal  Machado assume uma conformação ditada pelo olhar festivo e transgressor do folião.


Carnaval e morte

     Há alguns elementos que chamam a atenção já  nos  parágrafos iniciais do conto “A morte da porta-estandarte”: a referência aos espaços que funcionam como palco para a festa maior da cidade – Mangue, Central, Praça Onze – e aqueles onde vivem  os sambistas – Bangu e Madureira; o anonimato do sambista, mantido até o final da  narrativa, símbolo  de  um  conjunto de  atributos que o insere na galeria de tipos, sem alcançar a  complexidade de uma personagem; e a expressão “seu cordão”, forma linguística que aponta  para uma forma carnavalesca ainda marcada pela intervenção autoritária das elites  cariocas  no início século XX, ávidas em modernizar a cidade, ainda que ao preço da  expulsão  dos habitantes do centro, e regulamentar as atividades culturais das classes populares.

    Existe algo estranho no olhar do  protagonista negro, estranheza  acentuada  nos  parágrafos  seguintes. Esse olhar ansioso, sofredor, tenso, não corresponde ao olhar carnavalesco. Talvez  seja possível pensar este como aquele que absorve, suga o mundo e todas  as  formas de  prazer  nele instaladas. Só percebe as formas do sensível. Não revela outro estado de espírito a  não ser  o brilho intenso da embriaguez, da luxúria e da alegria.

    Vemos então o sambista, natural ao meio – mais do que membro do bloco, é também o autor do samba, posição que lhe atribui um status particular –, apresentar-se  deslocado: “Por que  não  se  incorporou  ao seu bloco? E  por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou  pelo braço, convidando-o?”  (MACHADO, 1985, 223)

    Se o ciúme está na raiz desse deslocamento, a sua motivação prende-se à natureza da festa, mais precisamente à dissolução do privado no público, uma vez que o corpo da amada passa a pertencer à multidão. A mulher escapa ao domínio do homem, metonimizado no olhar impotente.

    O corpo da  amada  é  apenas  uma  promessa "aquele corpo que já lhe foi prometido, será dele mais tarde..." (MACHADO, 1985, 223)  E é em função dele que o negro movimenta-se no meio da multidão como um intruso, temendo não se apresentar mais com as roupagens do cotidiano, por não ser percebido como componente do processo de hierarquização que o converte em peça de produção (através da metonímia redutora "mão-de-obra", expressão  reveladora do esvaziamento do sujeito),  o corpo  pode ser  visto como  uma  forma  de  prazer  em  si mesmo. 

    A fantasia, em vez de escondê-lo, exibe-o despido das máscaras do cotidiano  –  a seriedade e a produtividade, principalmente – que neutralizam o olhar e subtraem a  sensualidade e a beleza originais. A fantasia, portanto, revela e provoca, transfigura os seres, tornando-os objetos de desejo ao expressarem as formas anelantes  recalcadas  no  plano  do cotidiano. O corpo desperta os sentimentos mais  primitivos e  descontrolados de  posse, contudo, paradoxalmente, tudo  – durante o tempo do carnaval  – permanece inacessível a qualquer forma de controle, fora de domínio individual.

    A alienação modela  um  corpo  instrumental, sem autonomia de movimentos, aprisionado ao processo produtivo da sociedade. A relação de corpo com a função de desempenho social destrói a singularidade física do indivíduo. Os seres são descorporificados e lidos  como  papéis sociais, funções, ofícios; flagrados no campo das  relações sociais dentro do qual  o prazer é um instrumento  de  manutenção  e  perpetuação da ordem constituída, no máximo uma área  de  alívio de tensões  na qual  a  produção recupera as energias dispendidas; é o prazer-mercadoria. Por isso a prostituição, historicamente  estigmatizada  em  guetos  urbanos, também é uma província da cidade. Apesar de ser legal e hipocritamente vergastada por  legisladores e moralistas, corresponde a um território regulamentador das  tensões, carências  e  necessidades afetivas, culturais e sexuais dos habitantes da pólis. (3)

    No carnaval o corpo recupera a liberdade perdida e pode ser exibido sem a necessidade de ser traduzido em  valor. Nu, seminu  ou  vestido  (tanto faz)  está  fora, ainda que provisoriamente, da cadeia produtiva, não é um meio através do  qual  se gera  valor e  riqueza. Aqui o valor é o próprio corpo, o prazer procurado é um prazer-sem-fim, advém de sua autonomia e não da satisfação que acrescenta a outro indivíduo: é um puro-prazer.

    A forma de reconhecimento é coletiva. Não há uma exibição  para  um olhar determinado, pois este se transforma no olhar da multidão. Daí a inquietação do sambista no início do conto: a perda da amada significa  a suspensão do campo de visibilidade no qual ela é  representada costumeiramente. Ou seja, no carnaval ele não consegue localizar a sua Rosinha, pois a amada transforma-se em porta-estandarte, passa a pertencer a uma  realidade que  rompe  os  estreitos limites do convívio doméstico e rotineiro ao apontar para a ruptura dos códigos de reconhecimento e submissão adotado pelo  sambista –  traduzidos em uma ideologia opressora quebrada pela  inclusão da  mulher no  trajeto  carnavalesco. Há, portanto, a  ruptura de  um  código conservador e a mulher conquista um espaço de liberdade. E morre por isso.

    O conflito sentimental  do sambista  reflete  a  ideologia patriarcal da sociedade brasileira, ainda hegemônica  na  primeira  metade  século XX,  a  ponto  de ser internalizada pelo mais animado operário  nas  greves, animação  que  deixa  transparecer  uma  certa consciência de classe e desautoriza a associação preconceituosa muitas vezes efetuada entre o samba e a ausência  de  participação  política. A  assimilação  desse código conservador comprova que as ideologias fundamentadas na exacerbação dos valores inerentes ao sistema produtivo igualaram-se, seja  à  direita, seja  à  esquerda, na  repressão às formas marginais à totemização  da  produção como  metáfora  da  existência: produz, logo existe. O  sofrimento do negro é  uma  projeção simbólica da tensa relação entre o pragmatismo da sociedade capitalista –  presente também nas economias planificadas –  e as forças rebeldes a qualquer tentativa de instrumentalização.

    Cabe à mulher ser submissa  e  obedecer  à  vontade  do  operário, em conformidade com a dimensão complementar de sua atividade de manutendora  e duplicadora  de  mão-de-obra, papel periférico que lhe é reservado mesmo no interior das organizações políticas mais avançadas do início do século XX, como partidos políticos e sindicatos.Essa visão, ora arrependida e complacente, ora  violenta  e  vingativa, aparece  explicitada  em  alguns  momentos  do conto: "...não devia proibi-la de sair" (MACHADO, 1985, 223); "Se Rosinha desobedecer e vier à Praça não faz mal. Está também  disposto  a não se importar" (MACHADO, 1985, 226);  "...não seria mal que caísse uma tempestade  (...) que estragasse o vestido dela." (MACHADO, 1985, 226) 

    O machismo do negro significa a percepção do caráter emancipador do carnaval. O  acontecimento que ele não pode admitir é a conquista da igualdade, ainda  que  dentro  de  limites  temporais bem estreitos. Mais do que um deslocamento individual, a estranheza de sua  posição assinala uma modificação no plano social e é exatamente  isso que o incomoda:  a  perda  de seu domínio territorial.

   A ideologia  machista  caracteriza-se não por excluir a mulher do carnaval, mas por preservar nele a  funcionalidade da mulher-objeto, entronizada  no mercado como prazer-mercadoria, e  por reservar à  mulher-parceira  a  participação  apenas  em manifestações controladas. Fora do clube e do ambiente doméstico, livre da vigilância da família  e do homem, a mulher torna-se degradada, perdida, vulgar.

    O símbolo da independência da  heroína  da narrativa  não é o estandarte que carrega, mas o vestido que a transporta para outra dimensão. É  ele que desperta todo o desconforto do negro:  "Será  medo do vestido com  que ela deve sair hoje, aquele vestido em que fica maravilhosa, 'rainha da cabeça aos pés'." (MACHADO, 1985, 224) Mais  adiante  o  operário  apaixonado  torna  a  indagar: "Ela virá com aquele vestido?" (MACHADO, 1985, 225)

    É  de  posse desse traje que a simples operária de Bangu pode deixar a todos de cabeça virada. Por isso seu amado deseja que um temporal venha a danificá-lo e, numa  intensificação de sua angústia, chega a odiar o Carnaval. Não é à toa que o narrador deixa-o sem nome, identificando-o apenas como "negro". 

    O vestido funciona  como  metáfora da  transformação  e da perda. Mais do que a inversão de plebéia à rainha, leitura carnavalesca da história de Cinderela, marca a  passagem da  condição servil, de ser que vive sob a luz de outro, à criatura  emancipada, autônoma, plena, dotada de luz  própria, capaz de traçar  o  próprio  percurso. No  vestido, Rosinha  renasce.  Ele opera  a  conversão  da  forma  alienada  do  corpo, instrumento  de sobrevivência, em forma consciente do corpo, instrumento de afirmação e prazer pessoais.

    O uso da vestimenta  especial de porta-estandarte  é  interditado, já  que  o  trajeto  de  sua  evolução corresponde a um percurso transgressor. Ao vestir-se, Rosinha rompe o código que pretende circunscrevê-la em uma existência redutora, simples  projeção  das necessidades do macho, e assume  toda a plenitude de ser mulher. O  desfile  assegura-lhe grandeza análoga a de qualquer sambista masculino, coloca-a ao lado do amado que, aprisionada  às concepções dominantes em sua época, só  pode enxergá-la  de  cima, como mestre e senhor.

    Para o sambista, por outro lado, a ideologia dominante já é algo internalizado, um  processo de naturalização de atitudes, comportamentos e idéias cuja origem não se consegue precisar. Por essa razão espera encontrar Rosinha nos pontos que ele designa, desenhando  a  geo- grafia dos passos femininos num mapa de controle. O  sambista, ao  contrário, tem  todas  as chaves de inclusão no mundo do prazer. Faz parte do universo de regras de conduta masculina seguir  "a rapariga do momento" (MACHADO, 1985, 223) e  ceder às solicitações lascivas das mulatas:  "As  mulatas passam rente, cheias de dengue; sorriem, dizem palavras. Hoje ele não topa..." (MACHADO, 1985, 226)

    Isso comprova que o carnaval não é apenas  um espaço mítico, instaurador  de  uma inversão absoluta  de  atitudes, conceitos  e  valores, mas  também um  território  tensões, no qual, sob o primado da cultura oficial circulam representações dessa forma de domínio. A concepção de um carnaval mítico, símbolo de transformação universal e tempo de inversão  absoluta, é uma construção ingênua, incapaz de observar a sua natureza plural, a  sua  formação por camadas de elementos  oriundos de  configurações  diversas. No  palimpsesto  de  Momo  há  a presença de inscrições provenientes de culturas diversas, inclusive da cultura oficial.

    A narrativa  de  Aníbal  Machado  incorpora  as  contradições  que  alimentam  os festejos carnavalescos. O erotismo presente no conto não traduz somente a entronização de um  caráter libertário, já que reflete também um olhar machista que filtra a mulher pela ótica do desejo de posse. Reconstrói  a  figura  feminina  nos mesmos moldes com os quais é representada na estrutura social fora da folia, na qual a  mulher é reduzida a objeto de prazer. Essa reconstrução organiza-se através de estereótipos sobre as mulatas  e as negras. É o olhar construído pelos processos alienadores e alienantes do cotidiano, com  suas  camadas  de automatismo e preconceito, que inculca leviandade às morenas que brincam no meio da multidão  e  é capaz de atribuir o movimento dos estandartes a mulatas e a negras fora do campo de  visão, distribuindo, metonimicamente, virtudes físicas e sexuais a ambas ao permitir a  relação  entre  os  movimentos da dança e do sexo: por isso as mulatas são um colosso e as negras possuem um ritmo frenético.

    O processo  de  estereotipação, no entanto, alcança a sua intensidade máxima na cena descritiva em que aparece o olhar estrangeiro, representado por turistas ingleses. Assume a proporção de um choque cultural. A incapacidade de leitura significa a não  percepção  das  culturas não-européias como formas dignas de  reconhecimento. Daí  provêm  os  qualificativos de exótico, primitivo, excêntrico, pitoresco com  os  quais  as  culturas  centrais, na  verdade, deslegitimam a cultura de outros povos ao adotarem uma postura de reconhecimento condescendente: as culturas mais refinadas aceitam as mais simples apenas como diversão.

    As reações dos turistas, mais do que cômicas, são grotescas, como  pode  ser observado na recomendação dada  por uma mãe inglesa à filha  –  "Não chegue muito perto, minha  filha, que  eles  avançam..." (MACHADO, 1985, 227) – e por uma pergunta reveladora de curiosidade medieval feita pela filha –  "Mas eles são ferozes?"  (MACHADO, 1985, 227)

    A atração pelo exótico revela outro estereótipo: a atração  física  do europeu pelo negro. A excitação, a perturbação, a  atração  pelo  negro  revela  a  presença  de  uma comportamento senhorial, marcado pela transformação  do  negro em  objeto sexual, prestador de serviços de  liberação de  tensões  e  carências sexuais. É mais uma marca do prazer-mercadoria no rosto multifacetado do carnaval.

    Entre a notícia da tragédia e a descrição da morte aparece uma cena intercalada na narrativa  de  Aníbal  Machado, nela  as mães expressam desespero pela perda hipotética das filhas. Os relatos de mães anônimas  forma uma voz coletiva que tenta traduzir o caráter polifônico do carnaval. O movimento das mães, o girar incessante à  procura de notícias de  suas filhas, a alternância entre mães diversas, a presença  materna no espaço carnavalesco, onde também se incluem como folionas, seu clamor coletivo, são traços que  podem  ser  traduzidos  como representação narrativa de uma ala de baianas no interior do conto, ao mesmo tempo em que  formam um canto angustiado e uníssono a exercer um papel semelhante ao do  coro  nas  tragédias gregas. Destarte, podemos corroborar as palavras de M. Cavalcanti  Proença  sobre  o autor:  "Embora  nacional, até  mesmo  mineira, a obra de Aníbal Machado está embebida de universalismo e, se necessário restringir o conceito, diremos que esse universal vai da claridade francesa à inteligência da latinidade." (1985, XI)

    A preocupação das mães assinala ainda a presença da esfera doméstica em confronto com o carnaval.  A relação conflituosa entre a casa (controle e autoritarismo) e a rua (descontrole e massificação) inscreve-se nas linhas da narrativa. A  rua  corresponde  a um espaço hobbesiano – todos estão em luta contra todos. As filhas no carnaval rompem os protocolos familiares, saem de visibilidade, ingressam  numa  realidade na qual  a  casa não  exerce o menor domínio. Dessa maneira, as filhas morrem (no lar) e nascem (no mundo). Ainda  que  efemeramente atualizam o ritual de morte e nascimento. As mães reconhecem o  desamparo das filhas, pois  "na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias  não-sabidas ou  não-percebidas (...) a regra básica do universo da Rua é o engano, a decepção e a malandragem".  (MATTA, 1980, 70)

   "A morte da porta-estandarte" é  uma  narrativa portadora de significados que vão além daqueles emanados das ações das  personagens. A porta-estandarte não é uma desfilante individualizada; é o único  membro das  agremiações  carnavalescas  responsável pela inscrição de um signo do tempo histórico – as  insígnias  de  cada agrupamento – no tempo carnavalesco, marcado pela suspensão do fluxo temporal:  "O  tempo do Carnaval é cósmico e  cíclico, remetendo  os  participantes do ritual  para  fora do  contexto brasileiro, colocando-os em contato com o mundo do sagrado, do divino ou do sobrenatural". (MATTA, 1980, 43)

    Não era raro no passado, quando  havia  conflitos  entre os cordões, a tentativa de tomada da bandeira do grupo adverso. O  brasão  de  cada  bloco ou cordão costumava ser defendido por praticantes  de  capoeira. A  rivalidade  entre as  diversas comunidades do Rio de Janeiro surgia sob a forma de tentativa de conquista da bandeira de grupos rivais.
    A presença dos capoeiras não ocorria apenas durante a época carnavalesca, era uma característica de  todos  festejos  cariocas:  "Por  todo o século  XIX, na  cidade do Rio de Janeiro, uma das presenças mais renitentes nos momentos das grandes festividades públicas nas ruas, era a das chamadas 'maltas de capoeiras'."  (SOARES, 2003, 285)

    Ao comparar o negro com os navais e os estivadores  de  maneira  positiva  –  "Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores..." (MACHADO, 1985, 223-224) –, o narrador aponta para a sobrevivência dessas escaramuças, responsáveis pela união dos movimentos da capoeira aos  do samba.

    Observe-se ainda que  o  crime é perpetrado com o uso de uma faca, ou seja, de uma arma branca. A faca atualiza a navalha  historicamente  usada  pelos capoeiras nas batalhas carnavalescas do passado. As navalhas, costumeiramente  escondidas  nos leques usados pelos balizas, tornaram-se símbolo  agressivo do malandro, a  imagem estereotipada do carnavalesco das classes populares.

    A força do negro, necessária para a defesa da amada e para romper a  multidão –    "O negro fura  a  massa, coloca  a sua figura enorme em situação de poder ficar  bem  perto." (MACHADO, 1985, 225) –,  permite o estabelecimento de um nexo temporal entre ele e os balizas dos desfiles de rancho, capazes de manobras em defesa  do pavilhão das  associações. Os capoeiras assumem  posteriormente as posições ocupadas pelos  balizas e daí, no decorrer  dos  desfiles, surge a figura majestosa do mestre-sala.

    Na  cena  final, a  investida  do  negro  representa  tal sobrevivência de  modo  trágico. Ao mesmo tempo, essa movimentação intensa  em  torno do corpo da  porta-estandarte  transforma-o em um autêntico  mestre sala. Através da morte da porta-estandarte, o casal assume um plano igualitário. O par está completo.

 

Carnaval narrativo



    Se  no conto "A morte da porta-estandarte" o narrador dá contornos trágicos às figuras carnavalescas, no romance "João Ternura" os festejos momescos surgem retratados de  modo lírico, irônico, onírico e festivo, numa espécie de educação sentimental.  Não  ocupam o  lugar central da narrativa, por si só descentrada, constituída  por  um  conjunto de  quadros avulsos organizados num processo não-linear. Contudo, é reservado nesse relato existencial  um longo espaço (cerca de quarenta páginas) ao carnaval, destacando-o como  momento fundamental na formação da visão de mundo da  personagem que dá  título ao  romance. Como  decorrência da extraordinária importância concedida ao carnaval, a narrativa exibe as marcas  dessa influência.

    Sobre o romance vale ressaltar a análise do crítico Alexandre Eulálio:  "O grande  encanto dessa narrativa firma-se no profundo humor poético do texto, sugestivo  e  pessoal.  O  andamento rápido da ação, dividida entre instantâneos e episódios  extensos, existe sempre  numa atmosfera onírica, que tudo encobre na obra". (1993, 109)

    Em outra passagem, o mesmo autor afirma: "Peculiar ao humorismo de Aníbal Machado é a sentimentalidade intensa  que, reprimida, transforma-se em  propensão  para o satírico  e  o zombeteiro. Anexando diferentes espécies  de  realidade, ela  se  compraz  no  grotesto  tanto quanto este permite confrontar a realidade pobre com a aparência pomposa e falsa." (1993, 111)

    A onisciência do narrador em terceira pessoa é relativizada por uma estrutura é arquitetada com  a junção de cenas diversas, embora organizadas de modo linear uma vez que obedecem ao andamento cronológico dos acontecimentos. A possibilidade de construir ilhas  narrativas de maior ou menor extensão, de modo solto, sem  obediência a um enredo, apesar de sua inserção do plano de sequências temporais, dá à obra um caráter moderno, revelando-a como herdeira de técnicas desenvolvidas por nossos  prosadores  modernistas, particularmente  por Oswald de Andrade.

    A montagem da macroestrutura textual  mediante a  sua  pulverização em  micronarrativas dispersas por homologia  à  natureza  constitutiva  da  memória existencial que reorganiza os dados biográficos de João Ternura da Silva (na verdade, o alter  ego do  próprio Aníbal  Machado)  possibilita  interpretar  essas  microestruturas  como alas  narrrativas  das  escolas  de samba..

    A narrativa do romance não deve ser considerada como um processo de montagem de um puzzle, portanto. A  sua  configuração  textual  não resulta de uma arquitetura radicada numa combinatória de base lógica, cerebral, conceitual, mas da  construção dos  significados  numa totalização lírica dos flashes memorialísticos que agenciam uma tentativa de registro literário da formação sentimental do protagonista.

    O tratamento poético dado à linguagem  explica, parcialmente, o título original  –  João Ternura, lírico e vulgar. Os adjetivos retirados do título persistem no centro do romance: no terreno de uma espécie de refugo do cotidiano onde o narrador flagra o percurso do  protagonista entre o sinuoso e a contramão; e uma  apreensão sempre  poética, sempre  desvelando o real sob uma ótica que derrama sensibilidade sobre os acontecimentos e as personagens sem, no entanto, cair no sentimentalismo piegas que anula esteticamente qualquer lirismo.

    Como aqui  só interessa a análise da extensa passagem referente ao carnaval, agora só  serão abordados os elementos que forem considerados relevantes no desenho da cena carnavalesca.

    O descrição do carnaval do Rio de Janeiro começa  no  Livro V  e termina no Livro VI, ou seja, na última parte. (4)  Consequentemente, não  é  apenas a extensão, mas também a posição que o relato ocupa no interior do romance que  assinala  a  sua  distinção. Sua  perspectiva  é traçada por um João Ternura adulto, em  plena  posse  de sua personalidade, capaz  de vivenciá-lo como experiência real e como desejo existencial.

    O carnaval entra em cena através de um signo  sonoro  –  "um toque de clarim" (MACHADO, 1978, 156).  A  música marca  a abertura da solenidade  (observe-se que  o clarim é um  instrumento apropriado para assinalar o início do cerimonial, ao mesmo tempo em que confere um  ar  majestoso  ao evento) e anuncia a proximidade da suspensão temporal do plano do cotidiano.

    A percepção de sua proximidade remete a noção do tempo cíclico, do  ritual  que  atualiza mediante o  eterno  retorno, as velhas práticas de morte e ressurreição, de renovação da existência. Nas palavras de Bakthin:

                                       As  festividades  sempre  têm  relação  marcada  com  o  tempo.
                                       Na   sua   base, encontra-se   constantemente   uma    concepção
                                       determinada e concreta do  tempo  natural  (cósmico), biológico
                                       e  histórico. Além  disso, as festividades, em todas as suas fases
                                       históricas, ligaram-se a períodos de crise, de transtorno, na vida
                                       da   natureza,  da    sociedade   e   do   homem.  A    morte   e   a
                                       ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os
                                       aspectos marcantes da festa. E são precisamente esses momento
                                       momentos  –  nas formas concretas das diferentes  festas  –  que
                                       criaram o clima típico da festa. (BAKHTIN,  1987, 8)

    Por outro lado, há um tempo  intermediário  sempre  relegado a  um  plano secundário, ora apreendido na dimensão histórica, ora ignorado: é o tempo da preparação, um tempo híbrido, pois significa a permanência do tempo cíclico no  tempo  histórico. Talvez  haja  não  apenas tempos diversos, mas uma natureza temporal  múltipla, capaz  de assumir formas diversas simultaneamente, um tempo quântico, e o devir – sua apreensão pelo campo da percepção  humana e da cognoscibilidade – seja apenas fração de sua natureza que filtra a sua passagem ou duração nos seres.

    Esse  tempo  de  preparação, esse espaço no tempo histórico em que formas carnavalescas são organizadas, é claramente marcado no romance. Corresponde ao final do Livro V e apresenta algumas  características importantes  para  a compreensão da festa na cidade do Rio de Janeiro.

   Os sons que revelam a aproximação dos dias da folia e que ganham intensidade e se propagam pelos  bairros  e  subúrbios revelam o caráter subterrâneo do mundo carnavalesco, revelam a inexistência de fronteiras rígidas no  tempo, pois explicitam  a  presença  de elementos carnavalescos, que só adquirem plenitude  durante o  desfile, em  pleno tempo  do  cotidiano. Os sons percebidos pelo protagonista provêm dos ensaios, exemplo bem expressivo de que a espontaneidade, o improviso, a brincadeira, a festa, a dança, o  canto, tudo  o  que  ocorre  no carnaval também acontece fora do carnaval.

    O ritual carnavalesco exige sacerdotes: os carnavalescos que estabelecem as conexões entre o  tempo  suspenso  vivenciado em um desfile e o tempo histórico dos desfiles anteriores. As quadras das escolas de samba, os clubes e outras  agremiações  carnavalescas  funcionam como os templos dessa prática festiva e mágica. Esse tempo de preparativos pode  ser  denominado  tempo do Barracão.

    O olhar do narrador revela-se atento aos preparativos para a festa:

                                       Dentro dos clubes os magos do carnaval discutiam os planos.
                                       A população fazia economia e acelerava as providências.
                                       As costureiras costuravam e a pele das mulheres arrepiava-se
                                       toda.
                                       As noites da Lapa ficaram mais noites. (MACHADO, 1978,
                                       156)

    O ritmo introdutório ao carnaval  molda um  ambiente  que  opera a transição entre o plano do cotidiano e um mundo mágico.

    A permanência  de  elementos  grotescos, inerentes  à  ambientação carnavalesca,  aparece descrita na cena inicial. Trata-se do caso do desaparecimento dos gatos, cujo pêlo é utilizado para a forração dos tamborins. O fato, já incorporado à mitologia da festa, coloca em cena a figura do malandro, representante sinuoso dos excluídos, e sua luta característica, a capoeira. Na verdade, a sobrevivência das maltas de capoeiras, que  sempre  participaram  de  todas as celebrações coletivas realizadas na cidade do Rio  de  Janeiro (exibindo seu poderio, inclusive, na esfera política), é  representada  não  somente  pelos  movimentos do mestre sala, mas também pelos passos incorporados aos movimentos do samba.

    Em outros momentos, as preocupações  são  mais  prosaicas. As  mais  angustiadas  exprimem receio de não realização do carnaval ou com o a possibilidade de não obtenção de êxito pessoal durante o festejo. À luz dessas inquietações, o acompanhamento das previsões meteorológicas adquire  um grande  interesse, torna-se  um  dado  imprescindível  à  programação coletiva e individual. O  mau tempo, por conseguinte, é um castigo dos deuses, uma punição pelos pecados, uma prova de  que  os  excessos e misérias do cotidiano foram tão desproporcionais que será  negada à humanidade a  licença  anual  de alguns  dias  de  caos e  júbilo. A preocupação com  o  sucesso  individual pode ser comprovada com a consulta a todas as formas de adivinhação, representadas no romance por consulta a uma cartomante. Por ter o carnaval uma caráter imprevisível e anárquico, o folião procura assegurar-se de que na festa verá cumprida toda a expectativa de realização plena.  

   Esses preparativos vêm entre acenos de felicidade e promessas de um mundo  extraordinário: “Vais ver como a cidade treme fora dos gonzos.” A cidade  transforma-se em uma  outra dimensão da existência: o delírio – associado à sensualidade de  corpos  semidespidos  e  à liberação dos gestos da carga de automatismo. 

    Na narrativa de Aníbal Machado, há a irrupção de múltiplas vozes, além da voz do narrador e a do protagonista. Cada trecho possui uma rubrica que funciona de modo similar ao de nome de capítulo. Mesmo os quadros compostos por uma frase curta obedecem a  esse  princípio organizacional. Se a hierarquia  discursiva não é  abolida, ganha uma multiplicidade de focos, como  se o relato fosse uma produção coletiva de caráter polifônico concebido de maneira a reproduzir o entrecruzamento de vozes anônimas constitutivas  da  linguagem  carnavalesca.                            

    Em  João  Ternura  a  técnica  narrativa  dá  a alguns quadros autonomia, ao propiciar-lhes  leitura independente do conjunto de microtextos. Apesar disso, todas as vozes continuam subordinadas a uma voz maior – a do narrador – que empresta a todas as outras as máscaras de seu discurso: o lirismo difuso, a distorção surrealista, a linguagem irônica e o olhar líbertário.

    O carnaval, propriamente dito, surge no romance por intermédio de uma frase incendiária: “– Abaixo a lógica! ” (MACHADO, 1978, 161) É uma verdadeira declaração de guerra ao bom senso, à razão instrumental, ao protocolo do cotidiano. Proferida por um indivíduo fora de  sua  condição  natural – um bêbado – em um lugar secundário – um beco, exibe as marcas de  um  reino excluído, transformadas em signos de não-valor, formas insignificantes do cotidiano. Portanto, seu caráter transgressor é radical. Não é  à  toa que a cena seguinte, na qual João Ternura mergulha na dança, é denominada curto-circuito: apaga-se  o  plano da  racionalidade, acende-se  o campo das sensações corpóreas.

    Após o grito  de  guerra  inaugural, surge  uma  prece – “Oração da Praça Quinze” –, na verdade uma  mistura  de  pedido de compreensão e proteção divinas (o orador dirige-se com grande familiaridade ao Cristo, pede-lhe que feche bem os olhos e só os abra na  quarta-feira de cinzas), de justificativa (argumenta que os excessos devem ser compreendidos  como  um prêmio aos sofrimentos de todos os outros dias)  e de  exaltação ao  samba, ao  padroeiro da cidade, ao amor e à democracia convulsiva.

    Aparentemente trata-se de mais  um  recurso estilístico empregado pelos modernistas. Insulada  no  universo  carnavalesco, entretanto, a oração atualiza  formas medievais de literatura paródica e semiparódica nas quais a cultura popular criticava o discurso da cultura oficial.

    Se a Oração da Praça Quinze não toma por modelo uma forma  canônica, parodiando-a diretamente, a sua estrutura revela ruptura com o código solene do discurso religioso, uma vez que dirige-se a Cristo (não ao Cristo transcendente, mas a sua versão  postalizada  de  estátua símbolo do Rio de Janeiro), ordenando-lhe gestos  e  intenções, adota  uma  perspectiva  intimista anuladora de qualquer relação hierárquica, além de disseminar no enunciado críticas  à estrutura social, aos problemas econômicos e ao comportamento popular. Por essa última característica, formula uma espécie de síntese do brasileiro.

    O orador anônimo, como se estivesse investido na condição de voz oficial do carnaval, faz um convite aberto a todos:

                                   Esculhambatrizes    do    Mangue, curradores    da    Zona    Sul,
                                       esmolambados   das   favelas   –   vinde.  Estudantes,  caixeiros,
                                       punguistas, mulatas de  bunda barroca, maconheiros, cafajestes,
                                       marafas,   mandingueiros,  bambas    do    morro,   empresários,
                                       funcionários,   ferroviários,   negocistas,   vigaristas,  e   demais 
                                       ários   e   istas e pederastas  –  chegou  a  hora!  E por que não
                                       vocês   também, esquizofrênicos  e  melancólicos, enfarados  da
                                       vida?   Para  espiar  ao  menos...   Velhos, paralíticos, cardíacos,
                                       barnabés, balzaquianas  e  marechais  de pijama  –  todos para a
                                       rua!  E  vocês   também, debutantezinhas   de   pés   mimosos  e
                                       curvas   suavinas!  Mas  não  exagerem  nos   remelexos   que  o
                                       muito rebolar compromete a alma. (MACHADO, 1978, 162)

    Após esse  discurso  invocatório, ‘oficial’ aos olhos do protagonista, outro orador entra em ação e produz um  discurso hilário, bizarro, ilógico. A  sua absoluta falta de sentido significa que a festa começou  de fato, pois a  própria linguagem é tomada como objeto de sátira, profanada, ridicularizada, através da supressão dos nexos de uma terminologia  culta e sofisticada, cuja desarticulação no espaço carnavalesco produz um efeito cômico:

                                   (...) eu  estava   apenas    fundamentalando.    Beatrização    do 
                                       prostituário, por  quê?  Todaviísmos...  Freud  chicoteado  pelos
                                       parentes?     Flagelação     inoperante...    E    por    que   não    a 
                                       maconhificação   das   consciências, uma    vez   que   ao   radar
                                       perceptivo escapa  o  intravermelho  da finalística?  Mas nunca,
                                       ó    meu   povo,  a   nadificação   subjacente    na     prolongadez
                                       de  filas  e  filas desesperançosas  quando a  própria  ondulância 
                                       genética      reverte      em      vivências      configuradoras      da 
                                       infraestrutura. Todaviísmos, repito... ( MACHADO, 1978, 164-
                                       165)
  
 O carnaval manifesta-se também na linguagem: nas piadas, trocadilhos, obscenidades, excomunhões, xingamentos, paródias, construções sem nexo, falas invertidas  (adultos falam  como crianças etc.). Ou seja, tudo aquilo que é  reprimido  linguisticamente  pode  aparecer  no  período momesco ao lado dos códigos canônicos.

    A posição do tribuno desse amontoado de absurdos, na garupa de uma estátua do  General  Osório, já revela o tom de pândega retórica como pôde ser observado na passagem transcrita acima.

    Todos os discursos são permitidos, embora nenhum seja aceito. Por essa razão os dois primeiros oradores são lançados ao mar.

    Não  é  de  se estranhar, destarte, a manifestação discursiva de recalques e ressentimentos, uma vez  que  o folião, livre de  todas as  amarras, pode exprimir-se sem rodeios, sem o limites da sujeição à cidadania. A radical  liberdade carnavalesca, todavia, anula  a  violência  de qualquer denúncia, por mais contundente e explosiva que seja, dissolvendo-a  no clima de  júbilo e riso generalizado. Por essa razão, os apelos esquerdistas de um anônimo  radicalizado, exortando a multidão a livrar-se de vários tipos negativos – “os escroques  de  alta  patente, os latifundiários, os picaretas, os sanguessugas do povo. (...) os tapeadores, os negocistas, os fascistas, os  palhaços do civismo, os  tubarões  dos  lucros  extraordinários!” (MACHADO, 1978, 165)  – perdem toda o vigor revolucionário e não encontram eco: são lidos como expressão carnavalesca.

    A continuidade dos mestres da eloquência  popular é assegurada  por outra  voz  anônima, cuja  proposta consiste em salvar o Brasil por intermédio da valorização da pesca. Apesar de conter um plano lógico, a solução pelo peixe também se insere no clima de galhofa  e  ironia carnavalesca, principalmente em função do desfecho estapafúrdio: a platéia exige, em  clima caricato, a distribuição de tarrafas, anzóis e outros aparelhos de pesca por parte do governo.

    Por vezes surgem microdiscursos, sintéticos, críticos  e  ecológicos, reveladores de que, se a realidade carnavalesca subtrai-lhes o rigor, não suprime totalmente  a  ideologia  nostálgica e regressiva que os alimenta:  “– Senhores, mais  vacas  e  menos chaminés! Chega de arranha-céus! Chega de geometrias! Chega de asfixia!” (MACHADO, 1978, 167)

    Os  discursos  prosseguem  num  plano  rápido, retratando a  intensidade e a velocidade dos movimentos  carnavalescos. Dentro  dessa  perspectiva, não causam  estranheza  as  palavras proferidas por um indivíduo vestido em um amplo paletó, dizendo-se um fantasma residente nos arquivos do Instituto Histórico. O enunciado denota uma leitura crítica da  historiografia brasileira. Os personagens históricos são flagrados em cenas de um cotidiano  que  esvazia  a monumentalidade com a qual são revestidos. É uma releitura  popular da  história: em vez de um D. João VI responsável por atos progressistas no Brasil, retrata monarca no  ato  de  chupar uma coxa de galinha; D. Pedro I não é exaltado como o heróico autor da  independência, porém como um Don Juan tropical.

    Um cômico patético impregna a cena do próximo orador. Sem conseguir se fazer ouvir no meio da algazarra, começa a xingar a todos. A platéia, um público  majoritariamente  feminino, exulta com  o  comportamento  do  tribuno devido a extrema beleza do rapaz, ao  mesmo  tempo em que não manifesta o menor  interesse  por suas palavras. Quanto maior  é  a  intensidade dos impropérios, maior é o entusiasmo do público que reage furiosamente  à   iniciativa desastrada de alguns homens de suspender a fúria declamatória do bonitão.

    À semelhança de  A morte da porta-estandarte, concepções estereotipadas sobre o carnaval também circulam no meio dessas vozes que montam o mosaico  carnavalesco.  No  agradecimento de  um  professor de  uma universidade norte-americana, a mulata é exibida como um dos estereótipos através dos quais o Brasil é percebido. Ele agradece aos  brasileiros  pela invenção da mulata. A visão caricata é reforçada pela presença, na platéia,  de portugueses entusiasmados com suas companheiras  mulatas – representação estereotipada do mito de democracia racial em terras tupiniquins tão recorrente na obra de Gilberto Freyre.

    A narrativa não trabalha apenas com a exposição oral, tanto que João Ternura é presenteado com  um  bem  humorado  documento  de  protesto, redigido por  fetos: é o Manifesto dos Não-Nascidos. Inserido no romance como nota de rodapé, o texto configura um relato à  parte, destacado, logo expressa o deslocamento da escrita  em  tempos  de  folia, além  de, numa perspectiva irônica, representar uma sátira  velada  à  proliferação e  ao  esvaziamento  dessa modalidade textual, usada à exaustão por modernistas, vanguardistas e políticos brasileiros.

    Os comícios farsescos reaparecem na Cinelândia. Dessa vez Josias, um dos  interlocutores do protagonista durante a folia (juntamente com Arosca, Manuel, Matias e Pepão),  no  vértice de uma pirâmide humana, lê um telegrama  enviado ao futuro. O teor da mensagem explicita uma clara consciência social, alinhada  às idéias progressistas.  À semelhança do  Manifesto dos Não-Nascidos, encaixa-se  no  romance em uma extensa nota de rodapé, numa rígida delimitação denunciadora de seu  caráter  deslocado  no  universo  carnavalesco. Reforça, mediante esse recurso estilístico, a compreensão de que  a  linguagem  da  folia  é  essencialmente sonora;  a  escrita só adquire valor se lida em voz alta ou cantada. Consequentemente, a sua multiplicação em folhas  impressas  fere os  princípios da  festa ao desviar o riso para o plano da consciência, ou seja, anula-o: a única interdição efetiva do carnaval. (5)  Torna-se um ato subversivo não só da sociedade, porém  do  próprio  mundo carnavalesco. Isso  explica  o sinal de perigo e a intervenção da polícia.

    Não  existe  lugar para declaração de princípios nem literatura programática durante o carnaval. É um momento impróprio para fazer propaganda de idéias, por melhores que sejam as intenções. O telegrama só poderia surtir efeito em outra ocasião, em que pese todo o conteúdo politicamente correto:

                                       Estamos  fazendo  força  para  te alcançar  stop  demora  motivo 
                                       últimas  resistências  antiga estrutura social bem como safadeza
                                       má-fé  demagogia  stop  índice boçalidade ainda impressionante
                                       stop  impossível eliminação total imbecis  stop  prazer constatar
                                       bons resultados campanha contra  superstições preconceitos que 
                                       retardam nosso  progresso  stop  condenamos  exercício abusivo
                                       da  inteligência  pela  inteligência  como  desintegradora caráter
                                       além de vício masturbatório stop (...). (MACHADO, 1978, 177)

    O  último  momento  do  primado da oratória realiza-se através da intervenção de mais um tribuno anônimo, segundo  o  qual  o problema crucial do Brasil é o fim do silêncio. Seu discurso assemelha-se  a um comício caricato no qual é apresentado o programa satírico de uma campanha farsesca. Toda a sua proposta pode ser resumida em uma frase: “Eu proponho, para o próximo verão, um quebra-quebra geral de todos os alto-falantes do Brasil”.(MACHADO, 1978, 180)  O  orador faz uma crítica direta à  influência do rádio, principalmente, e da televisão em nossa  cultura. É uma voz do passado, insatisfeita com o progresso. Esse traço saudosista, aliás, é recorrente no universo do carnaval, sempre dando uma dimensão mítica e paradisíaca aos carnavais dos velhos tempos.

    As outras vozes produzem enunciados presos ao enredo em mosaico da obra, não desempenham a função marcadamente retórica dos quadros destacados na análise aqui empreendida, por isso não foram levadas em  consideração, apesar  da  riqueza  apresentada  sob  outra ótica, assim como também foram descartados dois quadros importantes: aquele em que pontifica o inacreditável personagem Deus e o da surrealista chuva de pastéis.

    Após  a leitura da obra, surgem algumas questões inevitáveis: por que o carnaval é  ficcionalizado como um momento de proliferação de discurso?  Qual  é  a  relação entre carnaval e retórica? Tentar entendê-las é aumentar a compreensão sobre a maior  festa  popular  do  Rio  de Janeiro.

    Embora  professe  uma  visão ingênua, chapliniana, buscando compreensão onde só existe farsa, natural  a  quem está sendo introduzido no reino de momo, João Ternura revela perplexidade com os excessos oratórios.

    Na  primeira  tentativa  de  compreensão, em  uma conversa com Manuel e Arosca, não se chega  a  nenhuma razão conclusiva. Aliás, a  última  frase  do  diálogo  tanto  pode  explicar quanto ocultar  o  sentido  de  qualquer  acontecimento. Funciona, de fato, como um  chavão construído  para legitimar todos os gestos carnavalescos.


                                –  Puxa!  Ainda   tem mais orador. Olha lá, Manuel!  Todo ano é
                                       assim?
                                       – Este ano a safra está sendo maior.
                                       – É a vida difícil  –  explica  Arosca. –  A  fome. Muitos  fazem
                                       discursos   porque  não  podem  pega r em  armas. No fundo é o
                                       que  eles  queriam...  Mas  há  também  os  histriões, alegres  de
                                        natureza. E muitos paranoicos no meio. Enfim, tudo é carnaval.
                                        (MACHADO, 1978, 171)
                                      
    Depois  do encerramento dos discursos, entretanto, há  uma autêntica reflexão sobre o que eles representam. Reunidos, João Ternura, Pepão, Manuel e Josias apresentam diversas hipó- teses para a eclosão de tal fenômeno:

                                   Pepão não achava  que  houvesse  excesso de oradores; ouvia  a
                                       todos  com   prazer;  Manuel   considerava  o   fenômeno   meio 
                                       farsa, meio  pileque  –  coisa  própria de carnaval. Para Josias, o
                                       fenômeno  era   mais   complexo, embora   muito  conhecido:  a
                                       suspensão   provisória  das  proibições  leva  o  povo  a  praticar
                                       tudo  o  que  secretamente  deseja  fazer durante  o  ano; e como
                                       não pode fazer tudo o que deseja  (‘você, por exemplo, Ternura:
                                       nunca  desejou  estrangular alguém, furtar  uma  jóia, levantar a 
                                       saia  de  uma  mulher  na  rua, nunca?’...) contenta-se  em  dizer
                                       uma  boa  parte  do  que  pensa.  Vocês   imaginem  uma múmia
                                       que  se  desprendesse  das   ataduras  e  começasse  a   pular  em
                                       frente  aos  guardas  do  museu.  Que susto para os guardas, que
                                       alegria  para as múmias! Visto a grosso modo, o carnaval é uma
                                       espécie  de  quebra-quebra  geral  nos preconceitos. A moral em
                                       férias. (MACHADO, 1978, 183)

    A explanação de Josias prossegue tocando em alguns pontos sensíveis à formação cultural brasileira, principalmente na extrema fragilidade  diante do  poder de sedução das palavras. Denuncia alguns  preconceitos  que impedem uma  visão  nítida do brasileiro: luxúria, preguiça, inconstância e relação entre trópico e verborragia. O excesso de palavras esgota e anula o conteúdo dos discursos. As palavras adquirem um valor ornamental. O sonho de todo brasileiro,  falar e escrever bonito, equivale a uma metáfora da  fantasia  carnavalesca, nela  as  palavras não buscam nenhuma verdade, apenas brilham como efêmeros paetês.         

    
Sob o signo de Narciso


    Do ponto de vista da presença de elementos constitutivos  de  sua  organização, o carnaval pode ser considerado um autêntico banquete mitológico. Baco, Vênus, Orfeu, Diana, faunos, sátiros, ninfas, entre outras criaturas míticas estão representados, de um  modo  ou  de  outro, nas festas do reino da folia. Essa característica permite estabelecer uma relação entre o conto e os fragmentos do romance analisados, na busca de um processo identitário: o nexo é alcançado sob o signo de Narciso.

    Assim como o carnaval, o mito de Narciso é dotado de uma ambivalência –  entre vida  e morte – inscrita num  tempo originário, cujas marcas foram  apagadas, e perpetuada em um tempo cíclico através do eterno retorno de suas formas originais.

    Narciso não pode ser acusado de amor egoísta, pois não sabe  que  ama  sua  própria  imagem. Está, portanto, além de um auto-erotismo imaturo, o que rejeita é o amor convencional, o condicionamento a um outro imposto por razões alheias  à  necessidade e à vontade individuais. Assume  a igualdade como uma diferença transgressora: a imagem proibida é fonte de fascínio e  perdição. Torna-se um herói cultural  da  humanidade e sofre as conseqüências do ato desafiador dos  regulamentos  olímpicos  ao ser punido com a morte, mas, novamente incontrolável, continua a viver na flor cor de açafrão, cuja corola é cercada de pétalas brancas.

    A beleza, no carnaval, na  mitologia  ou  em  qualquer  outro lugar, é fator de perturbação, provocação, descontrole. Ela, em sua forma maior de  deslumbramento, impede  a  leitura,  a análise, o raciocínio, retira o mundo e os indivíduos dos eixos  ('dos  gonzos',  na  expressão contida no anúncio do carnaval em João Ternura). Associada, então, à alegria, ao prazer e ao júbilo, anula  radicalmente  a  existência legislada por outros códigos necessários à organização social. Sua força é sua fraqueza. Vinga-se  de  sua  impossibilidade denunciando outra: a de plena felicidade no mundo  constituído  por gestos e  práticas dominados por uma legislação que não considera fundamentais a alegria e a beleza, estatuindo  a  hegemonia  de outros códigos, capazes de impulsionar a máquina do mundo no caminho do  progresso  econômico  e  tecnológico, ao  mesmo tempo em que impulsionam os indivíduos à ruína  existencial  e  à uma vida inautêntica.

    Em "A morte da porta-estandarte"  a  perturbação parece nascer de uma natureza transformada  –  o  corpo da operária converte-se no da sambista. O objeto mágico dessa conversão equivale ao lago no qual Narciso bebe a própria imagem. Ele revela o esplendor  e  a  exuberância em  plenitude, suprimindo  a  névoa do automatismo a recobrir o olhar cotidiano, limpando o corpo das imperfeições do mundo das necessidades. Não há poder capaz de impedir a posse do vestuário, pois possuí-lo é assenhorear-se da própria imagem em todas as conotações narcísicas possíveis. O  sambista  assassino – reprodução moderna da ninfa Eco – não consegue suportar a ampliação da amada, pois a descoberta  da  imagem  implica a revelação da autonomia e, uma vez efetivado o encontro entre essência e  imagem, alcançada  a  identidade da porta-estandarte, só restaria ao negro secar de tristeza.

    Não é  a  rosa  no  pixaim  da cabeça da mulata que remete à flor através da qual Narciso é eternizado, mas  o  sorriso, o sorriso da morta, o sorriso da vida, o sorriso do carnaval que se perpetua, pois morre e renasce incessantemente.

    João Ternura é uma exaltação à vida, não há espaço para a morte, a não ser sob a forma de zombaria, como na passagem do homem-féretro e o seu discurso de defunto. Contudo Narciso também  está  presente na valorização (ainda que satírica) da imagem metamorfoseada em discurso. As palavras invertidas, desarticuladas  ao serem  subtraídas aos espaços capazes de fornecer-lhes significados, exibem-se como formas livres, emancipadas  do  valor  de  uso. O humor é proveniente desse deslocamento, à exceção do discurso deliberadamente construído de modo ilógico por um dos oradores.   

    A linguagem múltipla, polifacetada, organiza um  autêntico  desfile  carnavalesco. Nele as palavras são  apresentadas  despidas  do  pragmatismo  comunicativo  que aparece satirizado  mediante  o  recurso  a uma rica tipologia discursiva. Há uma intensa movimentação retórica como se a dança carnavalesca fosse reproduzida por intermédio da rápida sucessão de oradores.

    Narciso, seduzido pelas palavras, deixa-se levar por uma oralidade alucinada e  interminável, conferindo às palavras as marcas de um exibicionismo retórico que traduz  uma  das  características culturais brasileiras: a pompa retórica, o  culto à  palavra, a credulidade com a qual o povo entrega seu destino àqueles verbalizam os seus desejos e sonhos.

    A morte da porta-estandarte e  o  fluxo  discursivo  são desfiles carnavalescos nos quais as personagens podem reunir-se  à  imagem  revelada   não  por um lago, mas pela desalienação dos corpos e da linguagem.


Notas


(1) Sobre  a relação  entre  autores  brasileiros e  o carnaval ver o artigo de Fred Góes - A literatura brasileira e a arte do carnaval. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

(2) Para o estudo das relações entre a casa, a rua  e  o  universo  carnavalesco ver. MATTA,  Roberto  da.  Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia  do  dilema brasileiro2a. ed. Rio  de  Janeiro;  Zahar  Editores, 1980.

(3) Parece extremamente interessante um estudo específico sobre as relações entre a prostituição e o carnaval. Ao que parece a inversão carnavalesca - a troca de sexo nas fantasias, o machão, a mulher-homem etc.-, as figuras da piranha, do gay, do travesti, da rainha, dos portadores de membros gigantescos, da noiva, da virgem, estabelecem a necessidade de uma leitura que só se completa com aquela que as classes conservadores efetuaram de modo depreciativo: a frouxidão dos costumes no carnaval, a ausência de lei, a falta de respeito, a ausência de controle, a baixaria, a nudez, a identificação entre sambista e marginal e entre foliã e puta etc.

(4) O romance João Ternura é estruturado em seis partes, intituladas livro. Apresenta, ainda, um apêndice: O homem e seu capote.

(5) Vale a pena observar que em A morte da porta-estandarte o crime, ato de negação do carnaval, desperta um comentário revelador. As palavras são atribuídas a um membro de um grupo de malandros, de cavaquinho nas mãos: “ – Dor eu não topo, franqueza...  Sou contra o sofrimento.”(p. 231)


 Referências


ARAÚJO, Hiram et et alii. Carnaval, seis milênios de história.Rio de Janeiro: Gryphus,
              2000.
BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento:  o contexto
              François Rabelais. São Paulo-Brasília: Hucitec-Ed. Universidade de Brasília,
              1987.
BURKE, Peter. A  cultura  popular  na  Idade  Moderna. 2a. ed.  São Paulo: Companhia
               das Letras, 1995.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados:  o Rio  de  Janeiro  e  a  república  que
              não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. O  rito  e  o  tempo:  ensaios  sobre  o
              carnaval. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
EULÁLIO, Alexandre. Livro involuntário: literatura, história, matéria & memória. Rio
              de Janeiro: Editora da UFRJ, 1993.
GÓES, Fred. A literatura brasileira e a arte do carnaval. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.
_____. A construção do corpo brasileiro no carnaval. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.
MACHADO, Aníbal M.  A morte da porta-estandarte, Tati, a garota e outras histórias.
             12a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985.
_____. João Ternura. 4a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
PIMENTEL, João. Uma história informal do carnaval de  rua. Rio de Janeiro: Relume-
             Dumará, 2002.
SPALDING, Tassilo Orpheu. Dicionário de mitologia greco-latina. Belo Horizonte:
             Itatiaia, 1965.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura  como  missão: tensões  sociais  e criação cultural na
             Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.
VALENÇA, Rachel T. Carnaval: para tudo se acabar  na  quarta-feira. Rio de Janeiro:
             Relume-Dumará: Prefeitura, 1996.

Rio de Janeiro, agosto de 2003.


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Na cidade dos homens invisíveis *



     O romance Os ratos, de Dyonélio Machado, escrito em 1935, possui uma narrativa densa, na qual o mundo das ruas emerge como um universo de perda e supressão da individualidade. Focaliza o protagonista ─ Naziazeno Barbosa ─ como uma criatura desenraizada, perdida no meio da multidão. A cidade assemelha-se a um monstro devorador dos seres que a viabilizam, assumindo-se, portanto, como espaço de irrealização pessoal. Arquitetura tentacular, submete seus hóspedes a um rol interminável de pequenas tarefas inexpressivas e amesquinhadoras da natureza humana. O fracionamento da personalidade, fruto da redução da existência a uma lenta, inexorável e minuciosa elaboração de um complicado jogo de diminutos atos de sobrevivência, surge como consequência inevitável de arquitetura de estrutura labiríntica, engenharia desenhada para a sua perda. A dimensão microscópica  do processo de perda em que todos atos dissolvem a possibilidade de qualquer  caminho reduz pulveriza a consciência, fazendo-a se dispersar na nebulosa de ações menores destinadas ao prolongamento do estado de nulidade..

     As primeiras linhas da narrativa já assinalam a presença de poderosa pressão social: a vizinhança, testemunha das situações de conflito vividas pelo casal Naziazeno e Adelaide. Pressão suficientemente forte para alterar o comportamento de ambos, como fica explícito na passagem: "Olha, que os vizinhos estão ouvindo” (Machado, 1984, p. 9).

     Tímida tentativa da mulher de contornar as brigas conjugais. Preocupação voltada para a realidade externa, pois o mal vem de fora. Não só possui caráter externo: sua exterioridade é acrescida de um caráter rotineiro ─ o leite diário necessário à sobrevivência do filho. Aqui surgem as duas questões fundamentais que alimentam a tessitura do romance: 1) o mundo exterior ─ universo das ruas que trazem sofrimentos e provocam a escravidão daqueles que as percorrem; 2) o mundo interior ─ a psicologia do ser que habita a cidade, apresentado com um perfil destituído de energia, desfibrado, cuja ininterrupta mobilidade física não possui, no entanto, equivalência psíquica, sua personalidade é antes de tudo marcada por irritante falta de iniciativa, inscrevendo-o no mesmo círculo do autômato, criatura desenraizada no chão social, incapaz de agir, dotado de uma natureza flutuante, desprovida de autonomia. Seus atos e intenções são conformados pela multidão que o cerca e conduz.

     A tensão entre o casal e a vizinhança reforça o conflito entre Naziazeno e a esposa. Esta tece ponderações que o puxam à realidade, tenta despertá-lo para a ação, pois é justamente a imobilidade a causa de todos os problemas enfrentados pelo casal. Contudo, Naziazeno opõe-lhe tenaz resistência sob a forma de evasivas minimizadoras dos problemas. Valendo-se dessa estratégia, subestima a ameaça feita pelo leiteiro, atenuando os efeitos negativos da dívida com o argumento de que a tarefa de cortar um fornecimento é muito difícil, ou dissimula não ter escutado o leiteiro proferir a palavra ‘abuso’; ou joga a culpa do mal que o assola na mulher a quem acusa de fazer um escarcéu por causa de algo sem maior importância. Às vezes lança mão de acusações injustificadas, como a de que há muito desperdício, muito esbanjamento em casa. Há, ainda, a relativização da perda do gelo e da manteiga (fato motivado pela miserabilidade do casal), ambos colocados na categoria de supérfluos. Ou seja, tenta de todas as maneiras esvaziar a gravidade da situação em que se encontra, pensa, assim, eximir-se de sua responsabilidade.

     A linguagem é uma tática defensiva em que o sujeito assume caráter neutro, código justificador de passividade, uma vez que se subtrai aos atos pelos quais é responsável. Para tudo existe uma explicação lógica capaz de isentá-lo de qualquer sanção moral e transformá-lo em vítima: seu padecimento é sempre injusto e resultado de algo que escapa ao seu campo de ação. As dificuldades enfrentadas não são percebidas como a consequência natural do "deixar acontecer".

     A visão dirigida à realidade circundante, ao longo do segundo, capítulo possui qualidades inerentes ao voyeur. Naziazeno observa, projetando-se na imagem que vê, conserva, contudo, sua impotência para operar a transformação e a superação de seus problemas econômico-existenciais.

     Contraparte à sua constituição psicológica, Naziazeno revela, no plano objetivo de sua existência, ser a continuação e a degeneração da figura do agregado (1), figura sempre na órbita de outros seres. A perda da autonomia vem sob a forma de um movimento que se dá mediante um arrastão exercido por uma série de circunstâncias que o conduzem aleatoriamente. O protagonista, às vezes, revela consciência embrionária de sua debilidades: "Passa-lhe pela cabeça que vai assumir a atitude de cínico e isto pouco o perturba" (p. 21); "Ele precisava de um ser forte a seu lado" ( p. 26).

     O que não o impede de procurar fora de si explicações, ou atenuantes, para tais fraquezas: "A sua mulher encolhida e apavorada é uma confissão pública de miséria humilhada, sem dignidade ─ da sua miséria” ( p. 26).

     Atribui, dessa maneira, à mulher uma timidez e falta de energia que são atributos dele. Mais um dos inúmeros mecanismos de fuga com os quais se amolda à sujeição em que vive.

     A ameaça do leiteiro é um leitmotiv a martelar todo o périplo do protagonista. A descrição da realidade objetiva do mundo que o cerca e o envolve no interior do bonde, um dos meios de peregrinação de que se vale, serve de contraponto a um estado mental extremamente confuso, no qual se embaralham noções de uma geometria desarticulada com uma memória rarefeita, lacunosa. O ponto de vista expressa com clareza a sua posição de voyeur. O levantamento dos seres à sua volta é sempre por oposição a sua postura medrosa, de homem encurralado. O olhar da Naziazeno observa o mundo "de baixo". Importante observar a série de associações sonoras, detonadas pela campainha do bonde, cujo som evoca a campainha do diretor, esta, por sua vez, remete à ameaça efetuada pelo leiteiro. Tais associações revelam o barulho como elemento perturbador, convertem a palavra ameaçadora, a ordem e a cobrança num som metálico, desprovido de humanidade. Fora do bonde, Naziazeno julga-se solto no seu ambiente natural:

     Longe do bonde (que é um prolongamento do bairro e da casa) não tem mais a “morrinha" daquelas ideias... Naquele ambiente comercial e de bolsa de mercado, quantos lutadores como ele!... Sente-se em companhia, membro lícito duma legião natural (p. 29).

     A ilusão de liberdade conferida pelo espaço amplo e aberto é negada pela maneira através da qual se inscreve no espaço social. A instituição de um código crítico capaz de registrar suas numerosas contradições é produzida a partir da multiplicação de termos utilizados entre aspas ou grifados, vocabulário revelador de uma contra-escritura, usada para reforçar o sentido das palavras, destacá-las, mas também dotada de um significado maior, voltado para uma pontuação crítica da narrativa e para a afirmação de um clima acentuadamente criado sobre a indeterminação de atos e ideias.

     Espelho no qual contempla seus gestos, Duque, alvo de toda a sua admiração, é uma criatura das ruas. Ele é caracterizado como "...o agente, o corretor da miséria. Conduz o negócio serenamente. Tem a propriedade de despersonalizar a coisa (p. 31). Mais adiante esse traço é reforçado: "Ele olha muito, ouve muito, aparece muito, mas só diz uma ou outra coisa, só o necessário e o viável" ( p. 31).

     A relação entre ambos reveste-se de características próprias ao relacionamento entre dominante e dominado: "Mas como acompanha com solicitude o amigo em situação difícil ao agiota ou à casa de penhores. É ele [Duque] quem fala" (p. 29).

     As qualidades de Duque estão todas relacionadas à habilidade na arte da negociação, à capacidade em conseguir "cavar", "dar um jeitinho", resolver os problemas de ordem financeira através de uma série extensa de recursos e expedientes. Por isso é ele quem conduz, determina os passos, o traçado, o caminho de Naziazeno. Mais ainda: é quem fala, ocupando a voz do outro, executando ações e elaborando pensamentos. A Naziazeno resta apenas um caminhar ao lado, mudo, ou um andar atrás, solícito e aéreo.

   Ao fazer circular irresolução pelas ruas, Naziazeno adquire feições pegajosas, transforma a sua apatia em ação viscosa. Daí a valorização tática das formas verbais de significado parasitário: "agarrar-se", "morder" e outras. O ato de pedir adquire uma coloração violenta. Internamente, obriga o interlocutor a resolver seus problemas. Cerca-o, produzindo um assédio insuportável para as vítimas de suas investidas. Traça, via imaginação, todas as ações de que não é capaz, criando um mundo dominado pela fantasia, saída à complexidade de um real que o amedronta.

     A multidão que transita pelas ruas ora é encarada como abrigo, refúgio, proporcionando ao ser, através do contato físico com os demais seres, seu retorno a um estado natural, ora, no entanto, surge como algo assustador, parecendo-lhe inimiga; um monstro no interior do qual todos os indivíduos se perdem, todas as ideias são apagadas pela despersonalização, todos os gestos esvaziam-se de individualidade. Essa mudança brusca de sensações qualifica o percurso de Naziazeno como oscilante, traçado humano permeável ao movimento das ruas, exageradamente poroso às vozes que nelas circulam desencontradas, tumultuadas, fluídicas. Caráter não totalmente desconhecido à própria personagem: "...não era raro vir-lhe um remorso, uma acusação contra si mesmo, contra esse espírito inferior de esquecer prontamente, de 'achar' no ambiente aspectos compensadores, quadros risonhos" (p. 36).

     Em suas andanças através de bancos, cartórios, cafés, repartições, casas de penhores e antros de agiotas, há todo um complexo mental que institui numerosos filtros redutores dos efeitos negativos de suas ações ou daquelas que o atingem, são eles que operam a conversão das negativas numa encenação de conveniências, num teatral jogo de máscaras. A linguagem do próprio romance é dotada de propriedades cênicas. Código teatral cuja marcação é traçada pela imaginação de Naziazeno. Há inúmeros desenhos mentais nos quais encena diálogos, pedidos, recusas. Palco de desejos e impotência, o imaginário teatraliza a vida (há mesmo momentos em que Naziazeno ensaia concretamente o modo e o discurso de abordagem de suas vítimas). Os últimos capítulos do livro demonstram cabalmente essa perspectiva. Imerso na noite, estendido sobre a cama, habitando uma invisibilidade relativa e radicado numa imobilidade momentânea, Naziazeno dirige o espetáculo dos ratos, dando-lhe a dramaticidade necessária. Por isso: "De quando em quando 'vê' a cozinha... a mesa, com a panela e o dinheiro, no meio dum silêncio, daquela atitude imutável... esperando..." (p. 150).

     Esse olhar apreende o mundo em minúcias, agarrando-se desesperadamente a cada detalhe, sem ousar alterá-lo em nada: "Enche-o de uma emoção triste qualquer mudança, qualquer nova situação. Quer as coisas contínuas, imutáveis..."( 1984, p. 70)

     Desenvolvido em torno da dívida contraída perante o leiteiro, Os ratos incursiona pelas ruas a partir de um ângulo diferente do apresentado em outros romances urbanos produzidos também na década de 30, a exemplo de Parque industrial, de Pagu, e Marafa, de Marques Rebelo.

     Parque industrial é um "romance proletário" e partilha com o ciclo de romance nordestinos da época o mesmo clima de denúncia, atingindo uma dimensão panfletária em que circulam personagens saídos do mundo fabril. O percurso operário, o trajeto da massa explorada e do lumpen-proletariat fundem-se ao do narrador que assume integralmente a ideologia das personagens comunistas. A questão da topografia social, por intermédio da qual a cidade é apresentada como geografia da exploração, reduz o rigor da narrativa, preocupada em excesso em constituir-se numa escrita de convencimento, preocupada em operar a conversão do leitor à determinada ideologia ou pelo menos provocar indignação com as questões suscitadas pela obra. Excessivamente tributário dos romances de tese naturalistas, o livro sofre um  engessamento ficcional, responsável pela diluição das passagens mais ousadas.

     Marafa, ao contrário do romance anterior, é um romance de linhagem, retrato de costumes descendente de Manuel Antônio de Almeida e de Lima Barreto. Possui dois planos na narrativa: Teixeirinha e o bas-fond versus Tommy Jaguar e a pequena-burguesia em ascensão. Esse jogo de claro e escuro, essa impossível convivência entre a cidade diurna e a noturna é o centro de gravidade da obra. A cidade é o espaço do confronto, lugar de embates, onde a malandragem, vista como a encarnação do mal, e o bom-mocismo, exaltação dos atributos pessoais dos que vêm de baixo, na tentativa de romper a barreira da miséria, excluem-se mutuamente.

     Já em Os ratos a multidão é considerada massa humana que cerca, imprensa, leva o indivíduo, transformado em criatura carente de autonomia, com os seus passos marcados no mesmo compasso dos outros, consequentemente mecanizados, automatizados. Não há a contínua reinvenção do mundo, a diária criação de fatos e ideias. A intensa e incessante movimentação de Naziazeno é um caminhar em círculos voltado para um ponto fixo. A realidade é algo a ser mordido, sugado. Daí a aderência pegajosa aos seres que a constituem, deslizando inconscientes pelas ruas. Morder é arrancar a energia do outro. É, ainda, sinônimo de "cavar", gesto voltado para baixo, buraco feito no chão, ação que rebaixa e anula a criatura, expediente misto de esperteza vagabunda e degradação moral. Os prováveis salvadores de Naziazeno são desentocados, arrancados de suas casas, de seus negócios ou de si mesmos, e chamados resolver o "caso". Romaria abúlica, a jornada é uma expiação pública, desolada mendicância feita a amigos e conhecidos. Então, a cidade é o espaço de uma dança sombria e demoníaca, um balé de andrajos e omissão, cujos movimentos circulares, centrados num ponto imóvel, conduzem ao abismo no qual sucumbem razão e emoção.

Estranheza e invisibilidade

     Em Modernidade e ambivalência, Zygmunt Bauman analisa o surgimento de uma categoria nova a partir da oposição e da relação assimétrica entre amigos e inimigos: aqueles, criados pelo que denomina pragmática de cooperação: estes, construídos pela pragmática de luta. A nova categoria é formada pelo estranho, elemento que desmascara a constituição antitética que cria a rede de relações sociais. O estranho é considerado como o principal representante da família dos indefiníveis, unidades que escapam ao poder da racionalidade ordenadora e legitimadora do sentido do real.

     O estranho possui uma natureza híbrida:

     O estranho entra no mundo real e se estabelece aqui, tornando-se assim relevante − ao contrário daqueles meramente 'não familiares' − quer seja amigo ou não. Ele entrou no mundo da vida sem ser convidado, com isso lançando-me para o lado receptor da sua iniciativa, transformando-me no objeto da ação de que ele é o sujeito − tudo isso, lembremos, é marca notória do inimigo. Mas ao contrário de outros inimigos 'sinceros', este não é mantido a uma distância segura nem do outro lado da linha de batalha. Pior ainda, ele reivindica o direito de ser um objeto de responsabilidade − o bem conhecido atributo do amigo (BAUMAN, 1999, pp. 68-69).

     No drama urbano pequeno-burguês há sempre um componente híbrido: o resultado da luta, por vezes desesperada, entre a fuga da ameaça frequente da proletarização e a aspiração de ingresso numa ordem superior, representada pelo universo burguês, cria um indivíduo cuja a existência é modelada por forças sociais centrífugas. Portanto, o estranho representa uma síntese de elementos incongruentes e uma alteridade ressentida de proximidade e distância. Assim, o estranho é um desajustado incômodo e incontrolável:

     O pecado irredimível do estranho é, portanto, a incompatibilidade entre a sua presença e outras presenças, fundamental para a ordem do mundo − o seu assalto simultâneo a várias posições instrumentais cruciais ao esforço incessante de ordenação (BAUMAN, 1999, p. 70).


     Exemplo ilustrativo da recusa do estranho em permanecer confinado em territórios longínquos e demonstrar sua natureza perturbadora é o encontro/desencontro entre o protagonista de Os ratos e o diretor da repartição onde exercia funções subalternas.

     O primeiro plano para pagar a dívida de cinquenta e três mil réis com o leiteiro foi solicitar o favor ao superior hierárquico que já o socorrera com a quantia de vinte mil réis em outra ocasião: quando acabara de ser nomeado e ainda não o conhecia, o que deixa bem nítida a condição de eterno pedinte do protagonista. A atitude de Naziazeno, contudo, é ambivalente, pois tem consciência da má fama que o acompanha:

     Sim, Naziazeno sabe que os empregados mais graduados troçaram respeitosamente o diretor, que este (que é um moço) meio encabulou, alegando que não conhecia o caso, que era ainda estranho ao meio, que "noutra" não cairia, pois era realmente qualquer coisa assim como censurável estar cultivando esses exemplos de desregramento ou de perdularismo sistemáticos... ( p. 29).

     Porém não desiste de "agarrar-se" à lembrança do antigo gesto de solidariedade. A escolha do verbo pronominal reforça a construção de uma figura parasitária, desprovida de luz, de vontade própria, de perspectivas ou de projeto de vida, voltada de modo exaustivo e exasperante para a superação de estreitos limites da existência. A atitude do pobre barnabé é a de um animal encurralado à espreita de sua presa. Vive a angústia da espera: cerca, indaga, procura encontrar o diretor. Há um caráter teatral na saga de Naziazeno: ensaia seus atos e discursos, ao mesmo em que constrói no plano imaginário a cena em que pretende inserir seus gestos. A todo momento "vê", "olha" ─ constrói no palco das ideias aquilo que não consegue realizar na prática.

     Quando surge o momento propício à abordagem, transparece a total falta de estratégia de Naziazeno ─ mesmo tendo noção da sua fama de pedinte na repartição em que trabalha, não consegue arrancar um centavo do chefe. O resultado só podia ser desastroso. A reação marca os limites da complacência burguesa:

     − O sr. pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? (O diretor diz essas coisas a ele, mas olha para todos, como que a dar uma explicação a todos. Todas as caras sorriem.) Quando o seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude. Não me peça mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho as minhas, e é o que me basta... (Risos.) ( p. 47).

     A negativa corresponde à incapacidade do personagem conseguir articular a solução de seus problemas financeiros mediante a elaboração de um plano próprio, resta-lhe, assim, buscar o auxílio de quem possa encontrar uma saída para ele. Como um autômato, procura um messias para os males imediatos. A resposta do diretor ecoa em seus ouvidos, recorre mais uma vez ao recurso do esvaziamento do peso das palavras, só que desta vez o esforço é frustrado; acaba por admitir que a palavra e a figura do diretor esmagaram-no.

     A resposta do diretor se constrói com um olhar destinado à plateia, desviado, portanto, do pobre interlocutor, anulado socialmente e tornado invisível, apesar de ser uma voz entre aqueles indivíduos.

     Parece faltar a Naziazeno a compreensão de algo explicitado didaticamente na recusa do empréstimo: é um ser portador de todas as características do estigma:

     O conceito [de estigma] pode ser aplicado mais amplamente a todos os casos quando uma característica observável − documentada e indiscutível − de certa categoria de pessoas é primeiro salientada à atenção pública e então interpretada como um sinal visível de uma falha oculta, iniquidade ou torpeza moral (BAUMAN, 1999, p. 77).

     A resposta é o julgamento definitivo, já antecipado pela imagem de Naziazeno junto aos colegas de repartição: uma espécie de pedinte profissional. A pobreza é a marca de exclusão social. A desastrosa iniciativa de Naziazeno revela o processo de segregação:

     A arte do desencontro é primeiro e antes de mais nada um conjunto de técnicas que servem para desertificar a relação com o Outro. Seu efeito geral é uma negação do estranho como objeto moral e sujeito moral (BAUMAN, 1999, p. 72).

     A existência do estranho é opaca, sem transparência. Naziazeno, na qualidade de estranho, é o seu próprio problema. Seu poder de afirmação, sua condição humana, seu percurso profissional são deslegitimados e declarados aviltantes.

     O processo de degradação é progressivo. Detonado pela cobrança do leiteiro, aumenta com a negativa do diretor da repartição e torna-se maior ainda, após a atitude condescendente de Costa Miranda que lhe empresta cinco mil réis com soberba indiferença ─ mais para livrar-se do intruso ─ , quando Naziazeno decide procurar o Dr. Romeiro: a cena é grotesca, porém expressa com clareza a estratégia do pobre barnabé. Modesto, insinua pedir um favor, ao mesmo tempo em que se desculpa por ainda não haver pago um vale já vencido. Expõe seus problemas num tom de crescente desespero, apesar das constantes negativas do interlocutor. A obstinação do protagonista é tamanha que o comerciante tenta despedir-se, todavia Naziazeno põe-se a caminhar na mesma direção. Resta ao dono da grande casa atacadista correr para livrar-se do assédio, tão insuportável que o Dr. Romeiro chega a pegar um bonde em movimento. Essa frustrada tentativa representa o último ato de Naziazeno, diante do completo malogro de todas as suas iniciativas ─ pensadas ou fortuitas ─, perde a autonomia de ação e toda a responsabilidade para a resolução do seu problema é transferida para Duque, personagem que só participa da trama romanesca a partir do esgotamento dos recursos do protagonista.

     Naziazeno anula-se totalmente, segue a reboque do amigo à procura de todos agiotas conhecidos ─ Rocco, Assunção, Zeferino, Martinez etc. ─ com o propósito de, mediante a negociação de um anel de bacharel pertencente a Alcides, outro companheiro de infortúnio, conseguir recursos suficientes para quitar a dívida com o leiteiro.

     Graças à habilidade de Duque, finalmente Naziazeno pôde voltar para casa. O retorno ao lar é vivido como um triunfo: conseguir o dinheiro transforma-o, faz com que cresça diante da mulher e confere aos gestos, reveladores de uma situação econômica insustentável, uma grandeza, uma paz e uma harmonia quase burguesas: pela primeira vez na narrativa o protagonista parece ter um pouco de tranquilidade.

     A aparência de calma é desmascarada pela vigília de Naziazeno, espécie de sonhar acordado capaz de misturar a realidade noturna (a ação dos ratos no interior da casa), às reminiscências do dia (a circulação entre tantos outros ratos ─ não é outra a razão de o narrador animalizar personagens atribuindo-lhes focinhos em vez de rostos) e à consciência insone (a anulação do ego devorado por seus demônios - ratos de outra espécie).

     O aparente final feliz, afinal o protagonista consegue alcançar meu objetivo modesto e banal:


     Depois, ele ouve que lhe despejam (o leiteiro tinha, tinha ameaçado cortar-lhe o leite... ) que lhe despejam festivamente o leite. (O jorro é forte, cantante, vem de muito alto...) − Fecham furtivamente a porta... Escapam passos leves pelo pátio... Nem se ouve o portão bater... E ele dorme (p. 157).

é apagado pela consciência de ser a sua existência um campo de irrealização de qualquer projeto individual e pela presença, ao longo das angustiosas e angustiantes vinte e quatro horas (influência de Ulisses, obra revolucionária de James Joyce), de uma rotina sombria e desumana de sobrevivência, de um desejo violento e invencível de anulação da própria personalidade, como fica patenteado na última revelação do estado de espírito de Naziazeno:

     Está exausto... Tem uma vontade de se entregar, naquela luta que vem sustentando, sustentando... Quereria dormir... Aliás, esse frio amargo e triste que lhe vem das vísceras, que lhe sobe de dentro de si, produz-lhe sempre uma sensação de sono, uma necessidade de anulação, de aniquilamento... Quereria dormir... (p. 157).

     A vontade de dormir concreta, física, produzida pelo cansaço de um dia extremamente tenso e agitado, possui também um valor metafórico: explicita a condição de um ser alienado, de um ser humano esvaziado de valor e significado, portanto destituído de sua própria humanidade.

     O movimento cíclico de Naziazeno é uma condenação ditada por forças que escapam ao seu discernimento e às suas possibilidades de ação, resulta da intervenção na esfera do sujeito dos processos instaurados pelo sistema capitalista cujo dinamismo gera tanto o progresso quanto a barbárie, como já observaram Adorno e Horkheimer:

     Assim como a substituibilidade é a medida da dominação e o mais poderoso é aquele que pode se fazer substituir na maioria das funções, assim também a substituibilidade é o veículo do progresso e, ao mesmo tempo, da regressão. Na situação dada, estar excluído do trabalho também significa mutilação, tanto para os desempregados, quanto para os que estão no polo social oposto (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 46).

     Aquilo que os representantes da teoria crítica afirmam com referência aos desempregados pode servir também para a compreensão das ações dos personagens de Os ratos, mutilados por serem privados da posse de si mesmos, reduzidos a autômatos, seres inconscientes que sofrem os efeitos de uma engenharia social que conjuga com extrema naturalidade perversão e racionalidade. O périplo de Naziazeno reproduz as contradições de um modelo mais vasto:

     Por outro lado, a adaptação ao poder do progresso envolve o progresso do poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas que mostram que não é o malogro do progresso, mas exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 46).


     A opressiva banalidade do cotidiano dos personagens de Os ratos e seus atos minúsculos e mesquinhos são produtos de uma razão que, prometendo a emancipação do homem, acaba por renovar as formas de escravização de boa parte da humanidade.

Conclusão

     Em sua análise da obra de Charles Baudelaire, Walter Benjamin destaca o fato de o poeta viver fugindo dos credores, enfiando-se em cafés ou em círculos de leitura. A fuga consiste em abrigar-se na multidão: os cafés e os círculos são pausas no interior da massa urbana. O trajeto de Naziazeno assemelha-se ao percurso do poeta, à exceção da frequência aos espaços de arte e cultura. Talvez em nenhum outro romance brasileiro as personagens circulem tão intensamente pelos cafés.

     A ambientação poderia, não obstante, assinalar uma coincidência ou tangência sem maiores implicações, caso não tivesse papel decisivo no desenrolar da narrativa: o de funcionar como quartel-general dos excluídos que traçam nos cafés as estratégias de sobrevivência. Não somente o espaço, mas também o caráter de cumplicidade meio clandestina da ação coletiva aproximam as personagens de Os ratos da figura do conspirador, valorizada por Benjamin como reveladora do processo de elaboração estética de Baudelaire e identificada por Marx como:

     As condições de vida desta classe [os conspiradores] condicionam de antemão todo o seu caráter... Sua existência oscilante é, nos pormenores, mais dependente do acaso que da própria atividade, sua vida desregrada, cujas únicas estações fixas são as tavernas dos negociantes de vinho − os locais de conspiradores −, suas relações inevitáveis com toda a sorte de gente equívoca, colocam-nos naquela esfera de vida que, em Paris, é chamada de boêmia (apud BENJAMIN,1991b, pp. 9-10).

Só que na obra de Dyonélio Machado as tavernas são os cafés e a gente esquiva é toda a espécie de agiotas e indivíduos que ganha a vida à custa da miséria alheia. Apesar de também ser uma área de sombra e penumbra, não produz a boêmia ou qualquer outra prática social que usa o escuro apenas para realçar o brilho e o magnetismo de formas antípodas do trabalho alienado. O mundo de Naziazeno e seus parceiros é dotado de espessa opacidade, sem visibilidade, sem legibilidade, sem legitimidade. Na penumbra onde vivem passam o tempo todo tramando estratégias de sobrevivência à semelhança de pequenas conspirações do cotidiano.

     Como conspirador cuja trama jamais alcança visibilidade, Naziazeno pode sentir prazer em andar pelas ruas porque "a massa desponta como o asilo que protege o anti-social contra os seus perseguidores". (1991b, p. 38) Posteriormente, ao analisar o surgimento do romance policial, Benjamin aponta para a supressão dos vestígios do indivíduo na multidão da cidade grande como elemento formador desse tipo de narrativa. Se Os ratos não pode ser considerado um texto policial, não deixa de alimentar-se de uma forte tensão psicológica criadora de uma espécie de suspense ─ afinal, na ótica dos detentores dos recursos financeiros, uma dívida é um delito imperdoável e a punição equivale àquela aplicada ao criminoso comum: ambas representam formas de exclusão social.

     Se a ação pode ser comparada a uma conspiração, nela Naziazeno exerce um papel secundário; por outro lado, conferir à esperteza de Duque o comando das ações da narrativa é não atentar para o essencial: nada se resolve ao longo do romance; o pagamento da dívida não possui nenhum significado, a não ser o de apontar para uma rotina brutal; a vida dos personagens é constituída pela repetição de trágicos e patéticos malabarismos financeiros e sociais. Na verdade, a posição de Duque é ditada pelas circunstâncias e pela movimentação social instintiva do indivíduo no meio da espécie, resultante de um paradoxo já apontado por Benjamin:

     (...) as pessoas só têm em mente o mais estreito interesse privado quando agem, mas ao mesmo tempo são determinadas mais que nunca em seu comportamento pelos instintos da massa. E mais que nunca os instintos de massa se tornaram desatinados e alheios à vida (BENJAMIN: 1991a, p. 21).

     Os ratos pode ser lido como um relato sobre a forma moderna de solidão: aquela provocada pela multidão. Tal paradoxo, apontado por Benjamin, é nuclear ao romance moderno:

     O romancista se separou do povo e do que ele faz. A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém (BENJAMIN: 1985, p. 54).

     Naziazeno ganha vida nas ruas, porém não é um flâneur: seu andar não ostenta, não almeja impressionar e desfrutar prestígio; ao contrário, mais se esconde do que se exibe, não toma as ruas de assalto, transformando-as em passarelas narcísicas. A galeria não é o seu templo e o café nunca funciona como ponto de afirmação social; não deseja despertar a atenção, já que transforma a invisibilidade em instrumento de defesa. Muito menos pode ser considerado um basbaque que dá total atenção à cidade, impressionado com sua força e modernidade, na contramão do gosto pela admiração do flâneur. Sequer pode ser considerado como um transeunte, um indivíduo a mais na multidão, pois ele é um a menos, cuja presença se dá sob forma fantasmagórica. Representa uma nova legião de criaturas urbanas, egressas das zonas de exclusão: os zumbis, os homens-invisíveis, os seres reduzidos à condição de autômatos.

Nota

1 Conforme o conceito de agregado formulado por Roberto Schwarz no ensaio “As ideias fora do lugar”. In: Ao vencedor as batatas. 3a.ed. São Paulo: Duas Cidades,1988. "Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande." Mais adiante: "O agregado é a sua caricatura [do 'homem-livre']". Em Os ratos ocorre algo mais grave: Naziazeno depende de favores de indivíduos tão pequenos quanto ele.

Referências

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do
        esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
        Editores, 1985.
_____. Textos escolhidos. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1989.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
        Editor, 1999.
BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e    
        história da Cultura. In: Obras escolhidas. Vol. I. São Paulo: Brasiliense,      
        1985.
_____. Rua de mão única. 2a. ed. In: Obras escolhidas. Vol. II. 2ed. São Paulo:
        Brasiliense, 1991a.
_____. “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. In: Obras    
        escolhidas. Vol. III. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1991b.
DYONÉLIO, Machado. Os ratos. 9ed. São Paulo: Ática, 1984.
GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. 2ed. São Paulo: Alternativa, s/d.
REBELO, Marques. Marafa. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
SCHARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 3ed. São Paulo: Duas
        Cidades,1988.


* Trabalho publicado na Revista Travessias, n° 2 - mai-jun/2008 -  UNIOESTE - Paraná, adaptado para este blog.

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