Resenhas



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A arte infraleve de Enrique Vila-Matas

      
 Depois da densa narrativa de Dublinesca (2011), o público brasileiro tem acesso ao último romance de Enrique Vila-Matas, Ar de Dylan, que vem se juntar a outros já publicados no Brasil, como A viagem vertical (2004), Bartebly e Companhia (2004). Mal de Montano (2005), Suicídios exemplares (2009), Dr. Pasavento (2010), História Abreviada da Literatura Portátil (2011).

     A história começa com um convite formulado pela universidade suíça de St. Gallen ao narrador para participar de um congresso internacional sobre o fracasso. Lá encontra o jovem Vilnius Lancastre, publicitário fracassado, diretor de um único curta-metragem de nome bizarro, Radio Babaouo, e às voltas com a construção de um inacreditável Arquivo Geral do Fracasso. A característica, no entanto, que chama a atenção de todos é a  extrema semelhança física do jovem com Bob Dylan. Após cair e sofrer uma pancada na cabeça, Vilnius passa a ter a mente invadida pela memória do pai, Juan Lancastre, escritor cuja fama fora construída pela estranha capacidade de ser um especialista na arte da interrupção, fazendo do inacabado o próprio horizonte da escrita.

     Vila Matas explora novamente a ideia de inação, tão central à narrativa de Bartebly. Vilnius vive sob o signo de Oblómov, “personagem radicalmente vadio de um romance russo, paradigma do não fazer nada”, e próximo ao princípio da renúncia walseriana, numa sátira à produtividade literária. As ideias de esforço, trabalho, continuidade e transcendência atribuídas à arte dissolvem-se numa teatralidade de tom kafkiano em que a cultura transforma-se em espelho paródico. Num filtro mais apurado, percebe-se a obsessão dos narradores construídos pelo ficcionista em apontar para o topos do criador como um terreno marginal e à deriva, cuja consistência aérea, um fazer nada altamente concentrado e produtivo, propicia a gênese da arte.


     Organizado em nove capítulos, o romance divide-se em quatro partes: Teatro verdade, Teatro da ratoeira, “Under the Mango Tree” e Teatro da memória, funcionando o capítulo inicial como uma espécie de prólogo em que o narrador, semelhante a um diretor teatral, expõe a concepção que sustenta a peça narrativa: a íntima ligação entre o fracasso e a literatura.

     O gesto teatral da esposa do inominado narrador ao entregar-lhe o convite, a encenação de justificativas para encarnar o papel de expectador privilegiado do evento, a organização do texto como se as partes correspondessem a atos, as longas digressões performáticas de Vilnius Lancastre, protagonista da história (posição por vezes ocupada pelo pai), somadas à irrupção cênica de sua amante e cúmplice, Débora, a experiência do narrador como personagem-expectador do relato do “little Dylan”, transformado posteriormente, de modo rocambolesco, em autor da autobiografia apócrifa de Juan Lancastre, tudo aponta para a literatura como uma escrita encenada na qual realidade e invenção entram de maneira indistinguível. O título “Ar de Dylan” parece, assim, mais uma manobra diversionista, pois não é a música o centro de referência. No caso, as aparências enganam, e esse é o jogo da ficção.

     Desde o início vemos que Vila-Matas aproveita da história policial o método de construção de falsas pistas, num exercício deliberado de desorientação da leitura.

     Mesmo a reiterada alusão ao universo teatral, não supera as numerosas menções a filmes e a intervenção do cinema na busca, talvez fosse melhor pensar na deriva, do jovem Vilnius, pois uma frase do roteiro adquire uma importância extrema no desenvolvimento do romance. Trata-se de uma passagem banal, metáfora rala com sabor de autoajuda: “Quando escurece, precisamos sempre de alguém”. A frase, retirada do filme Três Camaradas, dirigido por Frank Borzage, é atribuída por Vilnius a F. Scott Fitzgerald. Logo a seguir essa versão é posta em dúvida, pois o roteiro do filme passou por oito mãos, fato que não desanima o cineasta fracassado que segue aleatoriamente em busca da identificação do verdadeiro autor. Investigação detetivesca, fio de Sherazade e roteiro cinematrográfico jogam com as ideias de autoria, apropriação e originalidade, valendo-se da inesgotável busca de sentidos originários em texto em constante mutação.

     A referência a Hamlet é uma forma de ligar Vilnius, o pai, transformado em fantasma, a mãe, representada como uma Gertrude caricata até na morte, e o amante desta, um crítico cinematográfico, denominado Cláudio, como o sucessor do rei Hamlet na obra de Shakespeare. A esse núcleo se acrescenta a figura de Débora, amante do pai herdada pelo filho.   

      Não me parece muito apropriada a crítica feita ao escritor catalão por alguns espíritos mais arredios ao seu processo criativo. Para estes, Vila-Matas é um criador de marionetes pós-modernas sem consistência, um escritor com fraco poder narrativo que, incapaz de engendrar uma boa história, acaba inchando as narrativas de citações e referências, ganhando peso e brilho com letras alheias, incorrendo numa metaliteratura meramente exibicionista, sem alma e profundidade. Aqui acredito existirem ainda as linhas de resistências nostálgicas dos grandes relatos, a sombra do realismo oitocentista.

     O próprio Vila-Matas situou a nova narrativa naquilo que denominou uma linha "shandy" que se inicia com História Abreviada da Literatura, atravessa Bartleby e Companhia e alcança Ar de Dylan, numa espécie de atualização do universo ficcional de Tristram Shandy, de Laurence Sterne. O privilégio concedido à literatura como jogo e encenação talvez pese na armação do romance. O narrador apresenta-se como um “escritor arrependido de ter sido tão prolífico que tentava deixar de escrever”, completamente esgotado prepara-se para a aposentadoria, porém, envolvido pelo relato de Vilnius, termina por reocupar o espaço habitual ao aceitar o papel de falsificador da história, prisioneiro do labirinto da criação. Como um narrador-Bartleby, narra, mas preferiria não fazê-lo. Note-se que há uma proposital semelhança entre o narrador descrito e a figura do própro Vila-Matas.

     A passagem a seguir parece sustentar tal aproximação: “Eu tinha resolvido secretamente, antes de conhecer vocês, eu disse a Débora, não escrever mais nenhum livro, pois estava muito arrependido, quase dolorido, por todos os que havia publicado ao longo de minha vida, mas finalmente decidira prorrogar por uns meses o momento de me aposentar, pois sentia que precisava contar a surpreendente história que, com eles como protagonistas, vinha me encontrando nos últimos tempos na vida real: a história de como um luto pode ir engendrando uma nova família para um morto; a história, além disso, de uns jovens poéticos e doentios, Oblómovs consumados, perdidos no vazio cultural de sua terra e com tendência a ser, até limites insuspeitados, preguiçosos e avessos ao esforço; uma história de luto e abismo que, quando fosse publicada, seguramente revelaria muito mais sobre Lancastre do que suas próprias memórias abreviadas e com o tempo seria lido como uma verdadeira autobiografia, porque se veria que a alma moderna, o ar de Dylan, a essência de nossa época, não podia estar mais bem retratada nela”.

     Alcir Pécora, numa crítica ácida ao romance, vê no processo criativo de Vila-Matas um movimento circular por ele denominado “pitoresco literário” – a sobreposição do anedótico como rarefação da ficcionalidade. No entanto, Vilnius elabora uma crítica à obra de Juan Lancastre que parece, na verdade, endereçada ao universo vila-matiano: o jovem discorda do insuportável autoritarismo do artista, das constantes mudanças modernas de pele e de personalidade, dos jogos literários e das persistentes ficções apresentadas com frequência como fatos reais, do orgulho manifesto na diminuição das barreiras entre gêneros, do uso insistente de citações, do humor juvenil e da fuga ao classicismo. Estabilidade e experimentalismo separam, na narrativa, pai e filho.

     O autor catalão valoriza “a arte infraleve”, leveza manifestada sob a forma do aleatório, instável e proteico. O fermento de Marcel Duchamp alimenta a base da sociedade chamada Ar de Dylan, homenagem ao esquivo e múltiplo Bob Dylan.

     A criação vinga sob a sombra do deus Hermes: “polítropo, ou seja, homem de engenho multiforme, como Odisseu, e possuidor dos mais astutos pensamentos. Sua ciência, ouvi Vilnius dizer, era a politropia, dote que só se recebia ao nascer. A mente de Hermes tinha muitas formas, dobras e aspectos distintos. Era muito flexível. Transformava-se incessantemente. Se a realidade era múltipla e casual, ele a tornava ainda mais multiforme e casual. Tinha, além disso, uma mente de muitas gamas diferentes e a estranha propriedade de exibir todas as idades e todas as etapas pelas quais haviam passado todos os Hamlet, todos os Dylan”.


     Há muitos níveis de leituras na narrativa de Vila-Matas: os limites entre a realidade e a ficção, a utilidade da literatura, a autenticidade e a impostura nas artes, a legibilidade e o ilegível, o direito ao fracasso, a ficção como aproximação da verdade, a exposição de modelos narrativos, o conflito de gerações, a banalização da cultura, a busca identitária, e tantos níveis quanto os leitores, cúmplices do jogo, forem capazes de descobrir. E isso não é pouco.


Autor: Enrique Vila-Matas
Tradutor: José Rubens Siqueira
Editora:  Cosac Naify
Ano: 2012
Páginas: 320











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A sagração da falsa inocência



A literatura mexicana é um território que praticamente desconheço. Li a prosa enxuta de Juan Rulfo (da qual  gosto muito) e Carlos Fuentes (de quem só gostei da novela Aura), além de poemas de  Juan José Tablada e alguns livros de  Octávio Paz  (Transblanco e os textos críticos,  estes quase obrigatórios em nossos cursos universitários nas décadas finais do século passado).  Muito recente é o contato com a obra de Guillermo Arriaga, Mario Bellatin, David Toscana, entre outros. À nova geração de ficcionista mexicanos de primeira linha vem somar-se Juan Pablo Villalobos com a novela de estreia Festa no covil, lançada em 2010 pela editora espanhola Anagrama e publicada em fevereiro deste ano pela Companhia das Letras com tradução de Andreia Moroni revista pelo autor.

Nascido em 1973, em Guadalajara, o autor vive atualmente com a esposa brasileira (a tradutora do livro) e os dois filhos em Campinas, onde prepara com calma os outros dois volumes da trilogia do qual Festa no covil, sobre a infância, é o início. O segundo, Si viviéramos en un lugar normal, em torno da adolescência, sairá nos próximos meses. O terceiro, tomando por eixo a velhice, ainda está em projeto.

As três partes da novela apresentam uma realidade violenta descrita pelos olhos de Tochtli (coelho, na língua asteca), um menino mexicano filho de um poderoso traficante, Yolcault (serpente-cascavel). Devido ao tipo de vida paterna, o garoto vive recluso, cercado de mimos e cuidados, isolado a tal ponto que não frequenta escolas nem possui amigos da mesma idade, por isso costuma contar o reduzido número de pessoas que conhece, cerca de quinze. Preenche a solidão com experiências estranhas, como colecionar chapéus, assistir a filmes de samurais, apreciar palavras exóticas e ler dicionários. Um de seus caprichos é incluir no mini zoológico do palácio-fortaleza onde mora um hipopótamo anão da Libéria.


Adam Thirlwell, no posfácio, após considerar que a narcoliteratura “trata de chefões do tráfico, armas e mulheres. De uma cultura política corrupta e asquerosa” (cujo melhor exemplo entre nos é o romance de Paulo Lins, “Cidade de Deus”), valoriza Festa no Covil por considerá-lo um desvio da categoria pulp da narcoliteratura. Embora seja uma narrativa sobre a vida de um filho de poderoso chefão do tráfico, cercado de bandidos e encerrado numa fortaleza, o autor fez uma clara opção pelo caráter experimental ao colocar um menino como narrador. Ao empregar tal recurso, a narrativa ganhou uma liberdade que permitiu  investir na linguagem e no rigor literário, afastando o texto dos vícios e cacoetes da linguagem documental, jornalística, verista.

Logo no primeiro parágrafo da narrativa aparecem cinco palavras que estabelecem um modo de visão particular: sórdido, nefasto, pulcro, patético, fulminante, usadas ao longo do texto como comentários recorrentes a situações observadas pelo protagonista, uma espécie de modalizadores narrativos.

A relação com o pai é hiperintensificada pela ausência da figura materna. Yolcault o admira, chama-o de gênio, faz tudo para agradá-lo, mas o insere nos paradigmas da violência: a cultura machista, na qual não se deve chorar nem demonstrar sentimentos, e o fascínio em relação aos atos criminosos, vistos com manifesta naturalização.

O olhar da infância limpa as cenas de obviedade judicativa ou moralizante. Sagacidade, ironia e ingenuidade moldam-se numa construção em que a inocência se realiza como perda, sensação reforçada pela ambiguidade do pai, pois não temos certeza se constrói uma redoma para suprir o filho das experiências que uma vida marginal lhe suprime ou se assegura um processo deformador capaz de transformar o pequeno príncipe em seu substituto no mundo do crime. De qualquer forma, sabemos que o chefão não suporta ser chamado de pai.

Tochtli sente orgulho de ter um pai que chefia “o  melhor bando de machos num raio de pelo menos oito quilômetros”. Com o pai aprende a não ter medo, a não ser um maricas.

A tentativa de suprir a falta de educação formal do pequeno fica a cargo de Mazatzin, um professor, cuja vida é considerada “patética” por Tochtli, que representa a incapacidade de autonomia e iniciativa de um tipo de esquerda, declamatória, culta, livresca e, ao mesmo tempo, servil, amarrada a quem pode bancá-la: estado, empresário ou bandido. Na realidade, Youcault também participa da educação, agindo em contraponto às concepções civilizadas de Mazatzin, sobre quem afirma: “os cultos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida”. Prova da pedagogia paterna é a confissão de Tochtli: “Uma das coisas que aprendi com o Yolcaut é que às vezes as pessoas não viram cadáveres com uma bala. Às vezes precisam de três balas ou até de catorze. Tudo depende de onde você atira”. Outro exemplo da preocupação em transmitir narcovalores ocorre quando o pai o leva a presenciar uma sessão de tortura, poupando o filho apenas de assistir a execução do desafeto.

O México é quase invisível ao olhar do menino permanentemente recluso no palácio. No entanto, ele pode perceber a anomalia solta no ar. Sabe, assim, que o México, a exemplo da Libéria, é um país nefasto. Por trás do comentário ingênuo sobre a dificuldade na obtenção de um hipopótamo feito pelo protagonista, uma outra camada irônica e crítica desnuda o narrador no interior da personagem, a falsa ingenuidade desloca significados. Embora o texto não faça referências à realidade histórico-social, ecoa na narrativa um vento desesperançado que traz à memória a conhecida frase “Pobre México. Tão longe de Deus, tão próximo dos Estados Unidos”, atribuída a Porfírio Diaz.

Não é um livro sobre o narcotráfico, não faz um recorte policial, jornalístico, de denúncias contundentes, capazes de serem suplantadas por outras daqui a três semanas. Há denúncia da condição humana porque a violência é trabalhada como linguagem, transformada em literatura, há canais e caminhos que envolvem as situações apresentadas, exigindo uma leitura mais aprofundada. O eixo não é, como alguém pode ser induzido a crer, a infância estranha de um filho de traficante, o centro romanesco é a brutalidade de um tempo bizarro e brutal. Observe-se, por exemplo, ainda na primeira parte, a visita de um narcogovernador de estado, El Gober, que vai à casa de Yolcaut tratar dos negócios da cocaína. A cena intestina, um jantar entre amigos, termina mal. O chefão não admite comentários negativos sobre a presença do filho em uma reunião de negócios sujos. É a intimidade da vida marginal, o afeto apodrecido que lateja como ferida na reação paterna. A real negociação envolve hipopótamos anões da Libéria, a trapaça reformula o olhar infantil: “às vezes o México é um país nefasto, mas às vezes também é um país magnífico”.

As poucas páginas do texto revelam muito mais do que aparentam. A inocente crueldade de Tchotli expõe a violência como semente instalada na construção da subjetividade do núcleo familiar de traficantes. Por essa razão a ironia dói, incomoda, arranca o leitor da zona de conforto: “Eu acho que os franceses são pessoas boas porque inventaram a guilhotina” é uma observação que condensa um afiado pensamento sobre a morte. Na segunda parte, a lâmina da morte surge novamente em uma comparação entre morrer na guilhotina ou a facões, para reaparecer na última parte com a valorização grotesca e sangrenta do sabre, considerado superior à guilhotina: “A vantagem dos sabres comparados com as guilhotinas é que com os sabres você também pode cortar braços, pernas, narizes, orelhas, mãos ou o que quiser. Além disso, você pode cortar pessoas ao meio. Já as guilhotinas só podem cortar cabeças”. A lógica e o pragmatismo da exposição traduzem a perversão da infância.

Outros cortes abrem diversas linhas de leitura. A suposta virtude do pai – não vender drogas a mexicanos – reelabora de modo grotesco a questão do nacionalismo. Os tigres do zoológico não são apenas exóticos, mas destruidores de evidências, consumidores de corpos inimigos. A diretora do zoológico, suicidada, revela apenas um método de extermínio contemporâneo.

O grotesco é uma das linhas de construção da narrativa. Tchotli, entusiasta dos franceses que cortavam ritualisticamente as cabeças dos reis, não entende a degola de uma pessoa comum, “Mostraram uma foto da cabeça na tevê e o penteado dela era mesmo horroroso” resume tudo o que pensa sobre a decapitação de um chefe de polícia. Sórdido ou patético?
O narrador aponta o fosso entre a literatura e o tempo, numa incursão metalinguística: “E nos livros não aparecem as coisas do presente, só as do passado e as do futuro. Esse é um grande defeito dos livros. Alguém devia inventar um livro que dissesse o que está acontecendo neste momento, enquanto você lê”. Os olhos do menino não percebem a escrita como o resultado de todo um processo às vezes longo e complexo, mas os olhos do narrador sabem do hiato, da ferida temporal entre o texto e o momento.

Na segunda parte, o narrador desenvolve um processo de nomeação de personagens de modo cômico: surgem as personagens liberianas John Kennedy Johnson e Martin Luther King Taylor; os nomes escolhidos para o casal de hipopótamos anões são Luís XVI e Maria Antonieta. Os animais não sobrevivem, mas na última parte Tochtli recebe jubiloso as cabeças empalhadas dos hipopótamos anões.

Há muitos aspectos interessantes no livro: a traição de Mazatzin e o seu triste destino, a descoberta da mentira de Yolcaut, a morte do periquito. Minha intenção, contudo,  não é recontar a história, mas expor a descoberta de um texto de alta qualidade, forte, doloroso, instigante e muito bem trabalhado.

Há uma passagem de Nietzsche em “Além do bem e do mal” que me parece apropriada para uma aproximação ao narrador de Festa no Covil: “Por fim se considere que mesmo o homem de conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer, contra o pendor do espírito e também, com frequência, os desejos de seu coração – isto é, a dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar -, atua como um artista e transfigurador da crueldade; tomar as coisas de modo radical e profundo já é uma violação, um querer-magoar a vontade fundamental do espírito, que incessantemente busca a aparência e a superfície – em todo querer-conhecer já existe uma gosta de crueldade”. A infância nele é o que não se constitui, o que foge, ler o mundo, ingressar nele se dá como exercício de crueldade, um ato que descola de Tochtli o narrador que ele é da criança que poderia ser, transformando-o assim em narrador-personagem esquizofrênico.


Livro: Festa no Covil
Autor: VILLALOBOS, Juan Pablo
Tradutor: MORONI, Andreia
Posfácio: Adam Thirwell
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 96
Ano: 2012

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Luciana Viégas é professora de língua portuguesa do Colégio Pedro II e doutoranda em Literatura Brasileira na UFRJ. Além da atividade docente, vem trabalhando há algum tempo na divulgação de obras de grande relevância para a literatura. Traduziu O leitor comum, de Virgínia Woolf (2007) e O tempero da vida e outros ensaios, de G. K. Chesterton (2010), além de ter organizado os volumes A leitora e seus personagens e Escritos da maturidade (2005, 2ª. ed.), ambos reunindo textos de Lúcia Miguel Pereira. Todos os seus livros foram lançados pela Editora Graphia, que acaba de publicar o seu romance de estreia: A oficina.

Cruzamento e dispersão de duas famílias - uma de Recife e outra de origem alemã, a narrativa faz de uma oficina em Laranjeiras, montada pelos alemães, o núcleo memorialístico com o qual a trama tem início e se fecha no capítulo 43. Entre motores a vida passa com suas idas e vindas, sem qualquer espetacularização, sem excessos. O narrador parece nos dizer que uma estrutura tão complexa como a existência  não precisa de grandes gestos ou de acontecimentos extraordinários. O que ocorre em todos os trajetos já é suficiente para instalar espanto e precariedade.

Há um ritmo dotado de certa agilidade nos capítulos curtos, nos quais se misturam planos diversos: Recife e oficina, presente e passado. A narrativa só progressivamente desfaz a opacidade inicial, limpando os perfis indefinidos dos personagens à medida que se avança na leitura. Não há uma disposição linear dos fatos, deparamo-nos com uma rica teia que busca captar um tempo acelerado com instrumentos que se sabe fadados ao não cumprimento de fixações e à consequente armação de qualquer estabilidade. O tempo é o verdadeiro protagonista do romance.

As referências a inúmeros autores e faits divers (veja-se o capítulo 40) balizam de historicidade os acontecimentos sem historiografá-los, não são testemunhas da vida que passou, mas a experiência que se presentifica na pele temporal das personagens O narrador consegue em alguns momentos acender uma linguagem de leveza poética capaz de formar um contraste com o tom irônico que incide sobre diversas passagens.

Carlos Pena Filho, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardoso, Jovem Guarda, Diretas Já, Copa do Mundo, Gôngora, citações bíblicas, Anna Magnani (referência à atriz italiana Anna Magnani, do filme "Roma, Cidade Aberta", comparada por Pedro à Tícia, filha do alemão dono da oficina), crônicas de Antônio Maria, as de Rubem Braga nas páginas de O Cruzeiro, corridas de automóveis pioneiras no Rio de Janeiro, os textos de Sérgio Porto no Última Hora, Nat King Cole, Sinatra, Getúlio Vargas, Recife e Laranjeiras, há um intenso perpassar de lembranças, processo construído talvez com excesso descritivo, como se houvesse uma urgência em se livrar de tanta coisa presa na memória.

A autora, em alguns momentos, tira bom efeito de recursos metalinguísticos. Veja-se, por exemplo, o início do capítulo 25: “O correio eletrônico, diariamente, posta brindes do Aulete. São verbetes descontextualizados, que aparecem na linha ao lado do remetente. O primeiro impulso, nas primeiras correspondências, é de apagá-los. Aos poucos, no entanto, conforme se vai percebendo que podem ser termos regionais tornados engraçados diante do falar hegemônico do sudeste, ou palavras retiradas do jargão universitário que usadas em ambiente novo se esvaziam de certa sisudez, a curiosidade obriga a dar uma parada e, se não se consegue ler a definição no momento, deixa-se a mensagem esquecida por um tempo até que o verbete seja enfim lido e mandado para a lixeira. Ontem me chegou o seguinte: alamoa: s. f., personagem lendária, Alamoa, galega, lourota, branca azeda, nariz torto”. Essa definição serve para a  inserir uma estrutura paródica sobre a narrativa mítica em que o lendário configura-se como elemento prosaico, esvaziado de dimensões extraordinárias. Termina a passagem com uma quebra radical do recorte mítico, abrindo-se para o cenário de um comercial.

Ainda vale a pena observar também o expressivo efeito obtido pela engenhosa narrativa epistolar que constitui o capítulo 23. Os textos lacônicos dos bilhetes e das cartas, associados às informações parentéticas, primam por expor a tensão oculta nas palavras.
    
Um técnica quase fractal exibe a realidade caleidoscópica da memória. Quase porque nunca repete a mesma estrutura. Cada capítulo modifica o universo, apostando no antilinear e na memória como o processo de formação do mapa de ilhas vividas em ambientes e épocas distintas. A imagem reiterada do “piso de lajotas de cerâmica vermelha com bordas arredondadas” parece nos remeter ao texto construído como remontagem, um discurso em luta contra a força centrífuga do tempo que só na escrita, essa ação de rejuntamento, consegue o mínimo de coesão.

Freud apontou para o fato de a memória implicar tanto a ausência quanto a presença, ambas representadas no mesmo gesto: a presença de uma ausência. Embora constituída num determinado percurso, a memória nunca é a repetição do mesmo, sempre flutua, reconfigura-se, condenada a reinvenção constante de seu corpo discursivo. Assim, o passado, se volta através da falta, isto é, através da impossibilidade do seu resgate, permanece como lacuna. A memória é a invenção do passado como legibilidade, por isso a falta é matriz da ficcionalidade, do relato para inventar a memória, esse tempo sem passado.

Após a leitura de A oficina esbarramos em velhas questões. Que filtros atuam na depuração da memória a ponto de transformá-la em ficção? Lugares, pessoas, objetos, situações existenciais, anotações do precário ou inscrições que buscam ir além do horizonte do provisório - o que busca na realidade o narrador: lembrar ou esquecer? Provavelmente não haja nenhuma resposta. O narrador é aquele que fala de fora de qualquer experiência, por isso tudo o que diz é ficção e toda ficção é impura, ou seja, um terreno discursivo ilimitado. Isso é mais ou menos o que escreveu, com maior propriedade, Beatriz Sarlo (sobre outro contexto, o das narrativas provocadas por ditaduras):

“A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.”

Luciana Viégas, em sua primeira narrativa, já se revela possuída de febre ficcional. Isso é garantia de novas páginas de alta temperatura no horizonte.


Título: A oficina.
Autora: Luciana Viégas.
Editora: Graphia.
Páginas: 154.  
Ano: 2012








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Afinidades conflitivas de duas velhas senhoras


I

     Houve, quando ambas ainda existiam plenamente no vigor de um tempo ainda não transformado em moeda, uma rusga entre poesia e filosofia. A tradição lançou sobre Platão a responsabilidade por acirrar a desavença entre filósofos e poetas. Todos devem se lembrar de que em A República, no Livro X, o discípulo de Sócrates lançou um anátema sobre os poetas, expulsando-os da pólis ideal, com exceção dos autores de “hinos aos deuses e encômios aos varões honestos e nada mais”.

     A benevolência com o laudatório comprova que o receio de Platão não se voltava contra toda forma poética, mas especialmente contra aquela poesia por ele considerada “mimética”, forma destruidora da inteligência, responsável por fazer com que o prazer e a dor assumissem o controle da cidade em detrimento da lei e do princípio tido como o melhor para comunidade.

     O filósofo ateniense afirmou que a poesia mimética “imita homens entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que, em consequência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias”. O poeta, assim, instauraria na alma dos cidadãos um mau governo, inflamando paixões, despertando a parte irracional, alimentando fantasias e gerando descontrole e turbulência. Era o mundo sensível atropelando o mundo inteligível, a ilusão impedindo a nôesis, sem a qual o Bem é inalcançável e a humanidade permanecerá retida ad infinitum na zona de sombras onde se atolou.

     Com isso não se esgota a visão platônica, de extraordinária complexidade. Basta observar que no diálogo Fedro, uma análise do Belo, o autor, ao formular a lei de Adastreia, reguladora do retorno ao mundo das almas que não conseguiram fugir à doxa, devolve aquelas mais próximas da libertação a “um homem destinado a ser amigo da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor”, ambos no mesmo plano, portanto, acima de reis, guerreiros, políticos, comerciantes etc. Tanto o filósofo quanto o poeta possuem, então, almas com maior capacidade de captar o reflexo das ideias que contemplaram em existências anteriores.

     Importa também observar que o anátema sobre a poesia foi lançado por um autor que recorreu ao longo de seus textos à tradição poética grega da qual se revela profundo conhecedor. Além disso, a construção da dialética platônica aproxima-se em muitos momentos da linguagem poética. Isso jogo mais lenha na fogueira e nos faz evitar visões ligeiras e pre/conceituosas sobre as ideias platônicas.

     Maior deve ser o cuidado quando se sabe também que Platão não concedia grande importância à escrita, apesar dos numerosos diálogos e cartas que chegaram até nós. Isso pode ser observado na passagem de Fedro em que Sócrates critica a invenção da escrita, obra de um demônio egípcio, Teute, que a teria apresentado  ao rei Tamuz como um remédio para o esquecimento e a ignorância: “Confiante na escrita, será por meios externos, com a ajuda de caracteres estranhos, não no seu próprio íntimo e graças a eles mesmos, que passarão a despertar suas reminiscências. Não descobriste o remédio para a memória, mas apenas para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é simples aparência do saber, não a própria realidade”.

     A poesia,  a arte em geral na formulação platônica, capta a ausência, o nada e constrói-se sob o vazio; dele faz sua morada e dele, somente dele, do não lugar da arte, pode pro-duzir, no sentido atribuído ao termo por Platão em O banquete e recuperado por Heidegger: “Todo deixar-viger o que passa e procede do não vigente para a vigência é ποίησις, é pro-dução”.
   
     A criação é o hiato entre o nada e o criado, entre o não existir e o vir-ao-mundo. Aquilo que é gerado já não está no momento da própria geração, apesar de carregá-lo para sempre sob a forma do esquecimento. Na fenda criadora vige a inapreensibilidade da existência, fluxo contínuo e simultâneo de vida e morte.

     Agamben opera uma suspensão do tensionamento matricial da obra em Heidegger, instância entre ser e não ser que aparece pronta, acabada, fixada na finitude que a informa como um mundo fechado. A posição sustentada por uma longa tradição filosófica, aos olhos do filósofo italiano, reduz a obra apenas à sua superfície visível, perdendo o que escapa à apreensão imediata, ou seja, a própria arte. O que evita o esgotamento da obra é a percepção de que:

                           O ato de criação não é, na realidade, segundo a instigante concepção corrente, um
                              processo  que caminha da potência para o ato para nele se esgotar, mas contém no
                              seu  centro  um  ato de descriação  [grifo do autor], no  qual o que foi e o que não
                              foi acabam  restituídos  à sua unidade originária na mente de Deus, e o  que podia
                              não ser e foi se dissipa no que podia ser e não foi.


       Alberto Pucheu, em ensaio sobre Estâncias, expôs com bastante propriedade o desvio agambeniano em relação ao produzir da obra de arte.

                       "Se (...) a tradição fazia  com  que a  criação  fosse compreendida enquanto  a                       
                          passagem do não-ser ao ser, do informe à forma, da potência ao ato, do velado ao
                          desvelado, considerando  a   obra   como   pronta,  acabada,  esgotada, o   filósofo
                          afirmaria  que a  obra  de  arte  oferece  no ser a  afluência do  não ser, na forma a
                                  afluência do informe, no ato a afluência da  potência, no desvelado a afluência do
                          velado, fazendo com que, no  retorno  constante  ao de onde veio privilegiado, ela
                          seja sempre, inconclusiva, inacabável, inesgotável..."

     Para Heidegger a pro-dução e o pro-duzir devem ser percebidos mediante a recuperação de sua significação para os gregos. Desse modo, não nomeia apenas os processos relativos ao artesanato e às formas poéticas e artísticas, mas, principalmente,  ϕύσιϛ [physis], sua forma máxima, pois independe de algo exterior a ela, já que porta em si mesma o eclodir da pro-dução. A matriz originária não estabelece, portanto, distinções entre o que foi criado.

    Ao questionar o significado da técnica e ao evocar a essência grega da causalidade, o autor de Ser e tempo aclara o conceito de pro-dução: 

             "O deixar-viger  concerne  à vigência  daquilo que, na pro-dução  e no  pro-duzir,
                chega a  aparecer  e  apresentar-se. A  pro-dução  conduz  do  encobrimento  para 
                o desencobrimento. Só  se dá no sentido próprio  de uma  pro-dução, enquanto  e 
                na  medida   em   que  alguma   coisa   encoberta  chega  ao  des-encobrir-se. Este 
                chegar  repousa   e   oscila   no   processo   que  chamamos  de  desencobrimento.
                Para  tal, os  gregos   possuíam   a   palavra    ὰλήθεια   [aletheia]. Os  romanos  a 
                traduziram   por  veritas. Nós  dizemos   “verdade”  e  a   entendemos  geralmente
                como o correto de uma representação."

    Após o filósofo constatar que a essência da técnica não é um simples meio, um outro olhar a lança, então, no âmbito do des-encobrimento, ou seja, da aletheia. Assim, a palavra grega Τεχνικόν refere-se ao que pertence a τέχνη de dupla maneira: tanto ao fazer da habilidade artesanal quanto ao fazer da grande arte e das belas-artes. A τέχνη pertence à ποίησιϛ. Até a época de Platão, τέχνη e έπιστήμη [episteme] eram palavras utilizadas para designar o conhecimento em seu sentido mais amplo.

    As ideias heideggerianas apontam para a rica possibilidade aberta pela ruptura das fronteiras demarcatórias do conhecimento, das linhas limítrofes entre técnica, arte e pensamento. Na busca da essência da técnica, vislumbra-se o originário da arte, concebida como o desencobrimento que leva a verdade ao fulgor de sua plena vigência.

A palavra técnica, usada para referência à técnica e à criação artística, reunia num único des-encobrir uma infinidade de desdobramentos. Por isso, Heidegger diz que as artes não surgiram de um campo determinado da criação, não se originavam do artístico.

                "Mas, então, como era a  arte?  Talvez  somente por  poucos anos, embora anos                                                                sublimes? Por que a arte  tinha o nome  simples e singelo de τέχνη? Porque era
                  um  des-encobrir   pro-dutor  e  pertencia  à  ποίησιϛ. O  último   des-velo,  que 
                  atravessa  toda arte do belo, era ποίησιϛ, era poesia."

     Quase ao final do ensaio “A questão da técnica”, o autor aponta para o vigor do poético no desvelamento da verdade:

               "É o poético  que leva a verdade ao  esplendor  superlativo  que, no Fedro, Platão
                 chama de τό έκϕανέστατον, “o que sai a brilhar da forma superlativa”. O poético
                 atravessa, com  seu vigor, toda arte, todo desencobrimento do que vige na beleza."
                                      
     O ensaio de Heidegger retoma e sintetiza reflexões apresentadas em A origem da obra de arte, em que o autor já afirmava que a essência da arte guarda o originário. Após analisar a relação entre arte, artista e obra, constata que a arte só pode ser apreendida da obra, apreensão que se dá como virtualidade, pois o que é a arte permanece constante opacidade. O caráter de coisa das obras não facilita a aproximação porque a arte é o que escapa às coisas e à própria obra, esta última é, na verdade, forma simbólica na qual a arte anuncia a sua presença e fuga simultâneas. A partir da análise da reprodução pictórica de um par de sapatos de camponês por Van Gogh, o autor afirma que “a essência da arte seria então o pôr-se-em-obra da verdade do ente”, ou seja, escapa à coisalidade que a constitui para abrir-se como um mundo para nós.

   Concebida a criação como um produzir, torna-se impossível distinguir entre produção artística e não artística, ambas abrigadas no termo τέχνη, já que os gregos referiam-se indistintamente ao artesão e ao artista como τέχνιτηϛ.  As duas formas compartilham de idêntica natureza determinada pela essência da criação e por nela permanecerem retidas.

    Heidegger afirma que “o tornar-se-obra da obra é um modo do passar-a-ser e de acontecer da verdade”. A verdade guarda a duplicidade de ser passagem: “A verdade é não verdade, na medida em que lhe pertence o domínio de proveniência do ainda-não-(des)-ocultado, no sentido da ocultação”. Na verdade pulsa a tensão entre o negativo e o positivo: “A verdade é o combate original no qual, de cada vez a seu modo, é conquistado o aberto, no qual tudo assoma e a partir do qual se retrai tudo o que se mostra e se erige como ente”. Entendido o nada como a negação do ente e vendo-se neste aquilo que está disponível e aparece no estar-aí da obra, pode-se admitir que a verdade  advém do nada.

    A exemplo do ensaio “A questão da técnica”, Heidegger concede grande relevância à poesia no processo de desocultação da verdade, entendida como um acontecimento que se dá mediante um processo radicado na poeticidade, caminho que o leva a declarar que “Toda a arte [grifo do autor] , enquanto deixar-acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia [grifo do autor]”).

    Para justificar o primado do poético no terreno das artes, o filósofo formula uma concepção de linguagem.

              "A linguagem não é apenas    e   não é em primeiro lugar  – uma expressão oral e
                 escrita  do que importa  comunicar. Não transporta apenas em palavras e  frases o
                 patente e  o latente visado  como tal, mas  a linguagem é  o  que primeiro  traz  ao
                 aberto o ente enquanto ente."

     Na reflexão heideggeriana de linguagem, a poesia ocupa um lugar especial:

              "A própria linguagem é Poesia em sentido essencial. Mas, porque a linguagem é o
                 acontecimento em que, para o homem, o  ente como  ente se abre, a poesia, a          
                 Poesia em  sentido  estrito, é a  Poesia mais  original, no  sentido  do  essencial. A
                 linguagem não  é, por  isso, Poesia, por ser a poesia primordial  (Urpoesie), mas a
                 poesia acontece na  linguagem, porque esta  guarda  a essência original da Poesia."
                                     
     O vigor do poético imantiza a prosa a partir do século XIX e causa a indistinção das fronteiras clássicas, ultrapassando as marcas de empréstimos mútuos para inscrever a criação no interior da junção e fratura da linguagem. A poeticidade constitui-se no centro do processo irradiador. A prosa passou a ser compreendida como uma forma que perdera a eficácia. O laço estreito entre prosa e representação, ao ser rompido, colocou a nu a insuficiência de seus recursos. A prosa era um discurso-simulacro-do-real. Buscou, então, no poético não apenas a sonoridade, mas a liberdade, a poiesis, a invenção, o instrumental necessário à produção de um discurso desreferencializado em relação ao real ao qual caberia a ela somente transcrever, recodificando-o em literatura. A poesia permitiu a prosa instituir-se verdadeiramente como prosa, efetivamente ficcionalizar-se. Foi necessário a vida morrer na prosa para que a prosa pudesse renascer.

     Se os modos de assumir o poema são revolvidos pelo surgimento do verso livre, do poema em prosa e da constelação gráfica, a prosa também organiza novos modos na contramão do representacional, reinventando-se como forma poética. Portanto, constrói-se um caminho de mão dupla para configurar na criação literária a vigência do indiscernível. Não se trata de auferir ao texto literário a propriedade conceitual em que o texto filosófico guarda as fronteiras de seu domínio, mas de avançar rumo ao que surge da vizinhança, do voltar-se da prosa poética para a prosa teórica e vice-versa. Trata-se de desguarnecer fronteiras, deixar o texto exposto ao precário de sua natureza, exposto como linguagem, que é fratura e salto simultâneos.

     Heidegger aponta exatamente para uma zona de confluência entre poesia e pensamento, sob a sombra da linguagem, embora vá apenas a determinado ponto, o limite do próprio de cada esfera

              "Tanto a  poesia   como  o  pensamento  movimentam-se   no  elemento  do  dizer.
                 Pensando  a  poesia, já  nos vemos  no  mesmo elemento  em que se movimenta o
                 pensamento. Aqui   não   é  possível   decidir   se  a  poesia  é   propriamente   um
                 pensamento  ou  se  o pensamento  é  propriamente  poesia. Fica   obscuro  o  que
                 determina a  sua  relação  mais própria e a partir de onde isso  que chamamos sem
                 hesitar  de  próprio  surge  propriamente. No  entanto, qualquer  que seja  o  modo
                 em que  nos vem à  mente  poesia  e pensamento, um  mesmo elemento já sempre
                 está a  nos  alimentar, quer lhe  prestemos atenção ou não. Esse elemento é a saga
                 do dizer."
         
     Guarda, assim, o filósofo as marcas segregadoras na distância mantida pelo próprio do pensamento e da poesia, cuja ultrapassagem não arrisca, preferindo estabelecer na vizinhança uma propriedade de trocas enriquecedoras. Ainda que Heidegger resvale numa mudança de rumo que torna o seu pensamento impensável sem o poético, insiste em guarnecer as fronteiras seculares da separação, aderindo à distinção hölderliana e revelando uma dívida ao hegelianismo:

              "Mas pelo fato de a  poesia, em  comparação  com o  pensamento, estar de modo
                 bem  diverso  e privilegiado a serviço  da  linguagem, nosso  encontro que medita
                 sobre a  filosofia  é  necessariamente  levado  a discutir a  relação  entre  pensar  e
                 poetar. Entre  ambos, pensar  e  poetar, impera   um   oculto    parentesco   porque
                 ambos, a serviço  da  linguagem, intervêm  por ela e  por ela  se  sacrificam. Entre
                 ambos, entretanto, se  abre  ao  mesmo   tempo   um    abismo, pois  “moram   nas
                 montanhas mais separadas”.


II


     Não é muito comum encontrarmos autores que transitem pelas duas áreas com a mesma desenvoltura. Antonio Cicero faz parte do seleto grupo para o qual a poesia não significa o abandono da filosofia. Prova viva dessa afirmação é o lançamento simultâneo de dois livros, Porventura, de poemas, e Poesia e filosofia, um conjunto de pequenos ensaios sobre o parentesco entre os dois discursos.  

     Antonio Cicero, oriundo de família de intelectuais. Possui sólida formação. Fugindo ao clima opressivo da ditadura, conclui o curso de filosofia na Universidade de Londres e fez pós-graduação na Universidade Georgetown, nos EUA.. Conhece grego e latim, o que lhe dá uma boa visão dos textos clássicos, tanto dos filosóficos quanto dos poéticos. Por outro lado, lida bem com as formas da contemporaneidade: tornou-se um letrista importante, lançou cd com leitura de seus textos, participou do filme Tabu, de Júlio Bressane, mantém o blog Acontecimentos, espécie de antologia pessoal propiciada pela tecnologia,  além de ser figura muito requisitada para eventos nos quais a cultura é o centro das atenções.

     De sua produção anterior, vale a pena mencionar O mundo desde o fim (1995) e Finalidades sem fim (2005), ambos voltados para a reflexão, e Guardar (1996) e A cidade e os livros (2002), livros de poesia.

     O autor deixa bem claro na introdução à Poesia e filosofia o ângulo a partir do qual tece as suas ideias: “penso que a poesia e a filosofia são atividades humanas inteiramente diferentes uma da outra”. Tal posição, aparentemente óbvia, serve para marcar um distanciamento da corrente contemporânea que busca uma aproximação entre as duas linguagens, processo iniciado no primeiro romantismo alemão e que encontra em Giorgio Agamben e Alberto Pucheu argutos pensadores de novas possibilidades.

     Admite Cicero a existência de um filósofo que jamais tenha escrito uma linha; toma Sócrates para exemplificar a tese, o que me parece estranho, pois o mentor de Platão teria elaborado, refinado e criado métodos e modos dialéticos de filosofar, limitando-se apenas a deixá-los banhados em pura oralidade. No entanto, não compreendi a razão pela qual não admite a existência de um indivíduo capaz de ser efetivamente poeta sem obra. Ainda mais se pensarmos que a poesia só existe em fuga, como impossibilidade, melhor, como potência da linguagem que se materializa no poema sempre como falta.

     Uma característica comum à filosofia e à poesia é não possuírem nenhuma utilidade prática, a primeira por privilegiar à abstração, a segunda por também corresponder à imersão em território imaginário. Outra característica, responsável pela marginalidade de ambas na sociedade contemporânea, é a despreocupação com a temporalidade numa época de aceleração incontrolável do tempo. A transformação do tempo em mercadoria eliminou a noção de tempo livre, a fruição de autonomia, o espaço de movimentação da subjetividade, de transformação interna, o ócio criativo, a margem reflexiva, enfim, expurgou o tempo similar ao do demônio do meio-dia, o filtro interno em que o mundo se realimenta e se reinventa. O princípio do desempenho corresponde ao processo de instrumentalização do ser humano, sua apropriação pelo reino espetacularizado e produtivista do imediato. Ora, o poema não rende, não produz nada que já não esteja nele encerrado. O valor do poema não é semelhante ao da acumulação de capital. Autotélica linguagem, vale em si mesma. Nesse sentido, tanto a poesia quanto a filosofia rompem com a linha de montagem e o consequente utilitarismo. Temos, então, um paradoxo: não há espaço para ambas numa cultura cada vez mais chapada, googlada, digitalizada, instantânea, por outro lado, nunca foram tão necessárias.

     Antonio Cicero toma emprestado o título de um livro de Carlos Drummond de Andrade – A vida passada a limpo – para exemplificar alguns aspectos do trabalho poético. O poema advém de uma tomada de decisão ou de algum acaso inicial. O autor deixa de fora a possibilidade de possessão, ou seja, de o poema assaltar o poeta, invadi-lo, obrigá-lo a dar-lhe forma. Qualquer que seja o caminho, todavia, o trabalho envolve um complexo processo de escolhas; título, extensão, métrica ou não, versos rimados ou brancos, forma buscada na tradição ou proposta experimental etc. Isso no plano macro, digamos assim, porque o poema exige, na realidade, uma escolha a cada palavra. Fora a lapidação, a reescritura, às vezes a completa transformação textual. Cada mudança no poema implica uma mudança de todo o universo. Na depuração do texto, muitos universos são suprimidos pela eternidade. Acontece que um poeta não é apenas o que faz versos ou poemas sem versos, mas o arquiteto de uma determinada poética, cria, assim, o barco, o rumo e o sistema de navegação em que se movimenta.

    Não acredito, como Cicero, que o fim da vida de um poeta seja virar poesia, poeta não possui fim propriamente, é aquele que se lança ao inalcançável, o portador da recusa à limitação da vida e da linguagem. Não há poesia sem risco, sem a possibilidade do caminho de Hölderlin. Certamente há uma muito  arraigada visão de poesia como zona de conforto, abrigo, autoajuda, melíflua musicalidade, terapia, aquilo que vulgarmente denominamos perfumaria. Mais ainda: não há um caminho, receita, certificado de garantia. A fruição de um único poema revela modos diversos de o leitor ideal fazer valer o tempo livre,  investindo numa “leitura ao mesmo tempo vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva, auscultativa e conotativa, prospectiva e retrospectiva, linear e não linear, imanente e transcendente, imaginativa e precisa, intelectual e sensual, ingênua e informada”.

    “Um poema não se faz com ideias, mas com palavras”, a resposta de Mallarmé a Degas, que acreditava que por possuir muitas ideias poderia convertê-las em poemas, é exemplar na demarcação de territórios alheios, mas me parece insuficiente para impedir a percepção do texto poético como uma estrutura extremamente porosa aos ventos que sopram de outros campos do conhecimento. O em-si do poema, a sua monumentalização, talvez seja uma forma de mantê-lo intocado, num estado de pureza que não corresponde ao terreno das artes, avesso à organização de materiais em prateleiras arrumadas, rotuladas, submetidas à padronização científica ocasionalmente impostas por pensadores tentam aos artistas. A frase de Mallarmé mapeia o centro nervoso da produção poética, a palavra, é verdade, mas não existe algo tão fugidio quanto a apreensão do significado dessa palavra, um conceito no qual se cruzam caminhos diversos e nos constitui como sujeitos.

    No quarto ensaio do livro, o autor faz uma distinção entre “pensar o mundo” e “pensar sobre o mundo” de extrema importância para compreender o jogo de separação e aproximação entre poesia e filosofia. Cicero explora a diversidade sintática para refinar o pensamento sobre a questão. Para ele, a presença da preposição após o verbo pensar, construção mais usual, corresponde ao pensamento discursivo ou dianoético, segundo a classificação aristotélica, já a supressão do conector seria uma forma do pensamento intuitivo e noético. Isso significa que a cisão trazida ao enunciado pela preposição, cria a possibilidade do pensamento filosófico pleno ao transformar o mundo em uma “totalidade” a ser pensada pelo sujeito. Sem a preposição, o pensamento rompe a segregação e passa a fazer parte também do mundo. Nas palavras do autor: “a abolição da preposição sugere a abolição da separação e da mediação entre o pensamento e a coisa pensada. É como se o pensamento não ficasse sobre, isto é, acima ou, de algum modo, fora do mundo, para pensá-lo”. Portanto, há um pensamento solto, informe, apropriado por todos, e há um pensamento formalizado, preso ao rigor e às exigências da filosofia. Pensar o mundo é uma das possibilidades da poesia, como demonstra o autor ao final do ensaio com uma análise do poema “O rio”, de Manuel Bandeira, e a exposição do poema Nuvens, de Jorge Luis Borges. Aliás, um dos pontos altos do livro é o uso de excelente repertório de poemas magistralmente utilizados na defesa das concepções do autor.

     O quarto ensaio prepara o leitor para a percepção da natureza desigual das nuvens em que se movem poetas e filósofos. Cicero explicita as diferenças: “Os assuntos do poeta não são tão genéricos e abstratos quanto os do filósofo”. Antecipa possível objeção daqueles que não acreditam na sua defesa de separação tão radical, por isso não acredita que os poetas abordem de modo figurativo e implícito os assuntos tratados pelos filósofos. Entende que é justamente quando mais parece se aproximar do universo filosófico que a poesia dele se afasta. Toma da Ode I.xi, de Horácio, um dos mais tradicionais motivos poéticos, o carpe diem, como exemplo de comprovação de sua tese. Acrescenta que, em termos filosóficos, não há absolutamente nenhuma novidade na ode horaciana. Isso não implica a supressão de seu caráter de obra-prima, serve para comprovar que a filosofia não é o “ponto de chegada” do poema, apenas um dos elementos integrantes de sua composição. A perfeição e a beleza da ode são propiciadas por outros recursos.

     Para tornar mais claro o seu ponto de vista, o autor enfatiza: “Sustento que a poesia enquanto poesia é inteiramente diferente da filosofia enquanto filosofia”. Para acrescentar: “Não é que não haja poemas que contenham teses filosóficas ou textos filosóficos que contenham trechos poéticos. É que o que torna um poema admirável enquanto poesia não é o que torna um texto filosófico admirável enquanto filosofia”. 

     Considero um raciocínio quase irretocável, só me pergunto se realmente não há nenhuma fenda, nenhuma fissura pela qual seja possível a quebra dessa rigidez, do caminho único e impermeável de ambas, ainda mais que são dimensões da linguagem, forma contaminada em sua essência, propriedade de impureza. Não haverá em alguma falha da linguagem um verso que seja um conceito, um pensamento no ritmo encantatório do poema, um vazamento de palavras a misturar de modo incontrolável poesia e filosofia?

     Outra ode de Horácio (III.xxx), na qual o poeta latino exalta a perenidade do poema,

permite ao autor de Guardar, valendo-se de oposição foucaultiana, propor outra distinção entre o texto poético e o texto filosófico: “enquanto, de maneira geral, o poema sendo contemplado por si próprio, funciona como um monumento, um texto filosófico, sendo lido em vista da tese que afirma, funciona como um documento” (grifo do autor).

     Antonio Cicero observa a não existência em língua portuguesa de antônimo para a palavra “poesia”. Alguns equivocadamente, empregam prosa, quando o mais pertinente é o emprego de expressões “não poesia” e “não poema”. A prosa não se contrapõe à poesia ou ao poema, mas ao verso, fato explicado pela etimologia:

                    "'Prosa', do vocábulo latino 'prorsus' e, em última instância, de  'provorsus'  que      
                    quer  dizer  'em frente', 'em  linha  reta' é o discurso  que segue  em  frente, sem
                    retornar. 'Verso', do vocábulo latino 'versus', particípio passado substantivado de
                    'vertere'”, que quer dizer 'voltar', 'retornar', é o discurso que retorna."

     Na verdade, tal diferença guarda na escrita as marcas da cultura oral primária, na qual não existiam gêneros literários, pois a palavra literária deriva de “letra”. Não obstante, havia a diferença entre aquilo que se reitera e aquilo que não se reitera. Isso explica as formas distintas de epos - επος,  enunciado reiterado, transformado em memória, e mythos -  μύθος, , o enunciado não reiterado, originalmente  com o significado de “fala”. Assim, na cultura não letrada o verso já é um padrão sonoro recorrente, enquanto a prosa é apenas ocorrência. A prevalência do verso nos textos da antiguidade seguramente deve-se à extraordinária dependência da memória, face à dificuldade de produção e circulação de textos escritos.

     O autor não compartilha da crítica agambeniana à cisão da palavra e da consequente busca de uma suposta totalidade originária perdida. Eis como Agambem apresenta a questão logo na introdução do livro Estâncias:

                         "De acordo com uma concepção que está só implicitamente contida na crítica platônica
                   da poesia, mas que na  idade  moderna  adquiriu  um caráter  hegemônico, a  cisão da
                   palavra é interpretada no sentido de que a poesia possui o seu objeto sem o conhecer, e
                   de que a filosofia o conhece sem o possuir. A palavra  ocidental  está, assim, dividida
                   entre  uma  palavra  inconsciente   como  que  caída  do  céu, que goza do objeto do    
                   conhecimento  representando-o  na  forma bela, e uma palavra que tem para si toda a
                   seriedade e toda a consciência, mas que não goza do seu objeto porque não o consegue
                   representar.”


     Para reforçar a exclusão mútua dos dois campos do conhecimento, Cicero recorre a figura de Lucrécio, destituído da condição de filósofo por faltar-lhe originalidade, mas em plena condição de grande poeta e brilhante divulgador da filosofia de Epicuro.  A questão da originalidade, tanto em poesia quanto em filosofia, aponta para um pântano, mais hostil ainda no território filosófico, pois os poetas moem e remoem temas imemoriais, livres que estão da lida com ideias, porém os amantes do saber  movimentam-se em possibilidades bem mais estreitas. Talvez, por esse prisma, se os poetas tornaram-se invisíveis, os filósofos tenham sido extintos.

     A finalidade da obra filosófica é a manifestação de uma proposição, tese, ou doutrina filosófica, assim como a da poesia é a obra poética, embora esta possa conter proposições, como um dos elementos integrantes de sua constituição. Como os enunciados poéticos não constituem proposições, mesmo aqueles situados mais próximos do caráter proposicional (como as manifestações de ars poética), o fato de serem eventualmente contraditórios não os desqualifica. Alguns têm na própria contradição a própria razão de ser.

     O ensaísta valoriza a desfetichização completa de todos os recursos poéticos efetuada pelas vanguardas do século XX que derrubaram os limites das convenções métricas e dos recursos retóricos tidos até então como condições necessárias e suficientes para a produção de um poema. A irrupção do verso livre não acarretou a eliminação das formas anteriores, pois a ação da vanguarda “não foi o fechamento de portas abertas, mas a abertura de portas fechadas; não foi a renúncia, mas a desprovincianização ou cosmopolitização da poesia”. Trata-se, portanto, da contribuição milionária de todas as possibilidades estéticas. Tal movimento liberou a poesia dos limites das aparências acidentais e das contingências históricas, da submissão à camisa de força das convenções poéticas.

    A proposta iconoclasta das vanguardas trouxe o “make it new” poundiano para a linha de frente da estética. É bem verdade que a fúria demolidora ajudou a reconfigurar o cenário das artes, principalmente do ponto de vista cognitivo, ao revelar que “simplesmente não há – jamais houve – condição necessária ou suficiente para a produção de um poema”.

     Sobre o culto à novidade também incide o peso do reino das mercadorias, mas a crítica de Antonio Cicero não avança no campos das relações de produção.

     Caso a novidade fosse critério válido, uma vez descobertas novas possibilidades, todas as anteriores estariam relegadas ao esquecimento. No entanto, as obras de Homero, Dante e Camões ainda exercem enorme fascínio sobre leitores contemporâneos. 

     Se a poesia é o que escapa ao poema, escapa também a qualquer tradução, segundo Robert Frost. Apesar de a poesia ser uma arte em fuga constante, traduzir poemas pode propiciar uma certa aproximação entre o leitor sem domínio da língua de origem e a versão original. Há certamente outra questão normalmente não levada em consideração: inúmeras vezes uma tradução nos atinge tão profundamente que, quando aprendemos a ler o texto na língua-fonte, não conseguimos nos desvencilhar do primeiro olhar sob a luz da língua-alvo.

     Cicero lê a filiação dos poetas às musas não como simples valorização da memória, mas como verdadeira declaração de autonomia estética. Os poetas, confessando-se ligados ao plano divino, conseguiram alto grau de liberdade para circular por todos os caminhos do discurso.

     Platão, em Íon, atribui a Sócrates palavras que conferem aos poetas a propriedade de empregarem um discurso sem amarras: “porque o poeta é coisa leve, e alada, e sagrada, e não pode poetar até que se torne inspirado e fora de si, e a razão não esteja mais presente nele”. A passagem, todavia, critica a incapacidade dos poetas, pois o discurso por eles proferidos viria dos deuses, não possuindo a originalidade daqueles produzidos pela razão, criados pelos seres humanos. Apesar disso, assinala, por outro lado, a ampla possibilidade da poesia, fora da zona de controle da cidade.  

     O autor conclui os ensaios reafirmando a rigidez dicotômica de sua tese: mais que uma diferença, há uma oposição complementar entre poesia e filosofia. O último período do livro explicita a natureza dessa complementaridade:

                      (...) esta  [a poesia]  constitui a afirmação radical e imanente  do mundo fenomenal,
                     imediato, aleatório finito, aquela [a filosofia] é o núcleo do empreendimento moderno   
                     de crítica radical e sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem congelar ou
                     cercear a vida e, consequentemente, congelar e cercear a própria poesia.


     Resta saber se a poesia precisa de tutela, de defesa, de outro discurso que, sob a fantasia de combater ilusões e ideologias, na verdade muitas vezes as justifica. A investigação do autor, formulada sob uma ótica kantiana, é realizada de modo esplêndido, com profundo conhecimento de causa.

     Confesso que li com muito proveito as reflexões do filósofo e poeta, tanto que esta resenha me saiu muito extensa. O tema guarda, por sua própria natureza, um caráter inconclusivo, característica que protege a riqueza inesgotável de um campo proteico, formado e informado por matéria em fuga, em incandescência inesgotável. Não há, felizmente, o ponto final de uma certeza, nada foi resolvido porque não há nada a se resolver, mas a ser revolvido. Justamente por isso saímos da leitura mais sedentos e enriquecidos.

     Continuo a acreditar que a poesia está mais próxima de uma forma de  energia do que da ideia de monumento e que a diferença entre os dois discursos é que a filosofia é um não sei e a poesia um sei lá!


Livro: Poesia e filosofia
Autor: Antonio Cicero 
Editora: Civilização Brasileira
Páginas: 142.

















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Roberto Bolaño: uma literatura nômade


Roberto Bolaño, além de atrair uma legião crescente de leitores, tornou-se uma referência para todos os autores jovens (e nem tão jovens assim), tomados de assalto por uma escrita dotada de forte pulsação rítmica, com personagens à deriva, mas que arrastam na caminhada às escuras todas as leituras possíveis. Seus textos incorporam experiências pessoais à construção de uma realidade sem glamour, sem a presença da luz de um caminho, porém fonte de persistente inquietação e estranheza. As técnicas narrativas, o exílio, a escolha do lado esquerdo do mundo, a reutilização de personagens e cenários contribuem para a construção de uma escrita nômade, em que tudo circula para inevitavelmente desaguar no vazio, no deserto de sentidos situado no México, no Chile, em Barcelona, em qualquer lugar ou em lugar algum.

Chamadas telefônicas, o primeiro livro de contos de Bolaño, publicado originalmente em 1997 e só agora lançado no Brasil, guarda em seus textos breves a escrita de urgência como enfrentamento da morte. Ao antecipar temas, personagens e recursos narrativos explorados de modo intenso em obra posteriores, o livro funciona como um cartão de visitas do universo do autor.

Os quatorze contos são divididos em três partes – Chamadas telefônicas, Detetives e Vida de Anne Moore, todas encerradas com narrativas homônimas.

Na parte inicial, a própria literatura é colocada em primeiro plano, recurso de metalinguagem recorrente na produção do escritor chileno, mas num viés que privilegia a zona de sombra da escrita, os perdedores heroicos, os escritores fracassados.

O conto de abertura do volume, “Sensini”, incide sobre um escritor argentino exilado na Espanha especializado na caça a concursos literários por enxergar neles uma forma de sobrevivência. A narrativa estrutura-se sobre elementos autobiográficos. Bolaño, ainda anônimo, também participou de diversos concursos; num deles, o 1º Prêmio Alfambra de Contos, conheceu o autor argentino Antonio di Benedetto (1922-86), a quem tomou como modelo para construir Luis Antonio Sensini. No prefácio a Monsieu Pain, relembrando essa época, Bolaño referiu-se ironicamente à perseguição de “prêmios búfalos que um pele-vermelha tinha que caçar”.
Em “Henri Simon Leprince”, ambientado na França durante e depois da Segunda Guerra, encontramos um escritor fracassado, cuja invisibilidade, apesar de uma atuação digna e corajosa na Resistência, surge como propriedade irremovível de sua existência. A marginalidade completa do anonimato, a rejeição de público e crítica, a repulsa de seus pares enunciam a solução fatal: “ele deve desaparecer, ser um escritor secreto, fazer com que sua literatura não reproduza seu rosto”.
Dedicada a Enrique Vila-Matas, “Enrique Martin” aborda o caminho que leva um poeta “à ruína, à loucura, a morte”, como nos avisa o narrador em primeira pessoa logo no início:  Arturo Belano, alter ego de Bolaño, protagonista, ao lado de Ulises Lima, de Os detetives selvagens. A literatura surge como o espaço do inalcançável. Enrique Martin, poeta extremamente medíocre, apesar da tenacidade cega de seu dedicação, não consegue um modo de realização estética. Uma trajetória na qual a poesia não assegure cumplicidade produz o progressivo enlouquecimento e o suicídio do poeta.

A ironia e a política literária são usadas com excelente resultado em “Uma aventura literária”. A história expõe uma tensão entre A e B. A, famoso, tem dinheiro é lido; B, um escritor desconhecido, publica seus textos em revistas de público inexpressivo. B transpira ressentimento. Consegue publicar um livro em que critica com ironia a obra de A. Este reage de modo incompreensível, faz elogios ao novo autor e contribui para transformar o livro em sucesso de vendas. Assim, surge a necessidade da construção de uma cadeia de raciocínios elaborados pelo protagonista para justificar a ação inesperada daquele que fora, na verdade, alvo de uma escrita rancorosa.

As idas e vindas de um casal separado sustentam o conto que dá título ao livro, “Chamadas telefônicas”. O narrador onisciente permite a construção de sentidos diversos para a história. A separação e o reencontro de um casal são feitos por telefone. O homem não consegue ajudar a mulher a enfrentar a depressão e a tendência ao suicídio. B, o ex, sonha com um boneco de neve andando pelo deserto. Condição irremediável das personagens de Bolaño, todas entregues a uma andança interminável rumo ao desconhecido. O desfecho da história, com a revelação sobre a morte da antiga companheira, revela as propriedades tomadas pelo autor à narrativa policial, antecipando, assim, o próximo bloco narrativo.

A segunda parte do livro, sem perder o apelo a recorrentes referências literárias, acentua a propensão a um realismo cru, visceral (não foi à toa que em Os detetives selvagens,  o narrador inventou o “real-visceralismo”) e violento, com personagens mergulhados em situações absurdas, na zona sombria do submundo e da ruína existencial. “O verme” trata de história da amizade entre um velho e um jovem (novamente Arturo Belano) em fuga dos compromissos escolares para navegar entre livros e sessões de filmes europeus ou mexicanos, alguns recontados no texto, explicitando a dívida do autor com a narrativa cinematográfica concentrada na ação contínua. O título sugere, na metáfora pespegada ao velho, um ambiente de desolação, espaço de migração, perda, decadência e violência. Lugar originário do “verme” e do avô de Arturo Belano, Santa Teresa (nome fictício de Ciudad Juárez), em Sonora, onde ocorrem vários assassinatos de mulheres descritos no romance 2666, considerado a sua melhor obra, já aparece na ficção do autor de Noturno do Chile.

Em “A neve”, Rogelio Estrada, filho de comunistas chilenos, exilado em Moscou, assiste à decomposição do regime soviético. Relaciona-se com a máfia russa por intermédio de Misha Pavlov, gangster da pesada e leitor refinado, numa curiosa e insólita mistura de banditismo e literatura. Rogelio apaixona-se por uma saltadora, amante do chefe. O ato de matá-lo não o livra do submundo, torna-o apenas subordinado a um novo capo.

O narrador de “Outro conto russo”, transformado posteriormente em personagem de 2666, o professor de filosofia Amalfitano, reproduz com um humor negro a história de um soldado espanhol em ação no front russo durante a Segunda Guerra salvo da morte, mas não do sofrimento, de maneira insólita.

Em “William Burns” o protagonista homônimo assassina um sujeito inocente movido pelo medo e pela denúncia das duas mulheres com quem vivia, ambas ameaçadas por um desconhecido.

A estrutura dramática do conto Detetives”, diálogo cínico e absurdo sobre a impossibilidade de se justificar o injustificável, constrói um clima asfixiante em que dois policiais relembram os dias sombrios da ditadura chilena. Autobiográfico no limite da catarse, o texto transfigura a passagem de Bolaño, novamente transformado em Arturo Belano, pelos cárceres de Pinochet, dos quais foi salvo, segundo ele mesmo confessou, pela interferência de dois amigos de infância transformados em agentes da repressão.

A terceira parte reúne quatro histórias protagonizadas por mulheres. “Colegas de cela” traça a trajetória de um homem e de uma mulher vítimas políticas no mesmo período mas em países diferentes: Chile e Espanha. A pequena, morena e bonita Sofía vive à deriva, entregue a amantes voláteis e a uma indefinição constante. Melancólico e pungente, a banalidade de sucessivos desencontros desenha a vida como energia que se perde no vazio.

“Clara” conta a história de uma mulher cujo único ato notável na vida foi a conquista do segundo lugar num concurso de beleza. Depois, tudo cai numa rotina depressiva e embrutecedora, e ela passa a andar em círculos no território sombrio da realidade. O narrador destila toda a sua ferocidade: “Quando a vi, demorei a reconhecê-la. Tinha engordado e seu rosto, apesar da maquiagem, exibia o estrago, mais que do tempo, das frustrações, coisa que me surpreendeu, pois no fundo nunca acreditei que Clara aspirasse a nada. E se você não aspira a nada, com que pode estar frustrado?”.

“Aqui estou eu, Joanna Silvestri, trinta e sete anos, atriz pornô, prostrada na Clínica Os Trapézios, de Nîmes, vendo as tardes passar e ouvindo as histórias de um detetive chileno”, assim começa o relato de decadência “Joana Silvestri”. A personagem narra com muita naturalidade a um interlocutor, do qual sabemos apenas que é chileno e não se considera detetive, experiências da vida amorosa e profissional ambientadas na Califórnia.

As fendas e elipses do texto de Bolaño permitem associá-lo à teoria do iceberg, de Ernest Hemingwat: “Se um escritor de prosa sabe o bastante sobre o assunto do qual está falando, ele pode omitir coisas que sabe e o leitor, se o escritor está escrevendo de forma verdadeira o bastante, sentirá essas coisas com tanta força como se o escritor as tivesse afirmado. A dignidade do movimento de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima d’água. Um escritor que omite coisas porque não as conhece apenas cria lugares vazios na sua escrita”.  

“Vida de Anne Moore” conta a história da protagonista desde o nascimento, em 1948, até o seu desaparecimento. A narrativa tece um caminho sem grandeza, expondo com crueza uma vida em que encontros e desencontros não formulam qualquer rumo. Anne Moore, ainda que presa a um caótico deslocamento de parceiros e lugares, sucumbe à banalidade do vazio, desaparece num vácuo existencial.

O labirinto de Bolaño não corresponde à representação geométrica borgeana de uma percepção metafísica, mas desenha uma rede caótica e inextrincável na qual a existência expele a vida como destroços, gestos fraturados da irrealização, O deserto onde todas as personagens se perdem só pode ser atravessado pela escrita como gesto urgente de rasura e resistência. O hiper-realismo em Bolaño impregna as letras do discurso de fisicalidade e tom vitalista, sem nunca abandonar a envenenada estética da palavra. Por isso o século XXI, ao menos em seu início, é cada vez mais Bolaño.

Rio, 15/03/2012


Chamadas Telefônicas,
de Roberto Bolaño.
Tradução de Eduardo Brandão
Editora Companhia das Letras
212 páginas.















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A Semana de Arte Moderna - mito e história *



* Resenha publicada no Jornal do Brasil em 09.03.2012

 

Este ano  comemoram-se os noventa anos da Semana de Arte Moderna, marco inicial do nosso Modernismo,  realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Como acontece em todas as datas redondas, diversos lançamentos somam-se ao extenso legado de obras consagradas ao tema. 1922: a semana que não terminou, de Marcos Augusto Gonçalves, editorialista e repórter da Folha de São Paulo, reconstrói, na linguagem fluente e ágil do jornalismo,  o contexto e os preparativos para o evento, além de destacar os momentos mais importantes e traçar um perfil dos protagonistas, tudo amparado em ampla investigação, enriquecida por excelente iconografia.  

Apesar de não haver uma preocupação em reavaliar criticamente a Semana, as informações reunidas pelo autor permitem preencher certas zonas de sombra, ao propiciar maior nitidez sobre as relações entre os autores modernistas e a elite paulista, num processo paradoxal que instituiu o modernismo não como ruptura, mas como um jogo conciliatório com o conservadorismo que supostamente o movimento deveria combater. Se na Europa a arte moderna precisou conquistar terreno à margem dos salões oficiais, no Brasil veio à cena “pela via oficial e conduzida pela mão do poder”.

As duas partes iniciais do livro concentram-se em apresentar os preparativos da Semana. Só na reduzida parte final o autor descreve o que de fato ocorreu nos três dias considerados decisivos para a arte brasileira.

Os anos anteriores a 1922 viram nascer uma insatisfação com a literatura no Brasil. Toda a tradição realista, naturalista, parnasiana e simbolista sobrevivia como fantasmas disputando um território abandonado. O contato com a cultura europeia - realizado por intermédio da leitura de textos inovadores, por meio das viagens de Anita Malfatti, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, entre outros, e pela vinda para o Brasil de artistas europeus, como Brecheret - expunha o fosso que afastava nossos autores do amplo movimento de renovação estética proposto pelas vanguardas. Essa percepção manifestou-se na polarização entre futurismo x passadismo, pois o primeiro termo, posteriormente renegado, possuía então uma significação muito mais vasta, representando a ruptura com o atraso e com a tradição acadêmica. O fato de Mário de Andrade rejeitar o rótulo de “futurista” tanto significou um afastamento da proposta de Marinetti, quanto assinalou um caráter complacente em relação à tradição criticada. 

Ao abordar as relações com a tradição na gênese da Semana, o autor é bem preciso: “Se havia negação na atitude polêmica e agressiva do grupo, a estética prendia-se ainda ao passado. E o evento, programado para gerar repercussão, parecia combinar muito bem com os interesses da elite paulista de autovalorização histórica e hegemonia intelectual”.

Não há como fugir à força da Pauliceia, à presença do ufanismo paulistano. A Semana foi trabalhada desde o início por intelectuais paulistas, com a ajuda de representantes da burguesia cafeeira, sob o influxo de Paulo Prado, misto de escritor e empresário. Todos perceberam a necessidade de o movimento ultrapassar os limites do provincianismo. A presença de figuras do cenário do Rio de Janeiro contribuiu para dar uma dimensão nacional ao evento. No entanto, a Semana assinalou um deslocamento cultural só tornado possível, de acordo com o crítico Antônio Cândido, porque “meia dúzia de intelectuais renovadores da Pauliceia, por estarem mais afastados do campo gravitacional do poder literário e artístico, teriam menos a perder”.

O deslocamento promoveu visões diferentes, confrontando leituras paulistas e não paulistas. A Semana, assim, passou a ser exaltada, combatida, negada, ao sabor de circunstâncias diversas, dificultando uma avaliação crítica mais acurada.

Por outro lado, algumas manifestações literárias com feições modernas, como a “escrita art déco”, estudada por Beatriz Resende, foram praticamente apagadas do cânone por um modernismo depurado de qualquer elemento que não correspondesse à visão do núcleo articulador da Semana.

A efeméride poderia ter passado à história como Semana Villa-Lobos. O espaço reservado à literatura, diminuto em relação à música, assumiu a forma de conferências: “A emoção estética na arte moderna”, de Graça Aranha, palestras de Menotti del Picchia, de Mário de Andrade e de Ronald de Carvalho.

A leitura de poemas, após a palestra de Menotti, já faz parte do nosso folclore literário. Assim que Oswald subiu ao palco, houve vaias e manifestações de desagrado. Tudo indica, no entanto, que os modernistas alugaram uma claque para encenar o escândalo: “Depoimentos de participantes do evento sugerem que o receio do fiasco os teria levado a incentivar alguns conhecidos a puxar a vaia no segundo dia”. Um golpe de mestre ou de marketing, fato já apontado por Mário da Silva Brito, no indispensável Antecedentes da Semana de Arte Moderna, primeiro volume da História do modernismo brasileiro, obra que infelizmente não teve continuidade.  

Livros, ensaios, reportagens, artigos, dissertações e teses ajudaram a construir uma visão multifacetada do marco inicial do modernismo. O livro de Marco Augusto Gonçalves serve para atenuar a visão acrítica sobre um mito da cultura oficial brasileira. A reconstituição passo a passo dos acontecimentos questiona verdades aceitas como incontestes, lacunas, deturpações. Torna-se uma referência importante para fugir a um evento reinventado constantemente ao longo do tempo pelos próprios participantes e por parcela significativa da crítica. A Semana de Arte Moderna é um mito móvel, informe, afetivo. Não pode ser apreendida apenas pela leitura de sua programação, pois tanto guarda organização quanto improviso, vale tanto pela presença quanto por ausências e esquecimento. Nela, no entanto, dificilmente encontramos as marcas de ruptura. Foi preciso um trabalho notável para reinventá-la como dias extraordinários de inovações estéticas e de propostas radicais.
Por ser uma manifestação flutuante, autêntico ponto de cruzamento de linhas de chegada e de partida, assumiu uma dimensão extraordinária, inscrita como nascente do pensamento e da sensibilidade que ainda nos regem. A leitura do livro ajuda a desmontar fantasias sobre os três dias mágicos e revolucionários de noventa anos atrás, apaga a lenda para nos restituir a história. Não obstante, a Semana nunca será aprisionada ao ano de 1922. Sempre viverá miticamente em fuga, o que só aumenta o desejo de querer inaugurá-la. Estranha semana, seus dias só transcorreram em anos posteriores.


     1922: a semana que não terminou.
      Marcos Augusto Gonçalves
      Companhia das Letras

      










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Dois caminhos para o romance *



* Resenha publicada no Jornal do Brasil, em 30/01/2012

Orhan Pamuk, romancista turco que conquistou o Nobel de literatura em 2006, já é bem conhecido entre nós, fato comprovado pelo sucesso de público e de crítica de livros como NeveIstambulMeu nome é vermelho, entre outros. Agora o autor nos revela algumas reflexões sobre o romance, forma literária nascida e desenvolvida sob o signo da crise, valendo-se de tríplice experiência: a de leitor privilegiado de prosa ficcional, a de criador de narrativas literárias e a de receptor de textos teóricos. Disso não resulta nenhum tipo de manual, história ou teoria, mas uma enriquecedora investigação do universo ficcional.

O romancista ingênuo e o sentimental reúne seis conferências de Pamuk organizadas para o ciclo Charles Eliot Norton Lectures, da Universidade Harvard, ativo desde 1926, do qual já resultaram outras obras importantes, como Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Ítalo Calvino, Esse Ofício do Verso, de Jorge Luis Borges, Seis Passeios pelo Bosque da Ficção, de Umberto Eco, Os Filhos do Barro, de Octavio Paz; O Testemunho da Poesia, de Czesław Miłosz, O Uso da Crítica e o Uso da Poesia, de T. S. Eliot. O livro  revaloriza o clássico de E. M. Forster,  Aspectos do romance, também originalmente uma série de  conferências proferidas em Cambridge.

Pamuk considera Ana Kariênina, de Tolstói, o maior romance de todos os tempos. Chega a destacar o  episódio da viagem de trem da protagonista de volta a São Petersburgo, após conhecer o jovem oficial Vronski, em Moscou, para ilustrar as suas ideias. A seu juízo, a passagem é primorosa por propiciar ao leitor entrar na história com os olhos de Anna Kariênina. Isso significa alcançar a plenitude da recepção da prosa ficcional: “O prazer real de ler um romance surge com a capacidade de ver o mundo não a partir de fora, mas pelos olhos dos protagonistas que habitam esse mundo”.

O título adotado desloca para o universo ficcional conceitos originalmente voltados para a poesia, elaborados por Friedrich Schiller no ensaio “Sobre a poesia ingênua e sentimental”. Constrói-se, assim, uma diferença fundamental entre dois tipos de leitores e autores de romance: os “ingênuos”, “que não estão nem um pouco preocupados com os aspectos artificiais da escrita e da leitura de um romance”; e os “sentimentais” ou “reflexivos”, “os leitores e romancistas que se fascinam com a artificialidade do texto e seu malogro em alcançar a realidade e que dão muita atenção aos métodos empregados na escrita de um romance e à maneira como nossa mente funciona quando lemos”. 

Ao refletir sobre uma das formas mais produtivas da cultura ocidental, Pamuk  não esconde a condição de escritor situado em um país sem forte tradição romanesca, o que não o impede de, fugindo ao universo eurocêntrico de Forster e Lúckacs, inscrever a periferia numa forma literária globalizada, considerada por Henry James como “a mais independente, a mais elástica, a mais prodigiosa de todas”.  O gesto político, portanto, vale para as narrativas asiáticas, africanas e latino-americanas, marcadas, de modo mais intenso, pela tensão entre o local e o universal presente desde a origem do romance. 

A leitura de romances implica algumas operações mentais importantes arroladas pelo romancista: o acompanhamento da narrativa e a tentativa de descoberta do significado e da ideia principal, a transformação de palavras em imagens mentais, o confronto entre texto e realidade, avaliação estética e moral, a sensação única de realização advinda da cumplicidade e do enriquecimento pessoal propiciado pela leitura e a busca do centro secreto do romance. O último ponto recebe um tratamento especial do autor de O museu da inocência.

Pamuk não se preocupa em formular respostas, mas em refletir sobre as questões que considera fundamentais. Deixa claro que esse centro não é de fácil identificação, pois é aquilo que transforma propriamente um texto em romance. Não obstante, afirma que fica distante da superfície da história: “Imaginamos que se situa no plano de fundo e é invisível, difícil de localizar, elusivo, quase dinâmico”. Dele emana a força que prende o leitor a cada detalhe da obra, buscando nas minúcias, nas personagens, nas ações, na trama ou  no cenário chaves de acesso ao centro de gravidade da narrativa.

É a presença de um  centro que propicia a sensação de profundidade e a ilusão num universo tridimensional, além de separar o romance do poema épico, da novela medieval ou da tradicional narrativa de aventuras. 

A natureza do centro é necessariamente ambígua: “A ambiguidade de sua localização nunca é algo ruim; ao contrário, é uma qualidade que nós, leitores, exigimos, pois, se o centro é óbvio demais e a luz é muito forte, o significado do romance se revela de imediato e o ato de ler se torna repetitivo”.

Se E. M. Forster considerava que “o teste final de um romance será nosso afeto por ele”, Pamuk coloca como prova do valor de uma narrativa romanesca “o poder de provocar a busca por um centro”.  Daí discordar do ensaísta inglês para o quem as personagens corresponderiam ao núcleo do romance, dominando a trama, o cenário e o tema.


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Quando a morte entra em campo



O relançamento de Quando fui morto em Cuba, de Roberto Drummond (1933-2002), trinta anos após o surgimento da primeira edição, propicia uma excelente oportunidade de reavaliação crítica da obra do contista mineiro. O livro encerrou o ciclo inicial de sua produção, conhecido como “Ciclo de Coca-Cola”, formado por A morte de D. J. em Paris (1971), com o qual ganhou, em 1975, o Prêmio Jabuti de revelação, O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado (1978) e Sangue de Coca-cola (1980).

Nos dez contos da obra de estreia, fantasia e realidade misturam as suas tintas e lançam a denominada literatura Pop no Brasil, em narrativas desconexas, infladas de referências a ícones da cultura de massa, expondo comportamentos e linguagem ácidos em relação aos padrões dominantes, coladas à realidade de uma juventude tensionada entre opressão político-existencial e desejo de liberdade irrestrita. São contos-colagens que oferecem ao leitor uma visão crítica do momento histórico ainda sombrio.

O quarteto inicial adquiriu importância por ser uma referência da literatura pop no Brasil, conjugado à tradição literária, formando um mosaico genérico alimentado pela indústria cultural, sem preocupação com contenção formal e próximo da vida cotidiana em seus limites e delírios, processos trazidos pelo autor do jornalismo em que exerceu as funções de cronista esportivo. O precário e a urgência da escrita não ocultam a sombra dominadora da morte, presença constante nos textos do autor.


As histórias densas, fortes, entre o refluxo das ilusões armadas e a dissipação da contracultura, ao apropriarem-se de materiais da cultura de massa, criam um ritmo ágil e um vigor narrativo capazes de conferir validade a conhecida sentença de Cortázar: “No combate entre um texto e seu leitor, o romance ganha sempre por pontos, enquanto o conto deve ganhar por nocaute.”

Apaixonado pelo Atlético Mineiro, morto ao sofrer um ataque cardíaco durante o jogo entre Brasil e Inglaterra na Copa de 82, Roberto Drummond pertence ao reduzido núcleo de autores brasileiros que souberam explorar esteticamente o mundo do futebol.

Quando fui morto em Cuba (1982) marca o fim da fase inicial do autor. Em uma espécie de caleidoscópio narrativo, traça um extenso painel de uma sociedade marcada pela violência e pelo arbítrio. Os temas vão da solidão à ação política e incorporam-se a uma profunda análise do processo de perversão, de deslocamento de ideias e de arremedo de democracia nas três décadas finais do século passado. Os textos foram dramatizados para teatro nos anos 80. Em 2007 foram aproveitados pela TV Minas na produção de uma minissérie de 18 capítulos.

A partir de Hitler manda lembranças (1984) sua prosa ganhou maior complexidade. Em 1991, com o romance Hilda Furacão, transformado em uma minissérie que marcou época na televisão brasileira graças ao talento de Ana Paula Arósio e à adaptação de Glória Perez, o autor adquiriu reconhecimento nacional.  A projeção televisiva criou um rótulo indesejável do qual sempre tentou escapar: “- Sou um eterno refém de Hilda Furacão”.

Os textos de Quando fui morto em Cuba são dispostos numa sequência temporal análoga à de uma partida de futebol. Organizam-se em duas partes: “Primeiro” e “Segundo Tempo”, simetricamente constituídas de oito narrativas cada, separadas por um intervalo inusitado, composto pelo conto “Últimos instantes do grande Heleno de Freitas no hospício de Barbacena”, no qual o narrador assume a forma de um enlouquecido locutor esportivo que, valendo-se de clichês, linguagem publicitária, citações de artistas, jogadores e políticos, entrevista no ritmo ofegante daquelas feitas no decorrer das transmissões esportivas, narração de um jogo alucinado e até de uma miraculosa “Oração ao Grande Heleno de Freitas, o santo da felicidade”, realiza uma crítica devastadora a um país privado de liberdade, pois o autor do gol mágico, capaz de resolver todas as nossas mazelas, além de ter o gol anulado, é fuzilado em campo: metáfora do silenciamento de vozes não-canônicas. O final do jogo é antológico pela denúncia, irreverência e loucura.

Descrito como “uma reedição física de Rodolfo Valentino e Rita Hayworth”, chamado pelos adversários de Gilda, transformado em diversas mercadorias (de bonés a xampus), associado anarquicamente a figuras como Che Guevara, Maria Lúcia Petit, Roque Dalton, Ângela Diniz, Glauber Rocha, John Garfield, numa inserção de pequenos anúncios, o conto guarda, na justaposição de suas múltiplas referências, paródias e paráfrases, uma empenhada dimensão utópica.

O primeiro e o último conto, ambos intitulados “Quando fui morto em Cuba”, correspondem a uma variação da mesma jogada cujo nome serve de título ao livro. As duas narrativas expõem visões diferentes de uma mesma história, uma versão erótica e outra política, ambas nucleadas em torno da morte do protagonista. Com essa arquitetura textual, o autor expõe com nitidez, na estrutura circular da obra, a presença obsessiva da morte em todas as histórias. Nas duas versões, um tio,  depois de morto, assassina o protagonista, a quem designava como Marta Rocha, por motivos fúteis: no início, por causa dos olhos verdes da vítima; no final, por não perdoar um drible desconcertante do sobrinho.

Não cabe nos limites dessa resenha um tratamento aprofundado de todos os contos, mesmo daqueles mais apurados, como “Camarão grelhado”, crua exposição da indiferença da elite, ou “O rio é um deus castanho”, estilhaçamento de um filho entre a tensão permanente do leitmotiv da morte do pai e a atração irresistível por uma mulher nos 35 quadros do texto. No entanto, vale a pena ler com atenção redobrada “Por falar na caça às mulheres”, narrativa magistral de fato extraído da crônica social e policial, o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, em texto ricamente trabalhado em oitos planos narrativos, transformando o factual, por meio da alquimia da linguagem, em obra literária. O crítico russo Tomachevski  já afirmava que “a introdução de material extraliterário numa obra deve justificar-se por sua novidade e individualidade a fim de que não se oponha aos outros constituintes dela. É preciso falar do antigo e do habitual como do novo e do não habitual. O usual deve ser tratado como insólito.”

Quem lê os contistas brasileiros surgidos a partir da década de 80 percebe com muita nitidez a matriz drummondiana em um número muito grande de novos autores. Isso significa vitalidade, força e valor de uma prosa que ainda permanece no vigor de sua estranheza.


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Um detetive muito louco * 


   
* Resenha publicada no Jornal do Brasil em 10/11/2011


“O mistério da cripta assombrada”, de Eduardo Mendoza, é um romance extremamente divertido e saboroso que se lê de um fôlego só. Sucesso de público e de crítica, a obra, lançada em 1978, faz parte dos programas escolares espanhóis. Trata-se, na verdade, da primeira narrativa de uma trilogia da qual fazem parte dois livros ainda não lançados entre nós: “Laberinto de las aceitunas” e “La aventura del tocador de señoras”. Os outros livros do autor catalão já traduzidos entre nós são “A cidade dos prodígios” e “A assombrosa viagem de Pompônio Flato”.

O anônimo protagonista da narrativa é retirado de uma partida de futebol no manicômio onde fora internado e conduzido a uma reunião com um seleto grupo, formado pelo doutor Sugrañes, responsável por seu tratamento, pelo delegado Flores, que efetuara a sua prisão, e por uma freira do colégio das madres lazaristas de São Gervásio. 

A reunião serve como apresentação do problema a ser solucionado no decorrer da história: uma aluna desaparecera certa noite para reaparecer dois dias após sem que soubesse explicar aonde fora levada e como ocorrera o misterioso sumiço, repetindo um fenômeno ocorrido há seis anos. O delegado, ao final da exposição do caso, revela com crueza as razões da escolha de um suposto alienado para solucionar o caso: “Precisamos (...) de uma pessoa conhecedora dos ambientes menos gratos da nossa sociedade, cujo nome possa se sujar sem prejuízo de ninguém, capaz de realizar por nós o trabalho e da qual, chegada a hora, possamos nos desembaraçar sem estorvos”. Em troca da colaboração, promete a liberdade ao encarcerado. Promessa não cumprida ao final.

As razões que elevaram um louco anônimo às funções de investigador policial não escondem, no entanto, a falência do próprio delegado, impotente para solucionar os dois casos de desaparecimento. O detetive improvisado é uma paródia aos estereótipos detetivescos – dedutivos, cerebrais, psicológicos, violentos, inescrupulosos etc. Não se situa apenas fora do universo investigativo, muito mais do que isso: é um indivíduo invisível, recolhido à zona sombria dos párias sociais. Contra todas as expectativas possui, no entanto, consciência de sua singular sagacidade ao apresentar-se como “um louco, um malvado, um delinquente e uma pessoa de instrução e cultura deficientes, pois não tive outra escola senão a rua nem outro mestre senão as más companhias de que soube rodear-me, mas nunca tive, nem tenho nada de bobo:...”  

A ação se desenvolve em 1975 numa Barcelona renovada pelos ventos da mudança política representada pelo fim do franquismo, mas exibida em ângulos cinzas e negros. As andanças do louco investigador expõem os meandros do submundo barcelonense, levando-o a deparar-se com cadáveres, falsificar identidades, a provocar muita confusão até conseguir finalmente dar conta do caso diante da falência do sistema policial.

Um dos trunfos do livro se deve ao fato de o protagonista, que se confessa analfabeto e ex-delinquente, expressar-se com um refinamento digno de eruditos e de alterar seu discurso em relação às diferentes personalidades que falsifica, além de exibir rica sabedoria popular e precisa descrição dos meandros da cidade. O detetive de Mendonza age com o desembaraço daqueles que precisam de muito jogo de cintura para sobreviver, por isso é safo na ação e de lábia envolvente. Com um comportamento impulsivo, imprevisível e repleto de violações à lei, o louco detetive dá conta da tarefa proporcionando momentos hilários ao leitor.

O interno não é propriamente solto para executar a investigação, mas completamente abandonado: sem dinheiro, em trapos, sem lugar para residir, alimentar-se e cuidar da própria higiene. Vira-se como pode, come o que encontra, surrupia ou lhe fornecem. Recorre à irmã prostituta no bairro Chinês. Vive de golpes, surrupia revistas para ficar bem informado e furta objetos para manter-se.  É hilariante o modo como consegue embriagar e enrolar o jardineiro do colégio das freiras para obter informações. O leitor seguramente há de admirar a argúcia e o engenho transgressor desse detetive pícaro.

A narrativa leve e bem divertida consegue notável equilíbrio na  múltipla articulação em que é constituída. Temos, assim, um romance policial que se alimenta da forma do romance negro, carregado de humor ácido, corrosivo e muito singular; do esperpento, estilo desenvolvido por Roman Valle-Inclán e marcado pela deformação grotesca da realidade destinada à produção de uma crítica à sociedade; do modelo de humor cervantino; e do romance picaresco, de rica tradição na literatura espanhola. Assim, o romance quebra o predomínio da sisudez, da tensão psicológica contínua, do exercício puramente cerebral e da violência, sem deixar de recorrer a todos os recursos típicos do gênero policial.

Valendo dessa estrutura híbrida, de ritmo ágil e repleta de peripécias, Mendoza realizou uma farsa burlesca e uma sátira social em que critica os ricaços de Barcelona, a Igreja e os políticos de uma época muito concreta da história espanhola: a transição para a democracia. 

 Desse amálgama resulta o surgimento de um anti-herói, um detetive incomum, próximo à figura do malandro, nosso velho conhecido. Mas com uma linguagem curiosamente exagerada e alambicada, uma paródia extemporânea à fala dos círculos cultos barcelonenses. 


No prefácio do livro, Mendoza revela influência de Ross McDonald e esclarece que escreveu tudo no prazo de uma semana como uma forma de superar a síndrome do segundo romance, enquanto sedimentava a criação daquele que ainda é o seu melhor trabalho – “A cidade dos prodígios”. Talvez isso explique a leveza, a coesão, o humor e o acerto de “O mistério da cripta amaldiçoada”, que peca apenas por uma descida de tom na conclusão das aventuras do louco investigador. Se parece ter faltado uma lapidação mais acurada ao final, a leitura do livro vale pela qualidade e pelo inusitado do texto, além das risadas que arranca do leitor.


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Heine na veia *




   
* Resenha publicada no Jornal do Brasil, em 18/09/2011


Apesar de alguns poemas dele terem sido traduzidos por Gonçalves Dias, Manuel Bandeira e Décio Pignatari, Heinrich Heine permanece ignorado no Brasil. Finalmente essa penúria poética foi rompida com o surgimento de uma obra capaz de colocar de modo vigoroso o último romântico em circulação na cena poética contemporânea. O mérito desse empreendimento deve ser creditado ao poeta, designer gráfico e produtor de mídia interativa André Vallias, responsável pela publicação de Heine hein? – poeta dos contrários, uma caprichada edição bilíngue com rico estudo introdutório, notas preciosas e um utilíssimo índice remissivo. 

 A qualidade do trabalho de tradução é avalizada, no texto da orelha do livro, por ninguém menos do que Augusto de Campos, excepcional poeta e tradutor, para quem a proposta de André Vallias é uma bem sucedida “transcriação”, ou seja, constituição, na língua de chegada, do impacto e da criatividade originais. O transbrasileiramento recria a musicalidade característica de Heine ao som do ritmo de sambas antigos, inovando e preservando o traço essencial do autor.

A caprichada edição oferece uma grande riqueza de material ao longo de suas mais de 500 páginas. Os 120 poemas escolhidos são entremeados por diversos textos, tanto do autor quanto sobre ele. Retratos traçados por escritores contemporâneos ao poeta, resenha, poemas de todas as suas fases, epistolografia e dados biográficos desenham um riquíssimo painel ao qual o organizador teve o cuidado de acrescentar uma crônica do heineano Machado de Assis. 

Heinrich Heine, ao lado de Goethe, Hölderlin e Rilke, contribuiu para a projeção excepcional da poesia alemã. Passou grande parte de sua vida na França, a ponto de ser considerado “o mais francês dos alemães”. Gérard de Nerval acertou em cheio ao descrever  a natureza heineana como proteica, característica bastante apropriada à multiplicidade de temas e recursos provenientes da tensão constante entre romantismo e antirromantismo; ateísmo, judaísmo e catolicismo; cultura alemã e universalismo. Aluno de August Von Schlegel, de Franz Bopp e de Hegel, conviveu com o barão de Rothschild, Balzac, Alexandre Dumas, Vitor Hugo, Chopin, George Sand, Berlioz, Théophile Gautier, Franz Liszt, Gérard de Nerval. Exerceu influência sobre Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud.

Depois de participar ativamente das questões do seu tempo, defendendo as ideias mais progressistas e revolucionárias, passou os oito últimos anos à base de morfina. Vitimado pela sífilis, morreu em 1856.

Dois poemas devem chamar a atenção do leitor brasileiro. O primeiro é “O rapaz ama uma jovem” (O rapaz ama uma jovem / Que deseja outro rapaz; / Este de outra se enamora, / Lá se vão ao juiz de paz. // A donzela então decide / Desposar, só por despeito, / O primeiro que ela avista; / O rapaz ficou desfeito. // É uma história tão antiga, / Mas que sempre se renova; / E quem já passou por isso / Pôs seu coração à prova.), apontado por André Vallias como possível matriz do drummondiano “Quadrilha” (João amava Teresa que amava Raimundo...), embora nada impeça uma filiação de ambos à estrutura comum  de desencontros amorosos expostos em relação em cadeia. O outro é “Navio negreiro”, de 1853, traduzido há muitos anos por Augusto Meyer, poema inspirador de “O navio negreiro”, escrito por Castro Alves em 1868.  

Também notável foi a influência de Heine sobre Álvares de Azevedo, particularmente nas composições do nosso maior ultrarromântico marcadas pelo coloquialismo irônico, como “Namoro a cavalo”. André Vallias ainda rastreia a sombra de Heine em Sousândrade e no poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira.

O poeta dos contrários foge a qualquer classificação. Seu ceticismo, a ironia corrosiva, a postura crítica, a sátira, a irreverência convivem com uma sensibilidade romântica, que encanta pela simplicidade e beleza em suas formas moldadas no tom da canção popular. Seus poemas deram origem a mais de 10000 composições, entre as quais se encontram obras de Schubert, Schumann, Mendelsohn, Brahms, Grieg, Wagner, Hugo Wolf, entre outros.

Graças à proximidade entre a sua poesia lírica e a música popular, o Livro das canções tornou-se um dos maiores best-sellers da literatura alemã. Walter Benjamin chegou a apontá-lo como um dos três livros mais importantes da poesia ocidental. A ele pertence o poema “A Lorelai”. Musicado por Friedrich Silcher, tornou-se uma das canções mais populares da Alemanha. Os versos referentes à magia do canto da sereia do Reno podem funcionar como uma síntese de toda a produção poética de Heine - “E as canções que cantarola / Arrebatam os sentidos”.

Espírito inquieto e atento aos acontecimentos europeus, Heine parece ter advertido as gerações posteriores sobre os horrores do século XX: “onde queimam livros, / No final, também hão de queimar homens”. A alta consciência política permitiu criar os momentos mais altos da poesia política em alemão, basta ler poemas como “Ratos Retirantes”, “Miserê”, “Lenda do Castelo”, “Esperem Só” e “Os Tecelões da Silésia”, este último, motivado por uma rebelião violentamente reprimida, transformou-se em um dos hinos mais famosos do movimento operário internacional. 

A distinção entre “helenos” e “nazarenos”, formulada em 1837, e posteriormente aproveitada por Nietzsche na criação dos conceitos de apolíneo e dionisíaco, reaparece na composição “Último canto”: “Contrários justapostos numa pedra: / Da Hélade, o prazer; e da Judeia, / A ideia-Deus! (...)”. Divisão reafirmada ao final do poema: “Sempre estará cindida a humanidade / Em dois partidos – bárbaros e helenos”. 

Heine teve nítida consciência da mudança representada por sua obra na história da poesia alemã, por isso pôde afirmar com convicção: “comigo se encerra a velha escola lírica dos alemães, enquanto, ao mesmo tempo, a nova escola, a poesia moderna alemã, era por mim inaugurada”. Em outra passagem, sintetizou a diferença entre as duas escolas: “Agora a poesia não é mais objetiva, épica e ingênua, mas subjetiva, lírica e reflexiva”.

André Vallias soube não apenas traduzir com maestria, mas também captar o caráter seminal da poesia de Heine: “Foi o primeiro poeta verdadeiramente midiático do século XIX, o primeiro a se apropriar com estratégia das redes de influência, das engrenagens do jornalismo e dos melindres do mercado editorial, sem jamais trair, no entanto, seu projeto iluminista de ‘libertação da humanidade’. Foi o mais autêntico – se não o único – utópico esclarecido de seu tempo. O maior contrabandista de ideias. Nele confluem a Aufklärung, o Sturm und Drang, a Revolução Francesa e a Escola Romântica: eis o quadrívio que configurou o artista pop inaugural”.

O grande poeta não correu o risco de ser mumificado, lido apenas como registro histórico e monumento de textos embalsamados. Heine, hein? não é arquivo, mas o poeta vivo – 
Heine na veia, como percebeu Ezra Pound.




Heine, hein? - poeta dos contrários
Edição bilíngue - português/alemão
Introdução e tradução - André Vallias
Editora Perspectiva
544 páginas


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Escola de Desaparecimento * 

* Resenha sobre Jakob von Gunten, de Robert Walser, publicada no Jornal do Brasil, em 25/07/2011. 
Aos poucos a obra de Robert Walser (1878-1956), escritor suíço de língua alemã, vem sendo divulgada no Brasil. Depois de O ajudante, lançado pela Arx, em 2003, a Companhia das Letras nos traz, na tradução de Sergio Tellaroli,  Jakob Von Gunten, a obra-prima do autor, publicada originalmente em 1909. 

Mantido à margem durante décadas, Walser conseguiu conquistar o apreço de grandes autores, como Kafka, Hermann Hesse, Musil, Canetti, W.G. Sebald, Coetzee, Benjamin e Vila-Matas, o último dos quais se inspirou na trajetória walseriana ao criar  Doutor Pasavento, romance que despertou o interesse do leitor brasileiro pelo autor de Irmãos Tanner. 

Walser levou uma vida errante, entre a Suíça natal e Berlim, sempre no exercício de funções modestas. Frequentou uma escola para criados, ofício que chegou exercer em um castelo, experiência aproveitada em seus textos. Trabalhou em banco, foi auxiliar de escritório, fracassou na carreira de ator, mas deixou um legado literário cada vez mais valorizado. 

Loucura e tragédia formaram uma atmosfera familiar ao autor: a mãe e um irmão suicidaram-se, outro irmão, vítima de distúrbios psicológicos, morreu internado em uma clínica. Walser, que também tentou o suicídio, sofria de insônia, ouvia vozes, era acometido de frequentes ataques nervosos e tornava-se agressivo quando bebia. Depois de uma crise mais intensa, foi internado num hospício. Seus últimos 27 anos transcorreram no isolamento de clínicas especializadas, até ser encontrado morto no natal de 1956, após um dos seus longos passeios pelas cercanias do sanatório de Herisau. Morte similar à de uma de suas personagens em Irmãos Tanner.

A partir de 1924, passou a adotar um processo que denominou o “método do lápis”: produz seus textos apenas a lápis sobre diversos tipos de suporte – envelopes, papel de embrulho, folhas de calendário, cartões de visita etc. -, valendo-se de uma caligrafia microscópica, baseada em formas abreviadas de antiga escrita alemã, com a qual fazia a escrita transbordar os limites do espaço,  num experimentalismo próximo a Joyce. Esses textos, conhecidos como microgramas,  só foram decifrados em 1972, data a partir da qual se deu a redescoberta de sua obra, como o último romance, Os salteadores, escrito entre 1925-1926. 

Em 1929 abandonou de vez a literatura. Provocado por um admirador sobre a possibilidade de voltar à criação, saiu-se com uma frase surpreendente: “Estou aqui para enlouquecer, não para escrever”. Apesar de plenamente recuperado, recusou-se a sair de Herisau.

Jakob von Gunten é um diário sem datação, estratégia narrativa capaz de sustentar a junção de fragmentos nos quais, mais do que uma história propriamente, se esboça um trajeto assinalado pela dispersão e pela exaltação da insignificância.

O protagonista matricula-se no Instituto Benjamenta com a finalidade de aprender a servir. Convive com rapazes da mesma idade, todos submetidos a uma educação que reduz as aspirações de ascensão social a algo próximo à invisibilidade. A atração pelo mínimo aparece logo no início da narrativa: “Aqui se aprende muito pouco, faltam professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, vamos dar em nada, ou seja, seremos, todos, coisa muito pequena e secundária em nossa vida futura. As aulas a que assistimos visam sobretudo a inculcar-nos paciência e obediência, duas qualidades que ensejam pouco ou mesmo nenhum sucesso”.

No Instituto todos recebem uma única aula – sobre como um rapaz deve se comportar –  e leem o livro O que pretende a Escola Benjamenta para rapazes.
A história de Walser subverte o bildungsroman, forma típica da literatura alemã, na qual é ficcionalizado um processo de formação ao término do qual as personagens ganham peso, volume, consistência. Jakob von Gunten constrói-se como esvaziamento irônico da crença em amadurecimento.

O conhecimento da experiência humana como potência máxima da negatividade une o início e o fim da permanência do jovem Jakob no Instituto. “De uma coisa tenho certeza: no futuro, o que vou ser é um zero à esquerda, muito redondo e encantador”, revela o protagonista no primeiro dia. Constatação repetida no último parágrafo do livro: “E, se eu me arrebentar e me arruinar, o que arrebentará e arruinará? Um zero à esquerda. Eu, indivíduo isolado, sou um zero à esquerda”. Difícil não confundir os trajetos do personagem-narrador e do autor. Difícil também  não pensar no fracasso beckettiano.

As conversas de Jakob com a única professora, Lisa Benjamenta, irmã do diretor do Instituto, são marcadas pela ambiguidade: respeito, obediência, veneração e desejo erótico parecem habitar o coração e a mente do jovem de modo confuso. Um erotismo latente também se instala em suas relações com Kraus, o aluno-padrão do servilismo.

O ambiente do Instituto e os próprios Benjamenta são descritos inicialmente em tom misterioso. Jakob justifica a falta de professores afirmando que estão mortos ou dormem. No entanto, mais adiante, em outra anotação, o narrador mistura seus antigos professores aos do Instituto, valendo-se de um clima onírico e de confusão mnemônica para intensificar a ambiguidade e deixar o sentido em aberto. 

A varinha branca usada pela professora na sala de aula e a revelação de um misterioso espaço no interior do estabelecimento reforçam a aura mágica de Lisa, numa referência às narrativas dos contos de fada. Apesar da viagem onírica, guiada pela mestra, aos “aposentos interiores”, Jakob posteriormente constata que os cômodos onde vivem os Benjamenta são desprovidos de qualquer mistério. A descrição fantasiosa, os paradoxos, o labirinto destinado à perda do indivíduo, no entanto,  explicam porque Musil colocou Kafka na linhagem de Walser.

Ambígua também é a tensa relação entre o Sr. Benjamenta e Jakob. Da descrição daquele como um gigante um tanto rabugento no início, comparado a pupilos vistos como pigmeus, até ao final, em que o gigante torna-se súplice e fica nas mãos de Jakob, há um trabalho de demolição do mito de grandeza, de domínio e de hierarquia. 


O percurso de Walser é o caminho do desaparecimento, uma experiência radical de esteticização negativa da própria existência, luz lançada em páginas marcadas por um estranhamento que desemboca em um silêncio assustador. Walser parece tê-las escrito com os passos erráticos e travessos de suas caminhadas nas quais vislumbrou algo capaz de magnetizar o leitor com a familiaridade de sua estranheza.


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Dublinesca, a elegia de uma era * 


 


Resenha publicada no Jornal do Brasil, dia 25/06/2011


No início de Suicídios exemplares, “Viajar, perder países” (título tomado de empréstimo a Fernando Pessoa), o romancista catalão Enrique Vila-Matas apresenta imagens que servem como referências ao seu processo ficcional: o autor como vagabundo, a escrita como inscrição urbana (grafite), a viagem como metáfora textual e suas ramificações – mapas, caminhos, perdas e labirintos, a leitura como injeção subjetiva de imaginária viagem do leitor no trajeto sempre em fuga do texto.

Também em seu último romance lançado pela Cosac Naify entre nós, Dublinesca, o narrador atribui ao protagonista, na parte inicial, uma teoria do romance em torno de cinco pontos: “intertextualidade; conexões com a alta poesia; consciência de uma paisagem moral em ruínas; ligeira superioridade do estilo sobre a trama; a escrita vista como um relógio que avança”. Se a teoria logo é abandonada pelo personagem ao lembrar-se de reflexão pessoana sobre o sagrado instinto de não seguir nenhuma teoria e pela comemoração da morte de todas as teorias (inclusive a dele), não deixa de constituir-se em referência essencial à compreensão do processo narrativo de Dublinesca.

O fato de os cinco pontos do romance do futuro terem sido formulados a partir da leitura de uma obra tida como ultrapassada, Le Rivage des Syrtes, de Julien Gracq, permite considerar o último livro de Vila-Matas uma inscrição na móvel fronteira entre mundos próximos e distintos, cujas formas, no entanto, convivem não só lado a lado, mas por vezes são desdobramentos de formas anteriores. O arcaico e o moderno, desse modo, não operam ruptura, mas surgem e sucumbem em fluxo. O mundo em que se vive é sempre o final, essa é a sensação cíclica de sucessivas gerações frente ao acúmulo de ruínas do passado e à angústia do que virá.

Ninguém vive com mais intensidade a crise de um mundo em extinção do que o protagonista do romance – Samuel Riba –, de personalidade romântica, irônica e nostálgica, que se considera o último editor de textos literários e vive imerso numa atmosfera de desencanto. Em meio à depressão motivada por três fatores importantes – o  fim de suas atividades profissionais, causado pelo esvaziamento da alta literatura, substituída por uma enxurrada mercadológica de narrativas góticas; o progressivo distanciamento da esposa transformada em budista; e o afastamento dos pais –, resolve empreender o que denomina o “salto inglês”, ou seja, uma viagem ao universo anglo-saxão, representado por Ulisses, de James Joyce, livro-espelho de Dublinesca. Neste, Vila-Matas, sem remeter à linguagem e à técnica joyceanas, reensaia cenas do autor de Dublinenses.

Riba, com a “tendência de ler a vida como um texto literário”, consegue convencer alguns amigos a participarem de uma viagem a Dublin a fim de celebrarem o funeral da era da imprensa, numa paródia ao enterro do proletário alcoólatra Paddy Dignam, descrito no sexto capítulo de Ulisses. Em Dublin, reproduzem a dança dos personagens joyceanos pelas ruas da cidade num cortejo-homenagem impregnado de fantasmas.

O título do romance, inspirado no poema “Dublinesque”, de Philip Larkin, e o tema significam um desvio no percurso francófilo do autor, num jogo de máscaras com o narrador e o protagonista. O poema de Larkin trata do enterro de uma velha prostituta dublinense acompanhado apenas por algumas colegas de ofício. Assim, Riba e seus amigos, em Dublinesca,  participam tanto das pompas fúnebres da literatura (a puta decadente do poema) em pleno bloomsday (dia 16 de junho, data da jornada de Leopold Bloom, comemorado mundialmente em homenagem a Joyce) realizado em Dublin, quanto da celebração do romance que assinalou o auge da época que se encerra.

O desaparecimento daquilo que é vital à existência humana reduz o mundo a um grau insuportável de inabitabilidade. Esse sentimento ecoa na declaração de total dependência de Riba, ex-alcoólatra, à literatura: “o mundo fica muito chato ou, o que dá no mesmo, o que acontece nele carece de interesse se não for contado por um bom escritor”. Hikikomori, palavra japonesa que significa isolamento, usada para nomear autistas informáticos, imersos em completo retraimento social, é a maior ameaça ao ex-editor. É para escapar ao deserto e fugir ao apagamento de sua identidade que Riba promove a viagem a Dublin.

O centro de gravidade da obra é justamente o desaparecimento de uma época e o surgimento de outra. A ação narrativa gira em torno do funeral da era Gutemberg, do eclipse da arte literária e da ascensão da era digital. O mundo que evanesce, contudo, não provoca traumas, rupturas, apenas desencanto e nostalgia, perpassadas por uma crítica irônica à permanência de fantasmas no rastro do desaparecimento. Uma chuva contínua metaforiza a dissolução do mundo de Riba: “Chove sempre na alta fantasia, dizia Dante”. A chuva marca o apagamento de sua identidade e a sua consequente transformação naquilo que Stephen Dedalus, em Ulisses, denomina fantasma: “Um homem que desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de costumes”.
Escrito num tom elegíaco, Dublinesca tematiza a iminência do fim com recursos paródicos: “no nosso tempo o apocalíptico só pode ser tratado como paródia”. A equivalência entre personagens comprova o teor dessa citação: Riba e os companheiros de percurso, Javier, Ricardo e Nietzky, parecem réplicas vivas de Bloom, Simon Dedalus, Martin Cunningham e John Power, os personagens originais do cortejo fúnebre de 1904.
A exemplo de seus livros anteriores, Vila-Matas, entre Borges e Bolaño, insere uma rede extensa de citações tomadas à literatura, ao cinema e à cultura pop, com a diferença de que essa biblioteca pessoal incorporada à narrativa assume agora claramente a forma de dissolução, de despojos lançados como fragmentos nos quais a era que se vai luta pela sobrevivência do vigor de sua plenitude.
A obra de Vila-Matas guarda a propriedade do ensaísmo no interior do texto ficcional, mistura realidade e ficção, mobiliza uma biblioteca viva ao valorizar a dimensão intertextual, borgeanamente inventa autores e referências, desarma o tom grave e solene com o uso do modo irônico e do cômico. Haverá um enriquecimento na injeção do sangue do ensaísmo na ficção literária? O que se ganha e o que se perde? A validade de qualquer recurso está condicionada à manutenção em alto grau da poiesis, da invenção, do próprio da arte, ou seja, incorporar a pulsação do ensaio enriquece uma obra desde que não promova o seu enrijecimento, a montagem de um molde narrativo a ser sucessivamente preenchido por novas camadas do mesmo. Esse risco felizmente não ameaça Enrique Vila-Matas, um especialista em driblar com a linguagem os acenos da morte.
Dublinesca é um romance com as obsessões já conhecidas pela legião de admiradores do autor: a ligação entre a vida e a literatura; a insatisfação que leva os personagens a assumirem identidades diferentes; o isolamento e o fim irremediável da condição humana; a ironia desnudadora de limites e aparências; a potência da negatividade na gênese da literatura; o ensaísmo ficcionalizado; a metalinguagem; a incorporação de uma biblioteca pessoal na construção da narrativa; a tentativa de apreensão daquilo que escapa, desaparece ou morre. De quebra, oferece o mais humano dos seus personagem e um nível de realização igual ou superior ao de Bartleby e companhia e de Doutor Pasavento.
Para o ex-editor decepcionado por nunca ter encontrado e publicado as obras de um gênio, capaz de ajudá-lo a descortinar um mundo novo, restará, mesmo no fim de tudo, a frase de Joyce no sexto capítulo de Ulisses: “Sempre aparece alguém que nunca se espera”.



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Suicídios exemplares, de Enrique Vila-Matas




É muito extensa a lista de autores que recorreram ao suicídio. Na literatura portuguesa, o gesto radical silenciou Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, entre outros. No Brasil, me recordo de Ana Cristina César e Torquato Neto. Em outras latitudes, foi o ponto final de Jack London, Virgínia Woolf,  Hemingway,  Stefan Zweig, Sylvia Plath,  Cesare Pavese, Hart Crane, Virginia Woolf,  Romain Gary, Ernest Hemingway, Jack London, Sylvia Plath,  Paul Celan, Serguei  Essenin, Vladimir Maiakóvski, Primo Levi, Paul Nizan, enfim, uma galeria impressionante de nomes ilustres. 

A morte, qualquer que seja a forma de sua presença, parece inscrita no próprio código da criação, talvez sirva mesmo para legitimar a arte como o movimento de fuga ao inexorável limite humano, uma desesperada escrita que tenta uma permanência negada pela dissolução promovida pelo tempo e suas duas sombras inseparáveis: a mudança e o esquecimento.

O suicídio é seguramente uma forma de grande complexidade. Uma afronta à onipotência da morte, um desafio à autonomia que ela revela ao exercer um domínio impiedoso  sobre nós. O gesto extremo redunda de uma escolha ou, paradoxalmente, da própria impossibilidade de caminhos. Podemos entender a referência artaudiana à morte de Van Gogh, “suicidado pela sociedade”.  Em qualquer caso, matar-se é manifestar o desejo de descontinuidade, um salto equivalente à geração da vida, ou seja, a anticriação, a radicalidade da criação como forma suprema da negatividade. Caminho de fuga que podemos trilhar de modo autônomo, como quem busca um beijo e um abraço, ou impelidos por forças superiores à nossa capacidade de resistência. De qualquer maneira, abreviamos a jornada rumo a um encontro obrigatório.

A morte só existe como linguagem. Acho que Heidegger disse isso ao escrever que “só os mortais podem ter a experiência da morte como morte”. Não me preocupo em buscar significado para algo que me assombra. Nem quero aqui aprofundar um pensamento que fere e sangra de tão incômodo. Permaneço no impasse apontado por Heidegger: “A relação   essencial entre morte e linguagem surge como um relâmpago, mas permanece impensada”.

Para Vila-Matas os suicídios exemplares são aqueles impossíveis, indefinidamente adiados, como observou com precisão o escritor argentino Alan Pauls na apresentação do livro, para quem o autor de O mal de Montano é “um hábil fabulador de ‘pulsões negativas’ (deixar de escrever, desaparecer, não ser ninguém)” e a reflexão sobre a morte ao longo do   texto não implica desistência, derrota, antes “é um princípio de potência: algo na vida range, se abre e começa a ser possível – algo desconhecido, que até então não tinha rosto nem forma, e que agora, de repente, parece exercer uma sedução irresistível – quando alguma das criaturas que povoam estas páginas se deixam possuir pela ideia de se matar”.

A ideia de suicídio é o centro irradiador das narrativas de Suicídios exemplares , de Enrique Vila-Matas, lançado 1991, na Espanha, e traduzido por Carla Branco em 2009 para a Cosac Naify.  A mesma editora já publicou no Brasil diversas obras do autor catalão: A viagem vertical (2004) – ganhador do prêmio Rómulo Gallegos -, Bartleby e companhia (2004), O mal de Montano (2005), Paris não tem fim (2007), Doutor Pasavento (2009) – ganhador dos prêmios da Real Academia Española (2006) e Mondello – Città di Palermo (2009) -,   e História abreviada da literatura portátil (2011). 

O próprio Vila-Matas ressaltou (em entrevista à revista Cult) a importância do livro para o desdobramento da sua narrativa: “É um Vila-Matas em estado puro, um livro respeitado até por meus inimigos. Além disso, é um claro precursor de Bartleby e companhia, já que narra histórias de pessoas que se retiram de uma atividade. Também precede Doutor Pasaventoporque no conto “A arte de desaparecer” se fala, pela primeira vez em minha obra, sobre o tema de recusar-se a publicar, o medo de sofrer a exposição pública como se fosse uma ofensa; uma sensação de desnudar-se e de humilhar-se como se estivesse diante de uma comissão médica militar uniformizada”.

No preâmbulo do livro, “Viajar, perder países” (tomado de empréstimo a Fernando Pessoa), o ficcionista catalão apresenta imagens que servem como referência ao seu processo ficcional: o autor como vagabundo, a escrita como inscrição urbana (grafite), a viagem como metáfora textual e suas ramificações – mapas, caminhos, perdas e labirintos, a leitura   como injeção subjetiva de imaginária viagem do leitor no trajeto sempre em fuga do texto.

Os dez contos que compõem o volume alimentam-se da exploração do terreno fronteiriço entre a vida e a morte, no limite nebuloso entre permanecer e abandonar, normalmente giram em torno do fracasso, da incapacidade, da irresolução. Percebo a força de uma narrativa do não em Vila Matas, desde o primeiro livro dele que li, Bartleby e companhia, onde, numa menção a Blanchot, o narrador diz,  quase no início da obra: “Apenas da pulsão negativa, apenas do labirinto do Não pode surgir a escrita por vir”.

“Morte por saudade”, o primeiro conto, começa com um olhar curioso da infância em busca da apreensão do mundo. Busca que não se completa, ou melhor, realiza-se como fuga ao inevitável sopro das contingências. O protagonista é um pintor incapaz de pintar. Apesar de jovem, de viver com uma bela mulher, de poder viajar para onde quiser, de amar as duas filhas, de ser dono de uma rede de tinturarias, de ter uma saúde de ferro, a sua vida é pura irrealização. Carrega na fase adulta o gesto de fuga da mendiga que o assustava na infância, por isso Horário Vega, seu melhor amigo, pode afirmar para ele: “Você foge da plenitude”. É por intermédio do amigo ainda que  se aproxima da ideia de suicídio, pois ouve o relato da morte do avô de Horácio: embora vitimado de paralisia, conseguiu desferir um tiro de escopeta na própria boca. Proximidade que se estreita com o suicídio do pai de Horácio, cuja família parece compor uma longa lista de suicidas.

O suicídio do protagonista não se cumpre, antes é um mergulho em um estado em que fronteiras temporais se apagam e a infância cruza os seus passos com o presente nas ruas de Lisboa. Ele parece usurpar ao amigo a vocação de suicida, como se a infância apontasse para uma incorporação da ideia de plenitude como um movimento cuja possibilidade só se dá fora dessa realidade. Sua irresolução, no entanto, o torna refém da saudade, o presente acontece em zona de refúgio, em rota de fuga. A morte pretérita torna real o imaginário do presente; atemporalizado, o presente propriamente entra em eclipse.

“Em busca de um parceiro eletrizante” conta a trajetória de um ator de carreira vitoriosa. Após conquistar a fama, o corpo sofre uma espécie de mutação, passa de uma “cômica e exagerada” magreza extrema à obesidade. O crescimento físico corresponde a um apagamento social: “Mas o infortúnio espreitava no ângulo mais iluminado de meu festivo jardim, e sem me dar conta, comecei a me abandonar”. A narrativa explora o despir-se de sonhos, construindo-se como uma narrativa de perda. Volta a Villa Nemo (óbvia referência a Jules Verne) para não encontrar o passado, não revivê-lo. Sem nostalgia ou piedade, com o auxílio de estricnina e muita ironia aguarda, sem ansiedade e sem ressentimento, o momento de reencontrar o falecido barão de Mulder a quem vendera a luxuosa propriedade, o parceiro eletrizante.

O suicídio como promessa eterna parece alimentar “Rosa Schwarzer volta à vida”. A morte por hesitação, decisão que não se cumpre, sempre adiada. Vigia do museu de Düsseldorf, Rosa Shwarzer parece atender ao convite oriundo do quadro de Klee, O príncipe negro, para ingressar no país dos suicidas. Defende-se da tentação, contemplando outro quadro. 

A criação tanto se aproxima quanto se afasta da morte, constituindo-se numa linha defensiva com a qual o indivíduo equilibra até onde é possível uma tensão cujo desfecho sabe muito bem qual será. 

A protagonista exercita a ideia do suicídio como uma forma de equilíbrio perigoso, risco completo, porém forte para atenuar o tédio e o cinza da existência, nítido na indagação: “Esta vida para quê?” Beber água sanitária, atirar-se pela janela, lançar-se à frente de um veículo, fazer um haraquiri com uma faca de cozinha, abrir o gás e imolar-se nas chamas, provocar a violência homicida do marido, nenhuma tentativa produz o efeito desejado.

A sétima e simbólica tentativa é um golpe de mestre do narrador. Rosa ingere o cianureto, fica bêbada ou sonha? Não pode resistir ao chamado do tambor dos suicidas. Ingressa na tela e é recebida triunfalmente pelo príncipe negro. Só que ela descobre, então, “que a irrealidade também é desagradável”, também apresenta coisas, criaturas e situações “estúpidas de propósito”, “vulgares”, “medíocres” como as da realidade. Suicida-se ao contrário, da morte para a vida. Atravessa o suicídio, como o narrador atravessa a morte. Do lado de lá do nada, do branco do papel, lá onde não existe vida, é de lá que vem a criação, as águas do inexistente irrigam a narrativa. 

 O professor Anatol, protagonista de “A arte de desaparecer”, em pleno dia da sua aposentadoria de uma longa e profícua carreira no magistério, confessa ter sempre vivido em surdina, na ponta dos pés, às voltas com uma incontrolável propensão à invisibilidade. Num exercício de autoanálise, afirma que “sempre tinha existido nele uma recusa total do sentimento de protagonismo”. Seu estranho trabalho consiste, por conseguinte, em ser artesão de perdas, num cultivo constante da arte de sombras.

Trabalho contínuo, obstinado, perfeccionista, a arte de desaparecer dissolve a radicalidade do suicídio ao longo de toda a vida. É a morte mínimalizada e fragmentada minuto a minuto, a morte ritualizada num processo criativo e sacrificial, verdadeiro rito com exigência de vítima, no caso, o próprio narrador. Tanto o autor quanto o narrador são perigosos homicidas; pensa-se a literatura como um espaço gerador de vidas duplas, múltiplas, construídas no imaginário, mas, na verdade, a arte instaura-se sobre a morte daqueles que a produzem, suga, esvazia uma dimensão para preencher com as ruínas de uma vida de carne e osso as formas abstratas organizadas pela linguagem.

Durante quarenta anos dedicados a tarefas didáticas, o escritor secreto produziu sete extensos romances sobre a tensa e explosiva linha situada entre o recolhimento e a exposição, exercitando a vida como malabarismo percorre a pé e a tinta uma linha bamba desconhecida por público e crítica, por amigos e pela família. Escrever é ser estrangeiro para produzir a escrita como linguagem familiar aos estranhos. O protagonista se faz passar por estrangeiro em sua terra natal, precisa negar a própria identidade para se aproximar do outro. O escritor queima o próprio rosto, exclui-se da urbe, abandona o país para poder encontrar o verdadeiro rosto, a cidade por onde se perde e o próprio país que carrega na língua e na memória.   

A modéstia do professor Anatol dissimula o cinismo que pavimenta o caminho da busca. Procura-se uma espécie de novo santo graal cujo valor é tão alto que o mundo parece se anular diante dele. A percepção da essencialidade da tarefa clandestina é lançada ao mundo sob a capa de estranheza, trabalho silencioso, gesto oculto, anonimato concebido apenas para esmagar a superficialidade da fama, do alarido e da notoriedade, transformando-os numa estéril dança no vazio. Há uma falsidade gritante no silenciamento e na fuga do escritor, cuja existência sob a pele de professor revela apenas desprezo por uma rotina desviante, essa anomalia que é o preço pago para poder realizar aquilo que é fundamental. O professor Anatol é apenas a cobertura do escritor Anatol. A existência subterrânea resguarda a essencialidade da escrita e protege o criador de quaisquer interferências. Sua natureza privada e intimista dá-lhe uma feição de “falsificada fofoca sobre mim mesmo”.

O professor sucumbe, no entanto, em sua última aula. Pela primeira vez na vida, sente-se bem ao exercer protagonismo. Embora meio constrangido, aceita o convite para escrever a introdução de um livro de fotografias sobre esporte. O texto cai nas mãos de um editor capaz de reconhecer nele qualidades de um grande autor desconhecido. Anatol, assediado pelo editor, não resiste por muito tempo. Confessa ter traduzido Infância em Berlim, de Walter Benjamin. 

A concessão de Anatol expõe a ambivalência de seus sentimentos: de um lado, um movimento sem ruído, secreto, o território inviolável de sua criação; de outro, o desejo de ser lido. Essa tensão mobiliza seus atos. Acaba cedendo e permite a publicação de seus sete extensos romances ambientados em seu país, a “maldita ilha de Umbertha”. Contudo, certo de que a obra amadurece melhor na clandestinidade, mantém-se fiel ao princípio da invisibilidade, abandona a terra natal.

Antes, em diálogo com o editor, o protagonista revela toda uma concepção sobre a narrativa:
“ –  Mas é que a mim, amigo Hvulac, sempre me horrorizou o sentimento de protagonismo. Sempre amei a discrição, o anonimato em tristeza, a glória sem fama, a grandeza sem brilho, a dignidade sem remuneração, o prestígio próprio. Desde menino o mundo da escrita me parecia precocemente apetecível e proibido, relacionado, em todo caso, com uma infração, com uma prática furtiva. E além disso, amigo Hvulac, nas coisas que escrevo suspeito uma operação de baixa luxúria, uma espécie interminável de falsificada de fofoca sobre mim mesmo. A quem poderia interessar algo semelhante?”

O risco de qualquer escritor é doar-se como leitura a olhares que desapropriam o texto de propriedades autorais para contaminá-los com a poeira e a respiração de outros caminhos, o escritor é um corpo de linguagem, constitui-se, portanto,  como uma vida em despojos a serem devassados por estranhos sem pudor ou clemência.  Seu suicídio, melhor ainda (ou pior), é metódico, apaixonado, obsessivo. A morte preparada durante todo o tempo como se o ritual que se encena promovesse o adiamento daquilo que ele anuncia. A literatura desaparece e permanece simultaneamente, assim como o autor. Ambos estão mortos, porém já não podem morrer. Morreram, mas mal acabaram de nascer. A arte, por ser inacabada, incapturável e algo por vir, não tem como morrer. Pode viver para sempre alimentando-se de suas próprias entranhas ou reinventar-se.

O conto funciona como um estudo preparatório para um texto de maior fôlego, o romance Doutor Pasavento.

A viagem narrativa de “As noites da íris negra” resulta num passeio por sepulturas. A ficção como fantasia sobre epitáfios, marcos de uma memória cuja falha é preenchida pela linguagem. A morte surge não individualmente, mas inscrita como seita, uma confraria de suicidas – a Sociedade de Simpatizantes da Noite da Íris Negra de Port Vent, da qual restam apenas os irmãos apóstatas, Catão e Uli, sem coragem para consumar o ato final. 

O que liga o protagonista ao círculo dos iniciados de Port Vent não é a preocupação em descobrir o jazigo do pai de Victoria, sua mulher. É algo maior, sem explicação e sem controle, algo que faz com que: “de uns tempos para cá, tudo que pareça abrigar a morte me seduza de maneira irremediável”. A morte sob a forma de uma canção hipnotizante, de um ritmo envolvente, de uma atração irresistível. 

A epígrafe de Sêneca – “Nada melhor a lei interna fez do que nos dar uma entrada para a vida e muitas saídas” –, retirada das Epístolas morais a Lucílio, serve como lema de um modelo de morte exemplar para os sócios da Íris Negra, conforme os termos de uma carta de um de seus membros que “desejava que seus íntimos acudíssemos a visitar sua casa e, falando toda a noite de filosofia, o acompanhássemos nas horas anteriores à desse gesto valente e final que desejava ser fiel à máxima de nossa Sociedade, ou seja, desaparecer digna e serenamente depois de uma grande festa do espírito e de uma vibrante homenagem à amizade e ao amor à filosofia, à maneira de Catão ou de um Sêneca, cujas mortes são, ainda em nossos dias, o mais perfeito exemplo e modelo do suicídio clássico e sereno, profundamente mediterrâneo...”. 

Entre tumbas, lápides, esculturas, num cenário de ruínas apropriado ao universo gótico, ultrarromântico, a morte surge clássica e serena, envolta em mistério e num ritmo narrativo próximo ao policial. Todavia não há sentimentalismo, excessos, expectativa angustiante. A indesejável senhora age como uma dama sedutora de um pequeno círculo de desencantados cortesãos. A morte como etiqueta e fuga ao tédio.

“A hora dos cansados” me parece destoar um pouco dos outros contos. O protagonista segue um velho de aspecto cadavérico e com uma maleta pesada. Por sua vez, o ancião passa a seguir um negro com jeito de boxeador decadente. O desconhecido faz anotações sobre o negro. Ao perceber o protagonista no seu encalço, o velho deixa de espionar a vítima escolhida. Por sua vez, quando o protagonista desiste de bisbilhotar vidas alheias, o negro o interpela. Sem explicações a oferecer, o anônimo protagonista vale-se do recurso de usar a desculpa de que observava pessoas para enriquecer os contos que escrevia. Essa explicação soa convincente. Enquanto os dois conversam, a catedral, onde o velho se refugiara, explode. Escrita e voyeurismo embaralham suas letras, mas o autor, ao escrever, ultrapassa os estreitos limites do registro visual.

“Uma invenção muito prática” trabalha a psicologia da morte a partir de um triângulo amoroso rompido pelo suicídio do homem e pela loucura de uma das mulheres, a protagonista, sob cuja ótica a narrativa é construída. Mesmo após quase cinquenta anos da ruptura da experiência triangular, a narradora alimenta-se de uma rede de ciúmes, mágoas e ressentimentos promovidos pela interferência da outra em seu destino. O veneno feminino incorpora a velhice para tornar mais ácidas as marcas da decomposição corporal lançadas como esgrima com a qual as duas buscam a vingança. O desejo de ver a rival suicidar-se manifesta a impotência em matá-la a não ser simbolicamente. A morte no espelho.

A personagem rompe com a discrição e a delicadeza de quem tentou passar pela vida com a leveza de bailarina, confessa que “nunca senti mais do que indiferença absoluta pelo mundo, achando-o sempre cinza e me limitando a passar por ele na ponta dos pés e escondendo, em lugar de exibir, meu profundo mal-estar e meu tédio”.

A tentativa de suicídio é esvaziada, desiste de pular do sexto andar e se atira do primeiro, fraturando alguns ossos. Salto da impotência, voo sem asas, encurralada entre uma vida insuportável e o obscuro da morte. O absurdo produz o cômico, a fratura alcança o sentido da existência, expõe a angústia nas fronteiras do risível.
A loucura maior é simular loucura. Algo desnecessário, pois ser humano é ser, sob um certo ângulo, insano. O artifício de incluir-se em um manicômio sob o pretexto de reencontrar sua melhor amiga, Rita Rovira, é um gesto suicida, um exílio deliberado da vida.
A narradora relata que Rita Rovira recebia cartas de um pianista húngaro nas quais lia, na realidade, aquilo que ela mesma pensava. A amiga, imaginária ou não, circulava no plano da fantasia, o que ela imaginava era a escrita da protagonista, a caligrafia da morte: “Morrer é uma arte, como tudo. Eu o faço excepcionalmente bem”.
Com a amiga, a narradora fez a sua grande descoberta: o mistério da loucura anula-se com o mistério da escritura. Sua vida só se justificava porque escrevia cartas com as quais evitava o desespero, a oclusão absoluta, o eclipse definitivo. A exemplo do pianista de Rita, a narradora também escreve a uma improvável rival, denominada Susana, a rouba-maridos, a quem incentiva a busca do suicídio como saída.
“Pedem que eu diga quem eu sou” é um relato sobre a  pintura de Panizo del Valle, considerado o último grande pintor realista. O narrador descreve-se como um obscuro marinheiro de segunda classe, durante a juventude, vivida entre os portos que se estendem de Bikanir a Moçambique.  No entanto, na costa sul da península de Babàkua foi capitão de um baleeiro e gozou de certo prestígio.
Em 1917, a bordo do navio Bel-Ami, conheceu o pintor famoso. O marujo catalão, que se declara autodidata,  critica a pintura de Panizo, considerada uma falsificação grosseira da realidade. Disputa com o pintor o conhecimento sobre a real, apresentando-se como alguém que representa a verdade. A obra do pintor seria falsa porque o artista não conhece a verdadeira natureza dos nativos, vistos pelo narrador como criaturas dotadas de qualidades diabólicas, pois são invejosos, falsos, difamadores, mentirosos, mesquinhos, desprezíveis, malignos e terríveis envenenadores das almas cândidas, além de lerem ao revés. Diabólico, na verdade, é o diálogo conduzido pelo mefistofélico marinheiro.
Curiosamente as qualidades atribuídas aos babakuanos parecem ser as do narrador. Há uma disputa envenenada no diálogo entre ambos o marinheiro e o pintor, aquele sempre agressivo e ressentido. A certa altura percebe-se nele um crítico de arte capaz de formular uma autêntica teoria plástica: “a pintura não é nada se não for perigosa”.
Após suportar as observações inquisitivas e rancorosas do narrador, Panizo del Valle, ao ler o nome do marujo ao revés, percebe a natureza mortal do encontro: Satam Alive joga com a mistura de línguas e contextos distintos; O “e” de Ernesto junta-se a Vila Matas ao contrário, surge assim o diabo-autor-narrador no meio da história como invocação e provocação ao deslimite. O artista perde-se na neblina, a realidade entra em eclipse, a representação mergulha no vazio.
Esse conto me faz lembrar o golpe mortal sofrido por Frenhofer, o malogrado pintor de A obra prima ignorada, de Balzac. Ainda que inseridos em contextos diferentes, ambos, ao perceberem a imensa lacuna entre as suas telas e a ideia de reconstrução pictórica da realidade, desaparecem definitivamente.
Ana María, a narradora, é uma professora entediada que mora com a avó em Zaragoza e adora inventar histórias. Conta para a avó o encontro com Fernando, amigo sobre quem tinha grande ascendência, com Beatriz, por quem o amigo curtia uma intensa paixão não correspondida, e com Idir, o namorado saráui de Beatriz. Esse desencontro é o núcleo do conto “Os amores que duram por toda a vida”. 
A noite em que os quatro passam juntos termina em tragédia. Fernando desfecha um tiro no próprio corpo e morre, deixando uma carta em que transfere a causa da morte ao colonialismo espanhol, embora o motivo mais provável fosse a irrealização amorosa. Sua morte, promovida por uma expectativa que não se cumpre e em relação antitética com o título, revela ainda a paixão oculta de Ana María por ele.
“O colecionador de tempestades” é uma narrativa em primeira pessoa e ambientada na cidade de Bérgamo, na Itália. Gira em torno de uma invenção de Attilio Bertarelli, conde de Valtellina, referido pela narradora apenas como Mestre, em cujo palácio havia uma cripta que abrigava os restos mortais de sua amada  Vizen.
O mestre constrói uma parafernália que parece sair de uma mescla das páginas de Jules Verne com os filmes de ficção científica da década de cinquenta.  A engenhoca, uma máquina criadora de tempestades, revela-se um traste inútil. O conde de Valtellina morre vitimado por um irônico e fulminante ataque do coração. A pretensão do nobre em construir a própria morte é quebrada pelos limites infames do corpo. A morte sem o caráter sublime, sem nobreza. De nada valem a astúcia, as ações e o conhecimento, o acaso demole o engenho humano e o ridiculariza. A morte quebra a espetacularização, esvazia o palco e se apresenta quando a plateia é apenas o vazio. Sobra apenas a notícia sob a forma de sarcasmo e zombaria: “Homem morre quando se preparava para o suicídio”.
O suicídio revela-se uma travessia roseana eternamente adiada. Observe-se a radical diferença entre “A terceira margem”, de Guimarães Rosa,  e o conto "Rosa Schwarzer volta à vida", de Vila-Matas. O primeiro,  fabulação pura, avança além dos limites, lançando o texto no terreno do indefinível; no conto de Vila Matas, a personagem recua para o modo seguro da existência.
A obra de Vila Matas, ao navegar nas águas da narrativa contemporânea, de Borges a Bolaño, guarda a propriedade do ensaismo no interior do texto ficcional, mistura realidade e ficção, mobiliza uma biblioteca viva ao valorizar a dimensão intertextual, pulsa por vezes com a tensão da história policial, desarma o tom grave e solene com o uso do modo irônico e do cômico. Haverá um enriquecimento na injeção do sangue do ensaismo na ficção literária? O que se ganha e o que se perde? Acredito na validade de qualquer recurso desde que se mantenha em alto grau a poiesis, a invenção, o próprio da arte, ou seja, incorporar a pulsação do ensaio enriquece uma obra desde que não promova o seu enrijecimento, a montagem de um molde narrativo a ser sucessivamente preenchido por novas camadas de linguagem. Esse risco felizmente não ameaça Enrique Vila-Matas, um especialista em driblar com a linguagem os acenos da morte.

 Vamos ver o que Dublinesca, último romance do autor lançado no Brasil, nos reserva.



Autor: Enrique Vila-Matas         
Tradução: Carla Branco
Texto de orelha: Alan Pauls
















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(Velhas) Palavras (novas)*



Resenha publica no Caderno B - Ideias & Livros - do Jornal do Brasil, em 20/11/2010.

         

Claudia Drucker, em A palavra nova: diálogo entre Nelson Rodrigues e Dostoiévski, aproxima o universo dos dois autores, mediante um paralelo entre o caráter modernista-conservador das ideias de Nelson Rodrigues e a visão dostoievskiana de busca de um ponto de equilíbrio capaz de levar à realidade russa as transformações promovidas pelo desenvolvimento científico e econômico da Europa Ocidental sem corromper as suas mais caras tradições.

A relação entre  obra e  contexto de época permite a autora avançar na compreensão daquilo que conceitua como “palavra nova”, trazendo à cena a face messiânica e profética dos dois escritores, flagrados em um mesmo  olhar impregnado de desconfiança quanto à assimilação das propriedades essenciais da modernidade, apesar da distância geográfica e temporal entre ambos. 

O diálogo proposto alcança sua máxima intensidade ao analisar a obra jornalística dos dois autores, marcada por uma visão poética e religiosa com a qual filtram os múltiplos acontecimentos mundanos. Através da palavra, tanto expressam a autoconsciência de dois países às margens da civilização ocidental,  quanto vislumbram, na resistência à assimilação cega dos novos valores, a possibilidade de romper o círculo da eterna subordinação. A abertura à palavra nova corresponderia, portanto, à construção de uma alternativa ao modelo de progresso importado das nações centrais.

A estudiosa considera inconsistente a discussão sobre o pan-eslavismo de Dostoiévski e sobre as tendências autoritárias de Nelson Rodrigues, cujo apoio à ditadura, no entanto,  foi público, atenuando-se apenas a partir da comprovação de torturas em seu filho. Prefere a autora, sob o pretexto de que ambos assumiram uma grande hostilidade à hierarquia, aproximá-los de uma posição anarquista. Tese que nos parece muito ousada. Não se pode atenuar o reacionarismo de Nelson, suas posições francamente antimodernistas e antiprogressistas, operando uma espécie de limpeza ideológica, até porque suas simpatias políticas não diminuem a importância de sua obra, assim como não o livraram de constantes problemas com a censura. Também nos parece que, em relação a Dostoiévski, torna-se esgarçada a delimitação entre a posição do romancista e a dos anarquistas. 

A autora, contudo, questiona com pertinência as repetidas críticas feitas ao teatro rodrigueano, acusado de ser alienado e vulgar. Reforça, assim, características modernistas salientadas por Sábato Magaldi: o diálogo coloquial e conciso, a ambientação urbana, a ruptura da linha do tempo e a ênfase na vida interior das personagens. 

Os traços mórbidos nos textos de Nelson Rodrigues são intensificados após presenciar o assassinato de seu irmão, Roberto, por motivos passionais. Nelson chegou a afirmar: “A morbidez é a coisa mais rica, mais válida do meu teatro”. A morte também molda os textos de Doistoiévski, que, à semelhança de Nelson, dela esteve muito próximo: acusado de conspiração, foi preso e condenado à morte, só sabendo da comutação da sentença depois de ser colocado diante de um pelotão de fuzilamento. 

O texto jornalístico rodrigueano alcança a sua forma a partir dos anos 1950, numa espécie de resposta ao impacto da modernização da imprensa.  A expressão “idiotas da objetividade”  assinala a resistência ao império da informação. Nelson é o autêntico herdeiro de um velho tipo de jornalismo, imbuído de emocionalismo e poesia, presença viva em suas crônicas esportivas.

A experiência jornalística de Dostoiévski, iniciada em 1861, tem seu ponto culminante no Diário de um escritor (1973-1881). O  jovem seguidor das ideias liberais de Herzen e Bielínski, participante do círculo de Petrachévski, no qual se discutiam textos de Fourier, Owen e Proudhon, após dez anos de exílio na Sibéria, abandona suas concepções, ruptura para a qual concorreu viagem efetuada a alguns países europeus. Essa fissura, no plano da ficção, pode ser observada nas diferenças entre Recordações da casa dos mortos e Memórias do subsolo.

Ao examinar o diálogo do romancista russo com correntes filosóficas e  políticas  constitutivas da intelligentsia, a autora o inclui no rol dos niilistas, deixando-o, contudo, numa categoria à parte: “ O niilismo é a forma mais radical do humanismo”. Radicalidade logo explicitada: “Antes de Dostoiévski, o niilismo significa apenas vontade de destruição. Depois dele, significa a tentativa de encobrir a falta de sentido com uma falta de sentido maior ainda”. Não por acaso, em Os irmãos Karamázov (1880), antes de Nietzsche, anuncia-se a morte de Deus.


Nelson Rodrigues ainda é um caso de amor e ódio, já Dostoiévski parece despertar desde o início a mais profunda simpatia do leitor. Os dois viveram às turras com a modernidade. É precisamente na refração ao processo de modernização observada na obra de ambos que a ensaísta formula a tese do livro: a possibilidade de construção de outra civilização a partir de um olhar periférico. A palavra nova (novoe slovo) é aquela que dará voz e universalizará culturas marginais.


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O último Calvino *



* Resenha publicada no caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, em 14/08/2010.



Coleção de areia, último livro publicado por Ítalo Calvino, registra “a necessidade de transformar o escorrer da própria existência numa série de objetos salvos da dispersão, ou numa série de linhas escritas, cristalizadas fora do fluxo contínuo do pensamento”. 

Ao explorar a diversidade temática numa sucessão de micronarrativas, o autor se expôs ao risco de criar um conjunto cuja força da deriva poderia produzir uma gangorra qualitativa, porém, graças à leveza e à argúcia de um olhar disposto a captar a luz dos acontecimentos a partir de um ângulo extremamente original, o leitor não sente os desníveis, aprisionado a um leve sopro de palavras capaz de limpar seres, objetos e lugares da camada de invisibilidade e indiferença sob a qual permanecem intocados. 

“Exposições. Explorações”,  a parte inicial do livro, assemelha-se a uma galeria textual em que o leitor pode explorar uma exposição de curiosidades em dez seções de natureza diversa. Nela encontrará a coleção de areia que serve de título, imagens do Novo Mundo, mapas, museu de cera, estudos etnográficos franceses, objetos com inscrições cuneiformes e hieróglifos, crônicas de fatos escabrosos, quadros de Delacroix, uma insólita mostra de nós usados em arte e desenhos de autores franceses do século XIX.

Uma bela homenagem a Roland Barthes abre a segunda parte, “O Raio do Olhar”. A ela são justapostos relatos sobre o Forte de Belvedere, em Florença, a pocilga de Settefinestre, uma descrição minuciosa da narrativa inscrita na Coluna de Trajano, um estudo sobre epígrafes e grafites, reflexões em torno dos livros O imaginário urbano na Itália Medieval, de Jacques Le Goff, e da Antologia Pessoal, de Mario Praz, e um texto referente ao funcionamento dos olhos.

Na terceira parte, dominada por narrativas alusivas ao fantástico, o autor cria uma espécie de galeria aérea de fenômenos sensíveis. Em texto de  1980, evoca Baudelaire e Kleist para auxiliá-lo no desvendamento do significado de autômatos construídos por relojoeiros suíços, obras situadas nas fronteiras entre brinquedo,  jogo e simulacro.  A leveza dispersiva do autor nos leva a uma geografia das fadas, desenhada por Robert Kirk, em O reino secreto, para em seguida nos conduzir ao Dicionário de lugares imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, numa íntima conexão com o mapeamento poético de mundos imaginários em contínua mobilidade, proposição de Calvino  em As cidades invisíveis. Se os comentários a respeito da arte filatélica de Donald Evans  pouco acrescentam à obra, o autor recupera o fôlego e o refinamento na rica indagação metalinguística contida nas notas ao texto de Luigi Serafini, Codex Seraphinianus, sobre o qual Calvino nos diz: “se a escrita serafiniana tem o poder de evocar um mundo em que a sintaxe das coisas se embaralha, por outro lado deve conter, oculto sob o mistério de sua superfície indecifrável, um mistério ainda mais profundo, que diz respeito à lógica da linguagem e do pensamento”. Borgeanamente, escrever é colocar a palavra como fonte de visões do invisível.

Termina o livro de Calvino com alguns apontamentos sobre uma jornada a três países. Dos nove textos sobre o Japão, o primeiro traça uma síntese do movimento de captura da essência dos lugares estranhos ao autor. Foge ao exotismo e ao puro descritivismo ao promover um olhar em fuga do turismo cultural, antes dedicando-se à captura do traço essencial cujo vislumbre pode iluminar a dimensão desconhecida do Outro. O Japão flagrado por Calvino está nos monumentos históricos de castelos e ruínas, em jardins cujo ordenamento revela toda uma concepção do mundo, mas está também nas dissimetrias entre o passado ritualístico e a modernidade (duvidosa, é certo, no caso dos fliperamas). A tradição e a contemporaneidade nipônica são flagradas no texto inicial: “A velha senhora de quimono violeta”. A senhora do título corresponde à permanência dos valores clássicos, a jovem que a acompanha representa a mudança sem solução de continuidade; o diálogo entre ambas é o código de convivência entre temporalidades distintas.

O México apresentado por Calvino é um território mítico, terra de maravilhas, um verdadeiro Novo Mundo, porém sem brilho e vigor. A viagem parece feita ao passado enquanto rasura. Infelizmente árvore e floresta esvaziaram-se como referenciais simbólicos da realidade americana.

Termina o livro com três relatos surpreendentes sobre o Irã. A parede nua no interior de um arco ogival de um mihrab funciona como uma lente pela qual jorram imagens imemoriais de conhecimento e fantasia. As orientais paisagens do silêncio levam Calvino a aproximá-las da arte: “a ideia de perfeição que a arte  persegue, a sabedoria acumulada na escritura, o sonho de contentamento de todo desejo que se exprime no esplendor dos ornatos, tudo remete a um só significado, celebra um só princípio e fundamento, implica um objeto único e último. Um objeto que não existe. E sua exclusiva qualidade é não existir. Não se pode nem mesmo lhe dar um nome”.


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Franz Kafka e Felice Bauer

                            

Kafka e a esfinge *



* Texto publicado no Caderno B - Jornal do Brasil, em 30/05/2010,


Milan Kundera, em A arte do romance, contrapõe o trabalho dos romancistas ao dos biógrafos: enquanto aqueles desmontam suas próprias vidas para construírem seus romances, estes desfazem as obras dos romancistas para reconstruírem o que nelas se dissolveu.  Dessa observação, o autor extrai uma condenação aos segundos: “O trabalho deles não pode esclarecer nem o valor nem o sentido de um romance; apenas identificar alguns tijolos. No momento em que Kafka atrai mais atenção que Joseph K., o processo da morte póstuma de Kafka se iniciou”.

O postulado de Kundera, no entanto, é incapaz de obstar a força irresistível que leva o leitor de Franz Kafka, premido pela inquietação deslumbrante de seus textos, a invadir a esfera privada do homem de carne e osso na nascente da obra. Invasão semelhante àquela que tenta se apropriar de sentidos emanados de seus escritos, vestindo-os de leituras históricas, místicas, pós-modernas, proféticas, psicanalíticas, sociológicas, teológicas. Felizmente Kafka é um autor que sempre nos escapa. Nem por isso a estranheza que causa deixa de provocar no leitor a sensação de vivenciar situações familiares, de atravessar um mundo ao qual ele, de modo misterioso, também pertence.

Em O mundo prodigioso que tenho na cabeça: Franz Kafka, Louis Begley resolve enfrentar a maldição de Kundera. Para essa tarefa o autor efetuou uma rigorosa pesquisa documental, valendo-se dos diários, da correspondência e da obra ficcional do romancista.

Os textos de Kafka publicados ainda em vida foram as novelas A metamorfoseNa colônia penal e os contos “O veredicto”, “Um médico rural”, “Um relatório para uma Academia”, “Um artista da fome” e o último texto escrito por ele, “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”. Em carta ao amigo Max Brod, seu primeiro biógrafo, Kafka pediu que queimasse tudo, à exceção das duas novelas citadas e de “Veredicto”, “Na colônia penal”, “Um médico rural” e “Um artista da fome”. Em outra missiva, autorizou-o a recuperar textos e cartas em mãos de terceiros. O pedido revela o altíssimo grau de exigência que se impusera e a preocupação com o caráter inacabado dos textos ainda não publicados. 

A inscrição de uma crítica ferina à intolerância em seus textos, mediante a denúncia dos absurdos do poder face à fragilidade do indivíduo, fez com que seus livros também fossem queimados em público e, em outubro de 1935, inseridos na “Lista de obras nocivas e indesejáveis” elaborada pelo regime nazista.

No capítulo “A vida é meramente terrível”, Begley retrata os anos iniciais de Kafka, nascido em 1813, e o ambiente judaico em que foi criado, inserindo-o em uma sociedade marcada por acentuado antissemitismo. A coabitação com a família foi um tormento para Kafka. O conflituoso convívio com o pai encontra sua intensidade textualizada em Carta ao pai.

Alto, esguio, elegante, vegetariano convicto, tímido e com vergonha do próprio corpo, Kafka também era adepto de práticas esportivas, apesar de uma constituição física muito frágil, fator agravante da tuberculose que abreviou a sua existência, levando-o à morte em 1924, aos 41 anos. Formou-se em Direito, fato que seguramente propiciou contato mais íntimo com a linguagem jurídica, marca onipresente em seus textos. Exerceu atividades burocráticas no Instituto de Seguro contra Acidentes do Trabalho, onde ficou até ser aposentado por invalidez em 1922.

Na verdade, a maior preocupação de Kafka no início de sua vida adulta era “descobrir uma ocupação respeitada e segura que lhe deixasse tempo suficiente para escrever e não fosse tão árdua que lhe drenasse a energia intelectual e psíquica”, assim poderia praticar o que realmente lhe importava  ̶  “Como nada sou além de literatura e não posso e não quero ser outra coisa além disso, meu emprego nunca se apossará de mim”. Begley registra a relutância ou a incapacidade de Kafka em correr riscos. Ressentia-se do provincianismo da atmosfera intelectual de Praga, contudo nunca teve energia para romper com o círculo judaico germanófono no qual circulava: embora escrevesse em alemão, não se descolava de Praga.

Begley apresenta o autor vivendo num mundo fechado, num gueto exclusivamente judaico  ‒ “Nenhum cristão jamais foi incluído, germanófono ou falante do tcheco”. Daí o aspecto inusitado de sua paixão por Milena Jesenská, de formação católica, com quem trocou correspondência e que dele nos deixou um retrato inesquecível: “Ele via o mundo cheio de demônios invisíveis a dilacerar e destruir seres humanos indefesos. (...) Ele compreendia as pessoas como só alguém com uma imensa sensibilidade à flor da pele pode compreender, alguém que é solitário, alguém que pode reconhecer os outros num lampejo, quase como um profeta. Seu conhecimento do mundo era extraordinário e profundo; ele próprio era um mundo extraordinário e profundo”.
Todo o segundo capítulo flagra, na sensibilidade kafkiana, a sobrevivência das experiências de perseguição e exclusão sofridas pelos judeus e de intolerância do nacionalismo tcheco ao uso do idioma alemão. O autor, no entanto, adverte: “Mas ler a ficção de Kafka como histórias e parábolas da experiência antissemita adornadas com uma piscadela destinada ao público judaico é subestimá-lo. Em sua ficção ele transcendeu sua experiência judaica e sua identidade de judeu. Ele escreveu sobre a condição humana”.

Kafka apaixonava-se, era correspondido, demolia a própria paixão, subia e descia em uma gangorra sentimental, escrevia centenas de cartas, parecia que o amor ia acontecer, para tudo se desfazer no ar, inviabilizando qualquer possibilidade de união e permanência. O que dizer de alguém que conseguiu ficar noivo duas vezes da mesma mulher para abandoná-la? Qual o verdadeiro enigma de Kafka? Impotência, loucura, homossexualismo, impossibilidade de qualquer convivência, dedicação exclusiva à literatura, ascese? 

Das mulheres com quem se relacionou, apenas Felice Bauer e Milena Jensenská foram imortalizadas em cartas de uma tensa e angustiada expressão amorosa. Pelo exame da correspondência, pode ser percebido o grau absurdo da intromissão de Kafka na vida de Felice: “Deve anotar, por exemplo, a hora em que vai para o escritório, o que comeu no café da manhã, o que vê da janela de sua sala, que tipo de trabalho faz lá, os nomes de seus amigos e amigas, por que ganha presentes, quem tenta prejudicar sua saúde dando-lhe doces e as milhares de coisas de cuja existência e possibilidades eu nada sei”. Algumas  mulheres tiveram relativa importância, como Dora Diamant, Julie Wohryzek, Hedwig Weiler. Outras passaram em puro anonimato. Sobre todas, contudo, podem ser aplicadas as palavras de Kafka em referência à sua relação com Felice: “Não posso viver com ela e não posso viver sem ela”. A mulher surge como alguém simultaneamente desejado e inalcançável.

Após apresentar o período final de Kafka, no quarto capítulo, “Sou feito de literatura, não sou nada além disso”, registrando o agravamento de seu estado físico, o autor esboça uma tímida interpretação na última parte do livro – “O machado para o mar congelado dentro de nós” –, título extraído de uma bela passagem de Kafka: “Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós”. 

Ao apontar para a multiplicidade de leituras de O processo, Begley marca um ponto positivo ao criticar aqueles que veem no encontro no qual o noivado de Kafka e Felice foi rompido a culpa, a humilhação e o julgamento tematizados no romance, cuja frase inicial é uma das mais famosas da literatura do século XX: “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”.

Begley manifesta claramente sua preferência: “O castelo é um romance mais rico do que O processo na amplitude da narrativa, no desenvolvimento de personagens secundários cativantes e inesquecíveis (Frieda, Olga, Amália, as duas albergueiras da aldeia, Pepi e Bürgel, entre outros) e nas descrições da aldeia sem nome coberta de neve e dos interiores de estalagens e cabanas de camponeses que fazem lembrar as pinturas de Peter Bruegel. Se Kafka houvesse conseguido concluí-lo ou pelo menos levá-lo até mais próximo do término, O castelo seria o auge de sua criação”.

Benjamin, citado por Begley, parece antecipar as afirmações de Kundera: “Kafka possuía uma capacidade rara de criar parábolas para si mesmo. No entanto, suas parábolas nunca se esgotam pelo que é explicável: ao contrário, ele tomou todas as precauções concebíveis contra a interpretação de seus escritos”.  Isso não anula o trabalho de Begley, mas nos faz voltar correndo para os textos de Kafka, seduzidos pela Esfinge que neles nos acena e provoca.



O mundo prodigioso que tenho na cabeça - Franz Kafka: um ensaio biográfico
Louis Begley
Tradução de Laura Teixeira Motta
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.









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O vodu da linguagem em Alejo Carpentier *




* Resenha publicada no Caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, dia 20/03/2010



Alejo Carpentier (1904-1980), juntamente com Lezama Lima e Severo Sarduy, integra a santíssima trindade da prosa ficcional cubana. Filho de pai francês e mãe russa, de quem herdou o amor à música – forte presença em seus textos -, incorpora à obra a fusão de universos distintos, conciliando o pleno domínio dos recursos técnicos com uma poderosa imaginação. Apesar da experiência europeia e do convívio com os surrealistas, sua literatura é um marco da literatura latino-americana.

O relançamento do romance O reino deste mundo, pela Martins Fontes, em nova tradução, a cargo de Marcelo Tápia, é uma oportunidade de o leitor mergulhar em uma história hipnotizante. O livro, escrito em 1949, recria os acontecimentos que levaram à independência do Haiti, em 1803. O movimento liderado por Toussaint L’Ouverture, Henri Christophe e Jacques Dessalines criou o primeiro governo negro e a primeira monarquia das Américas ao dividir o país em duas regiões com regimes políticos diferentes: ao sul, uma república; uma monarquia, ao norte.

A saga do povo haitiano, aliás, já despertara o interesse de Vitor Hugo, cujo romance Bug-Jargal, de1828, trata das relações entre escravos e franceses, e do poeta Lamartine, autor de Toussaint L’ouverture, poema dramático sobre o herói da independência haitiana, publicado em 1860.


A primeira parte da narrativa apresenta Ti Noel, o protagonista, escravo de Monsieur Lenormand de Mezy, e fio condutor dos acontecimentos dos quais participa desde a juventude. Carpentier vale-se dos dois para apresentar o universo do colono europeu e o mundo do negro haitiano, porém o narrador claramente assume o ponto de vista do oprimido. O capítulo inicial já apresenta uma comparação desfavorável à cultura europeia: “Na África, o rei era guerreiro, caçador, juiz e sacerdote; sua semente preciosa engrossava, em centenas de ventres, uma vigorosa estirpe de heróis. Na França, na Espanha, em contrapartida, o rei enviava seus generais para o combate, era incompetente para dirimir litígios, deixava-se repreender por qualquer frade confessor (...), não fazia mais que gerar um príncipe debiloide, incapaz de acabar com um veado sem ajuda de seus monteiros, a quem designavam, com inconsciente ironia, pelo nome de um peixe tão inofensivo e frívolo como era o delfim”. A crença de Ti Noel em uma África mítica resulta da influência de uma figura extraordinária, Mackandal, cuja presença domina a ação na parte inicial.

Carpentier desmonta, com o recurso de metáforas e ironia, o absolutismo de uma razão autocrática, objetivista, com pretensão de pleno domínio sobre o real, transformado em prisioneiro de seus dogmas. Mackandal é peça-chave nessa desmontagem. Antecessor dos líderes da independência, resistia à escravidão com recursos extraordinários. Grande orador, tentava unir os negros para promover a libertação. Afirmava poder prever o futuro e convence os escravos de sua propriedade imortal. Embriagado, termina preso e queimado em execução pública. Carpentier tira proveito magistral dessa personagem histórica, ao fazer com que nela se cruzem, no plano ficcional, as linhas da resistência e da mandinga. O negro xamã extrai da natureza, sob a forma de ervas destinadas ao envenenamento dos colonos europeus, conhecimento para municiar a revolta. O maneta Mackandal, ogã do rito Radá, promove uma insurreição invisível. Anula a própria morte, reescrevendo em um voo fantástico seus laços secretos com a imortalidade. Não há fim para um corpo com o poder de transformar-se em animal de cascos, em ave, peixe ou inseto. Mackandal, num processo de proliferação barroca, escapa à dominação europeia ao movimentar-se fora da lógica que a preside.

Monsieur Lenormand de Mezy, na segunda parte, após a perda da mulher e tornar-se tarado e bêbado, contrai núpcias com uma atriz decadente, Mademoiselle Floridor. Irrealizada na arte, vale-se da posição hegemônica para simular, de modo cômico-grotesco, a representação de papéis que jamais lhes seriam atribuídos para uma plateia atônita, convocada à força a um espetáculo cuja legibilidade lhe escapa. A palavra “crime”, única ponte entre o francês e o creóle, desprega-se do texto para estigmatizar a insana declamadora, razão pela qual os escravos passam a olhar a atriz como mais uma criminosa fugitiva da Metrópole como tantas outras prostitutas. Civilização e opressão formam uma estranha rima nos trópicos.

A ação narrativa incide, na segunda parte, sobre Bouckman, o Jamaicano. Líder sem o encanto de Mackandal, suas ações são alimentadas pelo eco das ideias que promoveram a Revolução Francesa. Monsieur Lenormand de Mezy, em visita a cidade do Cabo, descobre que “a assembleia constituinte, integrada por uma chusma liberaloide e enciclopedista, concordara que se concedessem direitos políticos aos negros, filhos de manumissos”. Tudo parecia anunciar a revolta dos escravos, o que não demora a ocorrer. A rebelião, entretanto, não obtém êxito. A cabeça de Bouckman, fincada no mesmo lugar da morte de Mackandal, é testemunha inerme da violenta perseguição e extermínio dos sobreviventes.

Arrastado pela fuga de Mezy para Santiago de Cuba, Ti Noel descobre, horrorizado, o embarque de cães enviados a ilha de São Domingos com a finalidade de devorar os negros rebeldes. De Mezy compartilha uma vida social marcada pela degradação: “Um vento de licenciosidade, de fantasia, de desordem, soprava na cidade”. Nobres e colonos fugitivos montam, com um tesouro de ruínas, uma versão decadente do poder colonial reduzido agora ao reino do salve-se quem puder. Ti Noel também encontra nas igrejas espanholas um mundo próximo ao da magia do vodu: “Os ouros do barroco, as cabeleiras humanas dos Cristos, o mistério dos confessionários repletos de ornamentos, o cão dos dominicanos, os dragões esmagados por santos pés, o porco de Santo Antão, a cor parda de São Benedito, as Virgens negras (...), tinham uma força envolvente, um poder de sedução, pela pompa, pelos símbolos, atributos e signos, parecidos com o que se desprendia dos altares do houmforts consagrados a Damballah, o Deus Serpente”.

O narrador introduz no relato Paulina Bonaparte, irmã de Napoleão e esposa de Leclerc, enviado no comando de uma expedição de 25.000 soldados com o intuito de acabar com a rebelião dos jacobinos negros. Inicialmente simpática à realidade americana e numa proximidade cúmplice com o escravo Solimán, entra em pânico após a morte do marido, vitimado por um estranho vômito negro. O retorno apressado de Paulina para a Europa simboliza a derrota definitiva dos franceses: “Agora os Grandes Loas favoreciam as armas negras. Ganhavam as batalhas aqueles que tivessem deuses guerreiros para invocar. Ogún Badagrí guiava as cargas de arma branca contra as últimas trincheiras da Deusa Razão”.

Na terceira parte do livro, Ti Noel regressa ao Haiti na condição de homem livre, pois a revolução de Jean-Jacques Dessalines triunfara com o auxílio de “Loco, Petro, Ogum Ferraille, Brise-Pimba, Caplaou-Pimba, Marinette Bois-Cherche e todas as divindades da pólvora e do fogo”.

Ti Noel, subitamente dono da fazenda do antigo senhor, espanta-se com os pomposos uniformes napoleônicos dos soldados negros. O assombro é maior ao descobrir o luxo de Sans-Souci, a residência predileta de Henri Christophe. O soberano, em um esforço radical para livrar-se do peso da mística africanista, cria uma corte com aparência francesa e abraça o catolicismo com fervor. A incursão a Sans-Souci foi desastrosa para Ti Noel, novamente escravizado, trabalha na construção da Cidadela de La Ferrière, símbolo da megalomania do monarca. Ti Noel é salvo das garras da tirania graças à rebelião contra o despotismo do rei. Sem saída, abandonado por todos, o ex-cozinheiro coroado suicida-se.

Um dos saqueadores do Palácio de Sans-Souci, o velho Ti Noel, na parte final do livro, volta à antiga moradia de Lenormand de Mezy, preenchendo os escombros com os produtos do saque. Sua tranquilidade, porém, é interrompida pela chegada dos agrimensores, expressão da nova realidade política haitiana: os mulatos republicanos haviam formado uma nova casta opressora que espalhava o terror no campo e obrigava os camponeses a buscarem refúgio nas montanhas. Exausto de tanta miséria e opressão, Ti Noel adquire as propriedades mágicas de Mackandal, transforma-se em ave, garanhão, vespa, formiga, ganso e abutre, convertendo-se em habitante invencível do reino da magia.

Na famosa introdução ao romance, considerada por Emir Rodriguez Monegal o “prólogo do novo romance latino-americano”, a preocupação com a documentação e a verdade histórica dos acontecimentos não apaga a consciência de que o fictício formula uma realidade além do factual, alcançando, por vezes, graças ao artifício, à deformação e ao insólito, uma proximidade visceral da experiência humana. O “real maravilhoso”, a controversa proposta apresentada por Carpentier no prólogo, ultrapassa os limites do romance; a iluminação e o alargamento promovidos pela proposição estética transformam o Haiti em metonímia da América. Pouco importa se o maravilhoso é um conceito europeu, ou se Carpentier projeta na expressão seu passado surrealista. O reino deste mundo, assim como Os passos perdidos e O Recurso do Método, é uma obra-prima cuja força não se esgota apenas na prodigiosa fusão temática de elementos oriundos de culturas diversas, mas brota de uma barroca arquitetura textual erguida com maestria por um olhar impensável fora do universo americano.


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Muito  além do previsível *




* Resenha publicada no Caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, em 13/03/2010



Romancista com uma sólida trajetória, da qual constam obras como Pedro Pedra e Monte Verità ; editor do site Dubito ergo sum, fonte de referência para a investigação sobre o ceticismo; professor de teoria litérária da UERJ, com alguns títulos voltados para questões escolares e acadêmicas, como Redação Inquieta e A ficção cética ; estudioso da obra do filósofo Vilém Flusser, sobre quem publicou alguns livros, Gustavo Bernardo lança O livro da metaficção, pela recém-inaugurada Tinta Negra. Apesar de o título conotar uma pretensão de esgotamento do tema abordado, a leitura do livro desfaz tal impressão. Trata-se, na verdade, de uma viagem prazerosa em que os leitores mergulham em um texto alimentado pela duplicidade criativa do autor: mestre da prosa ficcional e da teoria. O percurso é sinalizado pelas luzes emanadas do ceticismo que funciona como guia filosófico da travessia.

Termo proposto por William H. Gass para distinguir a narrativa experimental de escritores surgidos após a Segunda Guerra Mundial, como Vladimir Nabokov, John Barth, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, da prosa dominada pela dicção regionalista e realista da literatura norte-americana, metaficção designa o processo de autorreflexão narrativa. Para Linda Hutcheon significa «ficção acerca da ficção, isto é, a ficção que inclui no seu magma o comentário à própria narrativa e/ou à sua identidade linguística». O texto metaficcional implica uma fuga à mimese, à representação do real nos moldes da estética romântico-realista. Desconfia da possibilidade da criação de um retrato fiel e exato da realidade, tradução que expressou, no entanto, em determinada época, a concepção burguesa de posse e domínio completo de mecanismos pelos quais o real pudesse ser apropriado e reproduzido.

Gustavo Bernardo define metaficcção como «um fenômeno estético autorreferente através do qual a ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si mesma». A investigação proposta pelo autor intenta ultrapassar os limites ficcionais para abarcar também a questão identitária. Se tais limites são inomináveis, nada impede, contudo, a permanente inquietação da escrita, mobilizada numa busca infindável. No rastro do metaficcional, o autor volta-se para outras metas - metafísica, metalinguagem e metarrealidade -, imantizado pelo duplo sentido de metá em grego: «depois de» e «além de».


Para a consumação de seu projeto, o autor explora múltiplas manifestações pictóricas, cinematográficas e literárias. Valendo-se de charge de Quino, da minissérie Capitu, de Luiz Fernando Carvalho, de quadros de René Magritte, de gravuras de M. C. Escher, do filme Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, de fotos de Cindy Sherman e de Chema Madoz, do documentário Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho e das narrativas de Cervantes, Cortázar e Machado de Assis, entre tantas outras fontes, conseguiu tecer uma série de agudas reflexões teóricas.

O conto de Julio Cortázar «Continuidad de los parques» é o ponto de partida para o desvelamento do significado de metaficção. Inicia-se com um personagem lendo um livro, ou seja, constitui-se em uma ficção no interior de outra ficção. O final da história identifica a leitura do personagem à do leitor: um personagem sentado em uma poltrona verde, lê uma história na qual um homem prepara-se para apunhalar um indivíduo que lê uma narrativa em que será assassinado por... Produz-se, assim, um movimento infinito entre diferentes níveis de ficção, fenômeno associado pelo autor ao princípio de vasos comunicantes. Tal processo manifesta o antagonismo entre a proposição metaficcional e a estética realista, disjunção cuja origem Gustavo Bernardo localiza com precisão : «Os defensores do paradigma realista se incomodam com a metaficção porque ela quebraria o contrato de ilusão entre o autor e o leitor, impedindo a suspensão da descrença tão necessária ao prazer da leitura».

Conquanto faça uma crítica às convenções realistas, a metaficção não pulveriza completamente as propriedades veristas do texto. Mediante «uma espécie de ceticismo supensivo», nela sobrevivem artifícios do realismo, explicitados, abalados e glosados, porém não totalmente abandonados.

O episódio das marionetes do Mestre Pedro, no segundo volume de Dom Quixote de La Mancha, serve para revelar a natureza universal do processo metaficcional. O protagonista interrompe a representação teatral e investe contra os bonecos acreditando combater os mouros. Esse episódio, juntamente com inúmeros outros de Dom Quixote, prova a longevidade e a riqueza dos recursos metaficcionais. Graças à multiplicidade de perspectivas narrativas e à natureza proteica do personagem, Gustavo Bernardo desmonta a estreiteza crítica na origem e na circulação do termo : « A ideia de que o fenômeno estético da metaficção seria ‘pós-moderno’ (e norte-americano) cai por terra junto com os bonecos decapitados de Mestre Pedro ». Antes de Cervantes, Shakespeare já usara a metaficção em Hamlet, ao introduzir no drama uma outra peça.

O capítulo, intitulado « O mestre das marionetes » , termina com análises do filme Dom Quixote de Orson Welles e do musical O homem de La Mancha, de Dale Wasserman. Os processos metaficcionais operam como filtros entre as linguagens literária, cinematográfica e teatral, enriquecidos pela « intertextualidade – através da paródia, do pastiche, do eco, da alusão, da citação direta ou do paralelismo estrutural ». Assim, cada narrativa remete a outra(s).

A perspectiva realista desaparece no quadro « A perspicácia », de René Magritte, graças à explicitação dos elementos internos da pintura, redirecionando o olhar não para a realidade reproduzida, mas para o próprio processo criativo. O pintor pinta a si mesmo olhando para um ovo e cria um pássaro em outra tela dentro da tela em que se retrata. Por sua vez, a tela é fotografada, multiplicando o processo metaficcional. O efeito poético perturbador da pintura de René Magritte equivale, aos olhos do autor, à epoché fenomenológica, ou seja, a neutralização da atitude natural, ou a colocação do mundo entre parênteses. Perturbador também é o trabalho visual de M. C. Escher, cuja famosa litogravura « Mãos que se desenham » ajuda a compreender a expressão « reviravolta aninhada » : « Como no paradoxo, as mãos de Escher ao mesmo tempo suspendem o pensamento no ar e o movimentam, forçando-nos a pensar mais. Elas vão e voltam ao mesmo lugar, mas não nos deixam no mesmo lugar ».

O movimento entre a realidade e a ficção, instituído por Jogo de cena, documentário de Eduardo Coutinho, sugere o conceito de metarrealidade, definido por Gustavo Bernardo como «aquela realidade que a ficção constrói e que surge, para o leitor e para o espectador, como ‘mais real do que o real’, ou seja, como mais intensa, vívida e viva do que a vida cinzenta que se tinha antes de a arte iluminá-la ». Não por acaso o texto é nomeado «Além da realidade».

A obra de Machado de Assis desperta no estudioso uma eloquente negação do rótulo realista pespegado ao bruxo do Cosme Velho de intensidade proporcional à valorização do ceticismo machadiano. Por um lado, lança mão de ideias refratárias ao realismo, sustentadas pelo próprio autor de Dom Casmurro; por outro, investe contra a rarefação do conceito «realismo », termo «que pretende significar não menos do que tudo, e por isso significa não mais do que nada». Não se trata de negar a realidade, mas de apontar a precariedade de qualquer representação discursiva do real, vista necessariamente como perspectiva marcada pela insuficiência. A desconstrução da estética realista na minissérie Capitu, de Luiz Fernando Carvalho, recupera o caráter subversivo da escrita do mestre da metaficcionalidade.

« Janelas dos fundos » abre-se em duas perspectivas : a do conto de Cornel Woolrich e a do filme de Alfred Hitchcok, traduzido no Brasil como Janela Indiscreta. O protagonista do conto apropria-se de vidas alheias ao espionar os acontecimentos visíveis pela abertura de outras janelas. Suas descobertas, como a de um assassinato realizado em outro apartamento, sempre ocorrem um passo atrás das efetuadas pelo leitor, efeito denominado pelo próprio Woolrich de «ação retardada». Hitchcok amplia no filme as características metaficcionais do texto. Insere sua rápida aparição na tela como uma assinatura com a qual duplica e transforma simultaneamente o relato de Woolrich. O leitor-espectador posta-se atrás do protagonista, atuando como voyeur de outro voyeur. O filme parece elaborar uma ética do olhar ao propor ao espectador o desafio de ver muito além dos limites alcançados pelos olhos.

Na duplicação do título do último capítulo, « Fim do fim », a obra acena para o aberto da pesquisa empreendida, recorrendo aos simulacros construídos pela ficção-científica. A própria ciência prende-se, em certa medida, aos processos ficcionais, pois as hipóteses são ficções com as quais as teorias avançam para o terreno da comprovação. O autor comenta ainda dois pequenos contos de Fredric Brown e Simulacro-3, livro escrito por Daniel Galouye, posteriormente adaptado para o cinema como O 13 andar. A própria realidade do leitor fica suspensa pela dúvida: será que ela também é desdobramento, espelho, refração, simulacro, ilusão?

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Cinzas e pirâmides *



*Resenha publicada no Caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, em 13/02/2010



O filósofo alemão Peter Sloterdijk, autor de A crítica da razão cínica, sua obra mais importante, lançada em 1983, mas ainda sem tradução entre nós, e de Regras para o Parque Humano, cujas formulações levaram a uma viva polêmica com Jürgen Habermas, desenvolve, em Derrida, um egípcio – o problema da pirâmide judia, uma série de reflexões que se constituem em um autêntico diálogo entre as ideias de Jacques Derrida (1930-2004), o teórico da desconstrução, e o pensamento de alguns autores de importância desigual. Felizmente a morte do filósofo franco-argelino não vira ocasião para produção de texto laudatório nem para a sua monumentalização. A homenagem prestada vale pela proposição instigante que produz.

Entre a perda e a preservação, Sloterdijk opta por uma leitura dessingularizadora, cujas conexões proporcionam um distanciamento necessário da irradiação sedutora de Derrida. O recorte transdisciplinar permite o estabelecimento de aproximações entre o caráter aberto e multifacetado da obra derridiana e sete autores de campos diversos, como Niklas Luhmann, Freud, Thomas Mann, Franz Borkenau, Régis Debray, Hegel e Boris Groys. A lamentar, a ausência de Marx e Platão.

O autor atribui a potência da desconstrução ao fato de ter se revelado “a derradeira oportunidade para uma teoria integrar por meio da desintegração”. Recorre ainda à referência de Luhmann à desconstrução, cuja perspectiva pressuporia a “catástrofe da modernidade”, concebida como mudança da forma de estabilidade da sociedade tradicional, centralizada e hierarquizada, para a forma de estabilidade da sociedade moderna, diferenciada e multifocal. Sloterdijk defende a desconstrução como uma forma de teoria aberta a um futuro e dotada de transmissibilidade, de natureza autoaplicada, inscrita em um movimento que sempre a consolida e regenera. Razão pela qual termina o capítulo com uma indagação paradoxal: “Será possível que a desconstrução, em consonância com seu impulso central, desenvolvesse um projeto de construção que visasse produzir uma máquina de sobrevivência indesconstrutível?”

É num clima de rêverie que surgem as referências a Moisés e o monoteísmo, texto do Freud tardio. Neste livro, na primeira parte, intitulada “Moisés, um egípcio”, o criador da psicanálise afirma que “Moisés, o libertador, o legislador e o pregador do povo judaico, não era judeu, mas egípcio”. Sloterdijk lê na interpretação freudiana um prelúdio da différance, tomando por base o conceito de deslocamento ou deformação usado por Freud, lido tanto como acontecimento quanto redação do acontecimento, relato no qual o que aconteceu tornar-se-ia irreconhecível. Moisés é aquele que rouba aos egípcios a identidade para legá-la aos judeus, processo que transforma o mito do êxodo não numa “secessão do judaísmo em relação ao poder egípcio estrangeiro, mas a realização do egipcismo mais radical por meios judaicos”. Moisés, portanto, origina o ato de transporte de uma cultura perdida e de uma identidade que será sempre retorno ao lugar vazio de sua gestação. O êxodo marca a estrangeiridade como um sinal gravado em um corpo que se constitui como abandono e presença do que não pode ser recuperado.

Valendo-se da semelhança em alemão entre as palavras sinal e signo (ambas Zeichen), Sloterdkijk sugere que Thomas Mann, no romance José e seus irmãos teria realizado uma profecia involuntária sobre Derrida, já que o sucesso de José também deve ser atribuído ao extraordinário domínio da arte de ler sinais desconhecidos pelos egípcios. Com isso, o autor considera a desconstrução como uma terceira onda de interpretação dos sonhos, capaz de ultrapassar os modelos da psicanálise e da hermenêutica messiânica, o que acontece “na forma de uma semiologia radical, trazendo a prova de que os signos do Ser jamais propiciam a plenitude de sentido que prometem – outra maneira de dizer que o Ser não é um verdadeiro remetente e que o sujeito não pode ser um lugar de colecionamento perfeito”. Se egípcio é o predicado de todas as construções que podem ser submetidas à desconstrução, Derrida torna-se o alvo.

A aproximação da obra de Derrida às teses de Franz Borkenau (1900-1957) sobre a atitude das civilizações em relação à morte possibilita a Sloterdijk, mediante a apropriação do conceito de “antinomia da morte” do pensador austríaco, conceber a desconstrução como “um ato resultante da mais radical secularização semântica – constituindo-se no materialismo semiológico em ação. Poder-se-ia descrever o procedimento desconstrutor como um manual de instruções, a fim de permitir a transmissão das igrejas e castelos do ancien régime metafísico e imortalista para as mãos dos mortais civis”.

Régis Debray auxilia na recontextualização midialógica de Derrida. A biografia e o trajeto do Deus do monoteísmo só foram possíveis graças ao seu exílio, à fuga do lugar de sua invenção e pelo fato de ser dotado de formas de transportabilidade e transmissibilidade, o que implicou a escolha de meios. Deus passou da mídia da pedra para a do pergaminho, ou como afirma Debray: “De repente, o divino muda de mãos: dos arquitetos, passa para os arquivistas. De monumento, torna-se documento”.

É o texto “O poço e a pirâmide: introdução à semiologia de Hegel”, inserido em Margens da filosofia, a verdadeira fonte das reflexões de Sloterdijk. O autor sustenta a força da leitura no centro do pensamento de Derrida, marcado pela propriedade da filosofia nos tempos atuais: tornar-se uma observação de observações, um texto de segunda ordem, mecanismo de compensação à desvantagem da chegada tardia ao mundo em que o essencial já foi feito. Se Hegel considera a pirâmide o signo de todos os signos, Derrida entende que a única maneira de desconstruí-la é perseguir todo o trajeto da sua transformação em escrita, até remontar ao poço original que a engendrou, algo que transparece em sua afirmação “O tempo do signo é então tempo do retorno”.

Via Boris Groys as cinzas de Jacques Derrida são lançadas nos arquivos da cultura humana, na rede onde se aliam o finito e o infinito. Os arquivos reproduzem as câmaras funerárias das pirâmides, arquétipos do espaço morto que podem ser levados e reinstalados em qualquer lugar para onde caminhamos todos nós, derridianos ou não. Como senha de acesso a eles, a frase de Derrida sempre nos lembrará de que: “A linguagem se cria e cria mundos”.



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Derrida, um egípcio
Peter Sloterdijk
Trad. Evando Nascimento
Estação Liberdade








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A escrita em abismo de André Gide *





* Resenha publicada no Caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, em 30/01/2010


O relançamento de Os moedeiros falsos, de André Gide (1869-1951) vem preencher um vazio de quase duas décadas de ausência dos livros do ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1947 entre nós. Juntamente com o texto assumido pelo próprio autor como seu único romance, a editora Estação Liberdade lançou o Diário dos Moedeiros Falsos, até então inédito no Brasil.

Parece haver uma renovação do interesse pela obra do autor de A Sinfonia Pastoral. A mesma editora publicou uma nova tradução de Os Subterrâneos do Vaticano, além de promover a primeira edição do conto Pombo-torcaz, escrito em 1907, porém só publicado em 2002. Na França, no ano passado, a coleção Pléiade colocou novamente em circulação toda a prosa ficcional de André Gide, reunida em dois grossos volumes, quase no mesmo momento em que a revista Magazine Litteraire lançava sobre o autor o rótulo de “O mais moderno dos clássicos" estampado na capa da edição de março.

O desejo, o homoerotismo sutil, a mise en abyme, o diário íntimo, o combate aos dogmas, a luta contra a falsificação, o confessionalismo, o caráter aberto da narrativa, o romance de formação, entre outros temas e recursos ficcionais dessa narrativa dividida em três partes, constroem um universo de apuradíssima técnica ficcional.

A trama complexa gira em torno do movimento das três personagens fundamentais: Bernard Profitendieu, Olivier Molinier e Édouard. Os primeiros, dois jovens intelectuais, e o último, um romancista que mantém um diário de anotações para a criação de um romance também denominado Os Moedeiros Falsos. O diário não duplica apenas o título, mas reproduz ainda personagens e situações da narrativa-matriz. Cruzam-se, assim, personagem, narrador e autor. “Se quiserem, esse caderno contém a crítica de meu romance; ou melhor: do romance em geral. Imaginem o interesse que teria para nós semelhante caderno mantido por Dickens, ou Balzac; se tivéssemos o diário de A educação sentimental ou dos Irmãos Karamázov! A história da obra, de sua gestação!”

Bernard foge de casa ao descobrir que não era filho legítimo de seu pai. Após um longo périplo, acaba reconciliado com a família. Seu percurso alia o tema bíblico da volta do filho pródigo ao bildungsroman. Graças à mediação de Édouard pôde completar sua formação, tornar-se maduro e ser capaz de fazer escolhas. O tímido e inseguro Olivier vive fascinado por Édouard, seu tio, a quem não consegue revelar seus sentimentos. Move-se tensionado entre a influência do conde de Passavant, protótipo do mau romancista, e a do tio: “Junto de Édouard, o que tinha de melhor em si se exaltava. Junto de Passavant, era o pior”. É a sua tentativa de suicídio que o aproxima finalmente de Édouard. Este auxilia Olivier e Bernard a ingressar no assustador mundo adulto. O romance termina em aberto. Liberado do papel de protetor de seu ex-secretário, Édouard parece encontrar um novo aprendiz, o irmão de Bernard, como sugere a frase final do romance: “Estou bastante curioso para conhecer Caloub”.

Na visão homoerótica gideana, falta aos jovens fragilizados na luta pela existência a experiência de um homem mais velho, capaz de orientá-los, pelo menos até que consigam alcançar um ponto em que possam se defender e fazer escolhas. Concepção expressa com nitidez na parte final de Córidon, livro fundamental à compreensão do homoerotismo e marco na luta contra o preconceito homofóbico: “se alguém mais velho se enamora dele [do adolescente], (...) julgo que nada se lhe pode apresentar de melhor, de preferível que um amante”. Trata-se da velha concepção pedagógica de pederastia tão cara aos gregos, embora hoje as reflexões de Gide possam provocar uma leitura permeada de incompreensões, se lidas com olhos censores, sensíveis às conotações de pedofilia e infensos à filiação helênica da afirmação homossexual de Gide.

A crítica gideana ao darwnismo social pode ser observada na brutalização sofrida pelos mais fracos, com os quais há manifesta solidariedade e identificação. Tanto em O Imoralista quanto em Os Moedeiros Falsos, há o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos, sempre mais numerosos e merecedores do olhar carinhoso do autor. É Marceline, a infeliz personagem de O imoralista, martirizada até a morte por Michel, quem melhor exprime essa denúncia ao dizer-lhe: “Tua moral suprime os fracos”. Esta moral, em Os Moedeiros Falsos rege o comportamento de Victor Strouvilhou, do conde de Passavant e, de modo mais agudo, provoca o suicídio de Boris. Strouvilhou é um jovem transgressor, responsável pelo golpe das moedas falsas e que conta com alguns seguidores para a execução de seus planos; Passavant usa a sua força e o seu prestígio para corromper os jovens que dele se aproximam; Boris é a trágica vítima de um rito de iniciação de uma gangue juvenil.

Do ponto de vista da técnica romanesca, André Gide, ao promover o cruzamento e espelhamento de textos que remetem a outros textos no interior da mesma obra, ajudou a formular um processo de largo emprego na contemporaneidade: a mise en abyme. Não bastasse isso, a publicação do Diário dos Moedeiros Falsos, torna a questão mais complexa, já que duplica personagens e temas, inscreve outras possibilidades de leitura, intervém sobre o romance ao mostrar as suas entranhas.

Se Gide não é o autor da expressão, é o responsável pela criação do conceito, como pode ser comprovado pela leitura de seu Journal, onde faz uma analogia entre a sua proposição romanesca e o procedimento de heráldica “que consiste em localizar no brasão, um segundo [brasão], menor ‘em abismo’, no seu centro”. Segundo Lucien Dällenbach, em Le Récit Spéculairemise en abyme pode ser definida como “todo espelho interno que reflete o conjunto da narrativa por reduplicação simples, repetida ou complexa”. O mesmo autor atribui a autoria da expressão a Claude Edmonde Magny, em L’Âge du Roman Américain, de 1950. A importância de seu emprego por Gide se dá pelo fato de traduzir a sua descrença sobre a possibilidade de existir uma verdade a ser aprisionada pela escrita. Qualquer que seja o texto, aos olhos do autor, será sempre em hiato, em descompasso, um campo de interrogações mediante o qual a realidade é deslocada e a verdade reduz-se a um ponto de vista, ao infinito movimento de busca e reflexão. Gide não caiu no logro do mimetismo. Cedo percebeu que a linguagem é conquista, trabalho intenso e constante, fato comprovado pelas inúmeras correções que fez ao texto.

Diário dos Moedeiros Falsos reúne dois cadernos de anotações sobre o processo de criação do romance, aos quais foram acrescentadas notícias de jornais (sobre o episódio das moedas falsas e a respeito do suicídio de um jovem secundarista), cartas e dois pequenos textos: “Páginas do Diário de Lafcádio” (o protagonista de Os Subterrâneos do Vaticano ainda estava muito vivo na imaginação do autor) e “Identificação do Demônio”, uma reflexão sobre um dos motivos recorrentes em Gide: a influência diabólica sobre o homem (no romance a sua ação incide sobre Vincent Molinier).

Apresenta observações, algumas duplicadas no diário de Édouard, sobre a sua concepção do romance: “Purgar o romance de todos os elementos que não pertencem especificamente ao romance”. Veja-se esta reflexão machadiana: “e mais ainda aquilo que não é nem de amanhã nem de ontem, mas que em qualquer tempo se possa dizer: hoje”. Ou a melhor síntese da proposta gideana: “Tanto pior para o leitor preguiçoso: quero outros. Inquietar, essa é minha função. O público prefere sempre que o tranquilizem. Há alguns que têm isso como profissão. Há até demais.”

No romance, o episódio das moedas falsas serve para o autor, a partir da situação concreta dos jovens delinquentes, construir uma metáfora das relações humanas como forma de perversão da possibilidade de compreensão do outro e de si mesmo. A falsificação cunha desencontros na linguagem, na família, no amor e em todos os níveis da existência. Linhagem de busca e inquietação, a prosa gideana guarda sempre uma dimensão moral próxima da formulação de Pascal: “A verdadeira moral zomba da moral”. O autor, criticado pela direita e pela esquerda, engajou-se na sinceridade como marca de sua atividade intelectual, daí a mobilidade, o caráter proteico de seu percurso. Não se fixar em um ponto significa que nada pode ser encontrado na escrita a não ser o seu próprio movimento, do qual não advém nenhuma verdade, nenhuma certeza. Ideia implícita na conhecida frase do autor: “Crê nos que buscam a verdade; duvida dos que a encontraram”.

André Gide combateu os dogmas, o efeito corrosivo de tudo aquilo que torna as ações humanas gestos enrijecidos pelo peso de induções exteriores, preconceitos, tradições mortas, automatismo. A liberdade exige um esforço extraordinário, já percebido por Michel, protagonista de O imoralista: “Saber libertar-se não é nada; o difícil é saber ser livre.” Gide soube conquistar e preservar a sua liberdade, ainda que ao preço de incompreensões de toda natureza.


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Os moedeiros falsos e Diário dos Moedeiros Falsos
André Gide
Trad. Mário Laranjeira
424 páginas e 144 págnas

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As ruínas de Budapeste *


* Resenha publicada no Caderno Ideias & Livros, do Jornal do Brasil, em 26/12/2009.



A obra de Sándor Márai, aos poucos, vem sendo divulgada no Brasil, pondo fim a um longo período de silenciamento da voz desse extraodinário romancista húngaro que gozou de enorme prestígio em seu país durante a primeira metade do século passado. Após a Segunda Guerra, violentamente criticado por Georg Lukács e em linha de colisão com o regime comunista, o autor não conseguiu mais ser editado em sua terra natal, razão pela qual, em 1948, dirigiu-se à Itália e, posteriormente, emigrou para os Estados Unidos. No exílio, continuou a produzir a sua obra em húngaro, passando a habitar um limbo criado pelo isolamento linguístico e pela excomunhão política. Em 1989, já cego de um olho, após perder a mulher, o filho adotivo e o irmão, suicidou-se com um tiro na cabeça. Ironia cruel: pouco depois da morte, com o fim da ocupação russa, sua obra foi redescoberta. Sándor Márai pôde, finalmente, ser reconhecido como um dos grandes ficcionistas do século XX.

Dele, a Companhia das Letras, responsável pela publicação dos romances As Brasas, O legado de Eszter,Veredicto em Canudos, Divórcio em Buda, Rebeldes, Confissões de um burguês e De verdade, lança agora o pequeno volume intitulado Libertação, escrito durante o mês de agosto de 1945, ainda sob o calor da guerra, porém só publicado após a morte do autor.

Em meio a uma Budapeste cercada pelas tropas soviéticas e devastada por incessantes bombardeios, Erzsébet, a protagonista, procura um abrigo para proteger o pai, famoso astrônomo e matemático conhecido por suas posições antifascistas. O desmoronamento do totalitarismo nazista intensifica o clima de perseguição e eliminação de inimigos de todas as matizes, de judeus a simples liberais. Com a cidade ocupada pelos alemães, tanto a Gestapo quanto os fascistas húngaros ansiavam por colocar as mãos sobre o renomado cientista. Erzsébet, movida pelo desespero, recorre a uma personagem denominada apenas como o adventista a fim de ocultar o pai. Depois de dez meses de fuga, o cientista fica emparedado em um recinto semelhante a um túmulo.



Com a ampliação dos ataques aéreos, Erzsébet acaba buscando abrigo no porão do prédio onde morava, esconderijo subterrâneo em que se abrigam cento e quarenta pessoas, oriundas de todas as classes sociais: “...ali vivia toda espécie de gente, eminências, ricos, estudados, pequeno-burgueses, um alfaiate, um bombeiro, um professor universitário que Erzsébet conhecia de algum lugar, um comerciante que enriquecera no passado recente, quando os decretos e a violência fascista exterminaram os comerciantes judeus, um advogado, uma dançarina que negociava sulfato de cobre, todo tipo de gente.” Forma-se, assim, um pequeno painel da Hungria antes da guerra, alojado em condições desumanas, para o qual a única medida de tempo era estabelecida pelo cerco das tropas soviéticas. O porão representa a perda de visibilidade da cidade, cuja presença a memória reproduz com o auxílio das explosões de bombas e o incessante estampido de armas russas, alemãs ou em mãos dos bandos fascistas.

A cidade subterrânea reinscreve as relações humanas sob o domínio da sobrevivência entre grandeza e sordidez. Se a solidariedade persiste, inscrita no gesto do adventista, o que prevalece é o desmantelamento dos laços humanos, processo pontuado pelo narrador: “Como se uma sociedade, no momento do perigo derradeiro perdesse a dignidade humana restante: traía-se em massa, escreviam-se cartas anônimas, ou assinadas com nome e sobrenome, corria-se para entregar o infeliz que nas voltas finais da corrida ensandecida se espremia asfixiado num canto das profundezas dos abrigos...” Dentro desse clima, não causa estranheza o gesto infame do zelador do abrigo ao denunciar à milícia fascista um protético judeu, nem a assunção tardia de uma culpa coletiva, fruto de cinismo e inércia; as duas atitudes são índices de que todos, inimigos e refugiados, já haviam “passado do ponto”.

No ambiente sufocante, Budapeste é uma cidade sem rosto. “Nome, individualidade, tudo se desfizera no porão, como se todos fossem invisíveis no redemoinho do baile de máscaras subterrâneos!” Reconhecidos por funções ou características físicas, os habitantes têm os nomes suprimidos. Mesmo Erzsébet usa nome falso, por estranha coincidência igual ao verdadeiro. Por trás da perda de identidade pessoal, percebe-se a Hungria como um rosto que jamais será visto de novo, não do jeito como o viu Sándor Márai, atento e nostálgico observador de uma existência burguesa em estado crepuscular.

Vozes anônimas por vezes dirigem-se à protagonista. A vizinha da direita, uma judia muda e invisível durante dezoito dias, começa a contar-lhe a dolorosa experiência vivida em um campo de concentração, cujo horror máximo ela associa à figura de um médico, cuja mão levantada, movida por profundo conhecimento científico, regia a morte e a vida dos prisioneiros. Na onipotência do gesto, um símbolo do planejamento racional do método de extermínio nazista.

Já o silencioso vizinho da esquerda, vitimado por uma paralisia que vai além da dimensão física, só readquire a voz quando da retirada dos refugiados, transferidos para outro abrigo pelos alemães. No momento em que todos são removidos para novo abrigo, convence Erzsébet a permanecer no porão. Entre cético e paternal, sua imagem desenha a impotência de todo um modo de vida burguês em dissolução. Isso, mais do que a necessidade de sobrevivência, apaga qualquer forma de solidariedade diante do drama de Erzsét, indefesa frente ao soldado russo que a viola. O destino da heroína, num jogo montado por uma aliança entre violência e ironia, manifesta uma metáfora da Hungria; ao não cumprir a promessa guardada em seu nome, libertação transforma-se em corpo, alma e país privados de liberdade.

O pequeno romance, com seu ritmo ofegante entremeado de tensas calmarias, produz, simultaneamente, um gosto amargo e uma imperiosa necessidade de pensar a condição humana. Um candente ceticismo evita escamotear o horror e a crueldade com os farrapos da esperança. Erzsébet, Budapeste e a Hungria permanecerão intocáveis em seus despojos textuais, testemunho e ficção do absurdo humano.


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Libertação

Sándor Márai - Trad. Paulo Schiller


Companhia das Letras, 152 páginas.





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Umberto Eco drinking coffee in NYC




Acompanho a obra multifacetada de Umberto Eco desde 1974, quando li Obra aberta. Posteriormente, também fui seduzido pelas grandes narrativas que nos legou. Reproduzo aqui resenha publicada no blog Caosgraphia sobre o romance O cemitério de Praga. Pequena mas sincera homenagem a este autor que marcou minha trajetória.


Teorias da conspiração


           José Antônio Cavalcanti


Umberto Eco, especialista em semiótica, medievalista e pensador italiano, é um autor que se aventurou um pouco tarde, em 1981, no terreno da ficção, quando já possuía uma obra acadêmica reconhecida internacionalmente. Sua estreia obteve êxito surpreendente, pois o extenso romance O nome da rosa, transplantado para as telas também com grande sucesso, inseria em suas páginas uma erudita exposição de teorias sustentadas por filósofos e religiosos durante a Idade Média. Guilherme de Baskerville, franciscano, discípulo de Roger Bacon, e seu aprendiz, Adso de Melk, investigam uma série de mortes misteriosas ocorridas em um convento nos Alpes, todas motivadas por disputas em torno do livro perdido de Aristóteles sobre a comédia. Por trás da trama policial, encontra-se, contudo, uma análise penetrante de concepções teológicas e filosóficas vigentes na era medieval.

Trinta anos depois, o autor nos oferece uma nova fronteira, dessa vez ambígua e pantanosa, entre ficção e história. Se esta depende fundamentalmente de documentos, carente dos privilégios próprios à ficção (o de constituir-se com o fio da imaginação), aquela não deve ser vista como o texto suplementar destinado a preencher falhas e lacunas históricas ou um espaço aberto a múltiplas interpretações dos acontecimentos de cada época. A extensa pesquisa realizada pelo autor, uma vez incorporada à obra, apaga o factual ao ficcionalizá-lo. E aquilo que há alguns pode soar como excessivo transforma-se em combustível para sustentar o ritmo dinâmico de um texto com fôlego de um thriller escrito sob a forma de diário, cujo enredo combina vasta erudição, jogo metaficcional e boa  dose de humor. 

Se o artista é simulador de realidades, um fingidor, como observou Pessoa, o que, então, representa a figura de quem falsifica acontecimentos como se fossem textos de ficção? Qual é a estética diabólica do laborioso artesão de conflitos e preconceitos? É sobre o ator cuja representação não simboliza nenhum real, porém é capaz de transformar esse nada em história que Eco constrói o tema de seu novo romance. A escrita aparece como sinônimo de adulteração quando a serviço da legitimação do poder. A reprodução folhetinesca do século XIX, com uso de gravuras da época, guarda, sob aparente anacronia, as verdades rasuradas expostas ao longo da aventura humana: o Plano Cohen, a atribuição aos cristãos de uma Roma em chamas, as armas químicas de Sadam Hussein, as supressões políticas em fotos da era Stálin, a suposta culpa de todos os presos de Guantánamo, o judeu como causa da decadência alemã, a associação entre o Islã e o terrorismo. Com quantos documentos falsificados se fez/faz a História? Provavelmente nunca obteremos respostas, mas sabemos que toda a história de Simone de Simonini é um fraudulento exercício de intervenção na sociedade realizado a soldo de instituições e governos empenhados em controle absoluto. Há algo mais atual do que isso? Só o fato de apontar para interferências clandestinas e silenciosas no destino de todos já justifica uma leitura de O cemitério de Praga capaz de avançar além do caráter de puro entretenimento que a obra também abriga.

Como esclarece o autor em nota ao final do texto, o protagonista é a única personagem inventada, todas as outras existiram realmente, e fizeram e disseram aquilo que aparece no romance. Na mesma nota, Eco fornece um quadro destinado a facilitar a localização histórica das ações incorporadas à narrativa, dotada de caráter não linear, com o recurso a flashbacks.

O romance é narrado por uma personagem que padece de dupla personalidade: ora escreve no diário como Simone de Simonini, falsificador de documentos, ora se assina como abade Dalla Piccola. O sacerdote intruso serve para preencher as lacunas do falsário: “É que o abade Dalla Piccola parece despertar somente quando Simonini precisa de uma voz da consciência que acuse suas divagações e o chame à realidade dos fatos, e, em seguida, mostra-se sobretudo imêmore de si”.

O antissemitismo alcançou o protagonista no berço: o nome é uma referência ao Pequeno São Simão, um menino mártir raptado e morto por judeus, além disso o avô deixou-lhe alguns textos que, trabalhados e retrabalhados, irão contribuir para a origem da montagem conhecida como os Protocolos dos sábios de Sião. Essa é, na verdade, a falsificação-maior, o núcleo da trama. Trata-se da produção de uma espécie de ata de uma reunião de sábios judeus, vindos de várias partes da Europa, supostamente ocorrida no antigo Cemitério de Praga. Nela teria sido revelado um plano judaico para domínio do mundo e extermínio do cristianismo. Trabalho feito a várias mãos, mas cuja lapidação final caberia ao capitão Simonini, hábil tabelião-falsário.

As ações, envolvendo serviços secretos, espiões de vários países, as lutas de Garibaldi, o caso Dreyfus, a Comuna de Paris, jesuítas, maçons, sacerdotes sem ética, intrigas e dissimulações, ocorrem na segunda metade do século XIX, em Turim e Palermo, na Itália, e em Paris, na França. No início do livro, observa-se um caráter cômico, com uma crítica generalizada à cultura europeia. Alemães, judeus, franceses, italianos, padres, maçons, jesuítas, comunistas e mulheres são retratados sob uma ótica negativa, praticamente ninguém escapa à misantropia do capitão Simonini. Depois a história vai adquirindo contornos mais sombrios, com a eclosão de conspirações de toda ordem, explosões, atentados, mortes, massacres, missas negras e diversos atos condenáveis, próximos ao que hoje denominamos terrorismo.

Em uma época em que circulam inúmeras teorias de conspiração, não faltará um amplo público ao romance. Há que se ler O cemitério de Praga, no entanto, como uma falsificação que expõe, pelo avesso, o mecanismo constitutivo da intolerância, o preconceito, a perversão da escrita destinada a promover o apagamento do outro. Não é à toa que o narrador afirma: “É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza de sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. É sempre necessário ter alguém para odiar, para sentir-se justificado na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial. O amor, sim, é uma situação anômala. Por isso, Cristo foi morto: falava contra a natureza. Não se ama alguém por toda a vida; dessa esperança impossível nascem adultérios, matricídios, traições dos amigos... Ao contrário, porém, pode-se odiar alguém por toda a vida. Desde que esse alguém esteja sempre ali, para reacender nosso ódio. O ódio aquece o coração".

  

Autor: ECO, Umberto  
Tradutor: MELO, Joana Angélica D'Avila
Editora:  Record

Ano: 2011

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