Cuneiforme carioca
Cuneiforme carioca
Dia
de caminhar em silêncio cuneiformes cariocas, a arqueologia afetiva das ruas
todas do centro do Rio de Janeiro. Dia de não se ver a calçada, a caixa de
rolamento, os postes belle époque e
as esculturas de ferro fundido em velhas sacadas. Dia para se perder no gigantesco pergaminho em cuja superfície
zilhões de passos desaparecem em fluxo contínuo como líquida memória que se
esvai entre as frestas dos paralelepípedos submersos numa espécie de hemorragia
de espaços urbanos por onde um dia encontramos abrigo, subimos os rangidos de
escadas, fomos acolhidos entre paredes imperiais e até nos apaixonamos. Ah, a
era dourada de Ouvidor dândis; os ares parisienses da Rio Branco e a passeata
dos cem mil; a música em sexo balzaquiano da Tiradentes; a urgência na fila do
teatro de revista da Carioca; os bondes e as pernas da Uruguaiana; os casarões
alongados do círculo dos sebos; os tílburis a caminho de Botafogo; os crepes, chamalotes, veludos, tafetás, cetins, cassas,
gorgorões em vestidos dominicais no Passeio. E mais acima dos olhos,
buscando insignificâncias no chão, a pulverescência de alguns prédios ou a
modernosidade contábil-operacional de caixotões-business, monstros devoradores de horizonte e beleza, a fixidez de tantas
outras construções nas quais a única mudança são novos hálitos urbanos e a
respiração de outros trajes. Ah, o domingo rói em surdina os ossos da paisagem,
lambe as suas cáries, oculta outra cidade no subsolo – masmorra a céu aberto:
bando de espectros, debaixo de marquises, amontoa-se sobre papelões, olhos
insensatos montam cenários de crimes, cachorros latem desolação urbana, tapetes
de sujeira, lixo. Um mendigo fuma
cachimbo insólito. Ele e todos os sobrados tremem de medo, como se
pressentissem a aproximação furiosa de novos neofasciurbanistas que virão para
ofertar o deserto à cidade.
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