Frutos do mar
Chegou tenso, com um tom esverdeado no
rosto, ao restaurante à beira-mar. Duas baleias marcavam duas da tarde no
relógio azul além-areia. Pôde vê-las por trás das ondas e da cortina de atletas
e ciclistas na pista da Avenida Atlântica. Nuvens pesadas eram rasgadas pelo
sol, os trapos cinzas se desmanchavam preguiçosamente no varal do horizonte em
reconstrução. Olhos pregados na biografia de Marighela, quando, no meio da décima linha da página 356, Lilith
emergiu da piscina dos sonhos perdidos. Trazia uma harpa de argila e fios de
ouro abaixo dos seus olhos de tempestade. A intensidade do olhar lançou areia e
memória sobre a paralisia do leitor atordoado. Lilith se sentou amistosa,
palavras soltas ao vento, direta e incisiva, sacudindo os cabelos e a vida do
homem de óculos tortos. Ele nada sabia sobre as fogueiras secretas que nela
nunca cicatrizaram. Míope e desatinado, ampliara, por cegueira e falta de
gentileza, o próprio deserto, cortara em finas fatias camadas de afeto,
polvilhando-as de sal e luto.
Alojados
um frente ao outro, após uma longa pausa e um tremor na língua, o homem
decidiu-se:
— Garçom, por favor, traga, em duas
bandejas de prata, os seios de Penélope e a cabeça de Helena de Troia.
Então, Lilith, com astúcia assassina, voltou-se
em direção ao mar, a fim de ver, comovida,
o navio de Ulisses afundar lentamente. Pudesse olhar em outra direção, teria
observado dois olhos em escombros afundando-se nela até tocarem o fundo do
oceano.
In
CAVALCANTI, José Antônio. Fora de forma
& outros foras. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013, p. 88.
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