June Jordan

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Uma porrada no fígado, quer dizer, um poema de June Jordan (1936-2002).

Poema sobre os meus direitos

Ainda esta noite preciso caminhar e clarear
minhas ideias acerca deste poema porque não consigo
sair sem mudar minha roupa meus sapatos
minha postura corporal minha identidade de gênero minha idade
meu status de mulher sozinha na noite /
sozinha nas ruas / sozinha sem estar no ponto /
o ponto certo é que não posso fazer o que quero
fazer com o meu próprio corpo porque sou do sexo
errado da idade errada da cor errada e
suponha que eu não estivesse aqui na cidade mas na praia
ou no fundo de um parque e que quisesse andar
por minha conta pensando em Deus / ou pensando
nas crianças ou pensando no mundo / tudo isso
protegido pelas estrelas e pelo silêncio:
eu não poderia ir e não poderia pensar e não poderia
lá permanecer
sozinha
como preciso ficar
sozinha porque não posso fazer o que quero com meu próprio
corpo e
quem, diabos, arrumou as coisas
desse jeito
e na França dizem que se um cara penetra
mas não ejacula então não me estuprou
e se depois de apunhalá-lo se depois dos gritos se
depois de suplicar ao filho da puta e se mesmo depois de esmagá-lo
com um martelo na cabeça se mesmo depois disso se ele
e os seus amiguinhos depois me violarem
então consenti e não foi
estupro porque finalmente você entende finalmente
que eles me violentaram porque eu estava errada eu estava
outra vez errada por ser eu sendo eu onde eu estava / errada
por ser quem sou
exatamente como a África do Sul
penetrando em Namíbia penetrando
em Angola e isso quer dizer quero dizer como você sabe se
Pretória ejacula qual será a evidência capaz de provar
a ejaculação do monstro de coturno em Negrolândia
e se
depois da Namíbia e se depois de Angola e se depois do Zimbabwe
e se depois de tudo os meus parentes e as mulheres resistirem à própria
autoimolação das aldeias e se depois disso
perdermos mesmo assim o que vão dizer os rapazes vão
pedir o meu consentimento:
Você consegue me acompanhar?: somos as pessoas erradas
da cor errada no continente errado e por que,
diabos, todo mundo é tão comedido
e segundo o The Times desta semana
em 1966 a CIA decidiu que este problema existia
e o problema era um homem chamado Nkrumah por isso
o mataram e antes disso foi Patrice Lumumba
e antes disso foi meu pai no campus
de Ivi League minha escola e o meu pai tinha medo
de caminhar até o café porque dizia que
estava errado a idade errada a cor errada
a identidade de gênero errada e estava pagando as minhas aulas e
antes disso
era o meu pai que dizia que eu estava errada dizendo que
eu deveria ter nascido menino porque ele queria um/um
menino e que deveria ter tido a pele mais clara e
que deveria ter tido o cabelo mais liso e que
não deveria ser louca por rapazes em vez disso
ser apenas um / rapaz e antes disso
era a minha mãe implorando por cirurgia estética para
o meu nariz e aparelho para os meus dentes e dizendo-me
que largasse os livros que os libertasse em outras
palavras
estou muito familiarizada com os problemas da CIA
e com os problemas da África do Sul e com os problemas
da Exxon Corporation e com os problemas da América
branca em geral e com os problemas dos professores
e dos pregadores e os do FBI e os dos trabalhadores
sociais e particularmente da Mamã e do Papá / estou muito
familiarizada com os problemas porque os problemas
vêm a ser
eu
eu sou a história do estupro
eu sou a história de minha própria rejeição
eu sou a história do terrível encarceramento de
mim mesma
eu sou a história de agressões impiedosas e de infinitos
exércitos contra tudo que desejo fazer com a minha mente
e o meu corpo e a minha alma e
não importa se se trata de sair à noite
ou se se trata do amor que eu sinto ou
se se trata da santidade da minha vagina ou
da santidade das minhas fronteiras nacionais
ou da santidade dos meus líderes ou da santidade
de todos e de cada um dos desejos
que conheço desde o meu pessoal e idiossincrático
e indiscutivelmente só e singular coração
eu fui estuprada
por-
que estava errada tinha o sexo errado a idade errada
a pele errada o nariz errado o cabelo errado a
necessidade errada o sonho errado a geografia
errada as medida erradas eu
fui o sentido da violação
fui o problema que todo mundo tenta
eliminar pela força
da penetração com ou sem a evidência de muco e/
mas deixemos isto bem claro este poema
não consente eu não consinto
à minha mãe ao meu pai aos professores
ao FBI à África do Sul ao Bedford-Stuy
ao Park Avenue à American Airlines aos canalhas
de pau duro nas esquinas aos vermes rastejantes escondidos nos
carros
eu não estou errada: meu nome não é errado
O meu nome é meu meu meu
e não posso te dizer quem, diabos, arrumou as coisas desse jeito
mas posso te dizer que de agora em diante a minha resistência
a minha simples e diária e noturna autodeterminação
pode muito bem custar a sua vida.

In Directed By Desire: The Collected Poems of June Jordan, Copper Canyon

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