A loja do outro lado da rua
Este conto foi publicado no livro Fora de forma & outros foras, publicado pela Ibis Libris, em 2013.
A loja do outro lado da rua
*
Uma fase
muda, a galope, próxima. Tantas pétalas as fases, frases disfarces da rosa sem
rosto. A leveza desejada, no entanto, turva-se ante o tumulto de dias pesados.
Nunca se sabe de que lado a página do próximo minuto cairá virada. Alguma
corrente secreta de ar anuncia
recolhimento de luz em redes inquietas, impulso a cisternas anímicas, queda em
aquíferos protegidos na área ao sul do pâncreas. Vou buscar um desenho perdido
dentro do útero da linguagem impura. Tudo o que preciso fica agarrado às
paredes do túnel, livro rupestre de falsa profundidade. Tempo moído, pele,
película, pó. Logo você chega com esse cordãozinho de São Judas Tadeu
balançando em ouro falso e tão redundante quanto o ondular ofegante daquilo que
vejo logo abaixo dele.
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Você
chega com esse cordãozinho de São Judas Tadeu balançando em ouro falso e tão
redundante quanto o ondular ofegante daquilo que vejo logo abaixo dele. Então
os quadros na parede trocam de lugar, perdem o ar de reprodução barata: o nu
veste-se de traças, a marinha engole as ondas como se fossem aspirinas de
espumas, o falso Renoir derruba champagne
em mesas e vestidos do Bal du Moulin de
la Galette adquirido do marchand camelô 49 na Central do Brasil. Anulo o
gesto instintivo de fuga para enfrentar os demônios ancorados no mar sem fundo
dos seus olhos de impura cocaína. Exorcizar o fôlego de mil súcubos suicidas
arremessados em fúria contra o meu corpo supera qualquer possibilidade de
defesa. Não consigo evitar tapas no rosto, pescoço, tórax. Só dez degraus abaixo
da porta percebo o logro; a respiração alterada era um convite, sim, não para
cama, mas para retirada. Fico sentado na portaria do prédio de conjugados à
espera da trouxa de roupa jogada com insultos pela janela.
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Sentado
na portaria do prédio de conjugados à espera da trouxa de roupa jogada com
insultos pela janela, vejo a pequena comerciária varrer o chão da calçada em
frente à loja de presentes do outro lado da rua. Olha para todos os lados,
talvez a mova vergonha de conhecidos, talvez siga orientação do gordo fumador
de cachimbo dono da loja e de mil mercadorias (perfumes, bijuterias,
empregadas). Os cabelos louros da vendedora luziam ao sol até serem eclipsados
por um ônibus parado entre nós. Quando o veículo enfim arrancou rumo a Irajá,
os cachos da pequena tornaram-se negros
e a vassoura voara para longe. Vejo-a agora mais magra e bem baixinha.
Atravesso a rua para fugir à miopia. Toco as suas costas para ver se ela é de
carne e osso mesmo. Vira o rosto triste e sem beleza. Ao se arregalarem, os
olhos dispersam uma grossa camada de poeira e desesperança. Sinto que ela não
pode me ver, está em pedaços, conformada a um corpo apenas por um contrato de
experiência, mãos trêmulas quase na porta do desemprego, retrato à espera de
carimbo. O senhor feudal vomita um nome. Meu pequeno e dócil manequim de fibra
de vidro desaparece do outro lado da vitrine.
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Quando o pequeno e
dócil manequim de fibra de vidro desapareceu do outro lado da vitrine, voltei à
entrada do prédio no Catete. Um casal saía às gargalhadas. Duas crianças atrás
da explosão de alegria me olharam curiosas. A trouxa quase caiu sobre a mais
nova. Discussão áspera. O corpulento diz que vai me encher de porrada, a mulher
me xinga. Dizem que não valho nada, não trabalho, exploro a mulher do terceiro
andar, uso drogas, desrespeito todas as senhoras casadas, mau-caráter, ateu e
tarado. O troglodita me encurrala no canteiro à esquerda da entrada, debaixo da
placa Palais de Sérénité. Seus olhos espumosos já me veem saco de pancada. Uma chuva
de livros caiu sobre o casal e os filhos. Dicionários, romances russos, livros
de xadrez, contistas contemporâneos, poesia erótica, manuais de linguística,
meu mundo impresso em anacronia desabava: Deus me mandava o maná prometido. Os
livros salvaram a minha vida. Grato, Ciça, você sempre foi ruim de mira. Pulo o
corpo desacordado do vizinho com a cabeça sob o dicionário Houaiss aberto no
verbete irremissível - “Adjetivo de dois gêneros: 1) que não se pode remitir, que não
merece perdão, imperdoável; 2)
que não se pode evitar; infalível, fatal”. Me
abaixo apenas para recuperar Sonetos
Luxuriosos, de Aretino, traduzidos por José Paulo Paes. Desisto das roupas
e demais pertences. A loja do outro lado da rua já está fechada; aberta,
escancarada, imensa cratera pulsando errância na alma.
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A
loja do outro lado da rua já estava fechada; aberta, escancarada, imensa
cratera pulsando errância na alma. Espremida em algum vagão de metrô minha
vendedora-manequim flutuava exausta, o calor sufocante ameaçava derreter seu
corpo de cera. No conjugado do Catete Ciça vegetava, possuída por decepção e
antidepressivos. A lânguida luz de um poste inclinado me convidava a
infindáveis copos. Resisti à pressão do passado nas têmporas, inquietante
dormência subia pelas artérias alagadas de pesadelos, instalava-se nos buracos
de décadas em branco. Ao microscópio meus atos, envoltos em camadas de
azinhavre, pulavam semelhantes a amebas sem futuro. Tudo era pulverescência,
caos, pesadelo. Sabia-me arquiteto de cidades em ruínas, sem arrependimentos e
remorsos. Tudo o que precisava era acionar com êxito os mecanismos que me
catapultassem a novos desastres. Nada melhor do que a escrita para afundar-me
por inteiro.
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Nada
melhor do que a escrita para afundar-me por inteiro. Com Ciça, água pela
cintura, no máximo à altura do pescoço. Os braços ficavam livres para tatear
falsas alternativas. A mão alcançava a maçaneta da porta de emergência. De uma
forma ou outra, sempre uma boia de salvação. A via de escape era invariável
promessa não cumprida; na outra ponta, nova hecatombe. Com o tempo aprendi a
escapar invadindo territórios alheios. Hoje, por exemplo, preciso me instalar
na loja do outro lado da rua para fugir da chuva torrencial. Minto, claro,
minto o tempo todo. Minha manequim quase anã virá levantar a grade inglesa às
seis horas da manhã. Eis a causa das rachaduras profundas e do inchaço no
hipotálamo. Minha manequim-boia-farol um passo à frente. Quando deixar a
mochila sobre o balcão e começar a fechar mecanicamente a sombrinha azul circulada
por um dragão dourado, vislumbrará o vulto intruso encostado na prateleira de
perfumes paraguaios. Apavorada, sim, porém muda. Tentarei falar de destino, de
ser impulsionado por ventos misteriosos, da atração exercida sobre um corpo
pela passagem da lua sobre o deserto. Todas as palavras irão se desintegrar nos
olhos de resina da manequim quase menina. Não se acalmará com frases absurdas.
Permaneceremos suspensos no medo do próximo gesto. Não, nada disso acontecerá,
preciso dormir para voltar à realidade. Agora, no escuro entre balcões e
mercadorias, deito-me com fones nos ouvidos, a pistola à altura das mãos.
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Agora, no
escuro entre balcões e mercadorias, deito-me com fones nos ouvidos, a pistola à
altura das mãos. Quando acordar, investigarei, debaixo da camada de tártaro dos
dentes tortos da minha pequena notável, o nome. Não, melhor não procurar porra
nenhuma. Todas as mulheres, ao me revelarem os nomes, abriram um dicionário de
centopeias carnívoras especializadas em degustação de desastres amorosos. Sim,
nomes lançam nexos, laços, algemas. Nomes exigem biografia e memória, apontam
tangências, confluências, margem mínima de afinidades. Nomes são feridas
inscritas em corpos de próteses e instantâneos com tintas tragicômicas. Nomes
são matilhas furiosas que me perseguem em filas de emprego e ocupações de
sem-teto. Alguns tiram fotos, mandam e-mails e torpedos, gostam de gafieira.
Permaneçamos, meu bem, indecifráveis anônimos vagabundos. A noite tem pernas
curtas. Algum nome secreto abre com estridência a porta da loja e, ao tentar
reacendê-la no grau cinza da rotina, pisa o meu pé esquerdo. Arma já bem
guardada na cintura, levantei-me incontinente. A situação era confusa.
Felizmente não havia explicações. A arma já estava na cintura. Minha musa-manequim
esculpida em espanto no interior de magazine muquirana, diva no meio de
bugigangas chinesas e paraguaias. Era o meu paraíso: o reino de notas frias, de
cédulas falsas, de mulheres chaves de cadeia, de minha subliteratura.
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Era o meu
paraíso: o reino de notas frias, de cédulas falsas, de mulheres chaves de
cadeia, de minha subliteratura. A pequena funcionária tremia agarrada à mochila
coalhada de bótons de ícones pop. Ergueu o braço direito para se apoiar no
balcão. Vi as pulseiras girarem no punho como se descobrissem combinações do
cofre em que se ocultam pulsações assassinas. Um sentimento de júbilo
arrastou-me alguns passos em sua direção. Queria lamber a sensação de abandono
nas salas circulares de minha musa-manequim presas à língua acostumada à
cegueira de comandos, talvez pudesse retirar as agulhas fincadas no pergaminho
enrugado do rosto devastado por retroescavadeiras de lares desfeitos, descobrir
um mapa submerso de peixes entorpecidos à procura de águas vulcânicas, ricas em
nutrientes, coágulos, miomas. Pus as mãos sobre o material sintético que ligava
os ombros à cartilagem mecânica dos braços. O corpo parou de tremer. Seus olhos
instalaram um alfabeto estranho em meu destino.
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Seus
olhos instalaram um alfabeto estranho em meu destino. Outro DNA invadia meu
organismo. Os braços pareciam imantados ao dorso da desconhecida, o tórax
inflado, as mãos energizadas e mais largas, a pulseira metálica do relógio
arrebentou-se no pulso, o corpo mais pesado e cinco centímetros mais alto. Tudo era estranheza e turbulência. Quando
virei a cabeça para ver quem acabava de ultrapassar o limiar da porta,
bochechas maiores do que as de Dizzy Gillespie começaram a insultar a pequena escrava. Da garganta
apoplética do comerciante saíam fileiras de nomes sujos. Raspavam a gosma do farto bigode, banhavam-se
em perdigotos e cheques sem fundos, batiam no estuque falho do teto para desabarem na pele tão clara de minha
doce desconhecida, em cujas veias eu podia ver pedras e peixes no fundo. A
mudez de minha manequim feria a cláusula x
do contrato; na falta de açoites, uma semana sem pagamento, corte de
vale-refeição e auxílio-transporte. O troglodita suava em bicas sobre o teclado
em que redigia multa e fundamentações. Processo por perdas e danos. Indignação
de ópera bufa com a loja transformada na casa da Mãe Joana. Não vacilei. Peguei
a pistola, apontei-a para o cofre
incrustado naquela testa lustrosa, disposto a estourar-lhe os miolos.
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Peguei
a pistola, apontei-a para o
cofre incrustado naquela testa lustrosa, disposto a estourar-lhe os miolos,
porém, após tensão provocada por rumor exasperante, o piso emborrachado
estremeceu e começou a se dobrar. Lentamente papéis amarelecidos escaparam de
frestas no chão, movimentando-se em círculos até ficarem suspensos no ar.
Poemas de todos os tempos flutuavam entre quinquilharias como fantasmas. Pude
ver manuscritos em línguas diversas. Fragmentos de Dante, Donne, Bandeira, Cruz
e Sousa, Cesário Verde, Emily Dickinson, Vallejo, Drummond, Khlébnikov, Villon,
Cecília, Góngora, Wislawa
Szymborska, Antíloco, Hölderlin, Arnaut Daniel levitavam
entre tantos outros. Os poemas apagaram os relógios. A pequena comerciária
agarrou-se ao meu pescoço. Senti seus minúsculos seios latejarem contra o suor
do meu peito. Uma pontada abaixo do coração acusou um estranho dispositivo
girando bem rápido dentro do meu corpo. Novo fluxo aquoso percorria minhas
artérias, numa pressão intensa, como se caravelas incendiassem o rumo de
continentes desconhecidos. Vi o meu rosto mover-se no círculo cor de ferrugem
ao redor da pupila da pequena vendedora de miudezas. Havia uma tonalidade
azulada nas maçãs do rosto, não sei se refletia a excessiva claridade da loja à
beira de curto-circuito ou se minha pele buscava novas camadas de nuvens e areia.
Guardei a pistola. O proprietário, aterrorizado pelo fenômeno inexplicável e
pela certeza da completa falência, esquecera minha ameaça. Eu não tinha mais
razões para matá-lo. Só os humanos são assassinos. Eu já assimilara a natureza
complexa de minha musa-manequim. Saímos porta afora, livres para a
desintegração do universo.
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