Ana Luísa Amaral
Ana Luísa Amaral (Lisboa, 1956) é um dos pontos altos da poesia portuguesa contemporânea. No ano passado, o livro de poemas “Vozes”, publicado no Brasil pela Iluminuras, foi um dos finalistas do Prêmio Telecom.
Mais sobre a poesia de Ana Luísa Amaral aqui
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| Julio Pomar |
Inês e Pedro quarenta anos depois
É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!».
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!».
Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.
Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando as chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando as chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.
O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).
Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.
Metamorfoses (1990)
Faça-se luz
neste mundo profano
que é o meu gabinete
de trabalho:
uma despensa.
As outras dividiam-se
por sótãos,
eu movo-me em despensa
com presunto e arroz,
livros e detergentes.
Que a luz penetre
no meu sótão
mental
do espaço curto
E as folhas de papel
que embalo docemente
transformem o presunto
em carruagem!
Faça-se luz
neste mundo profano
que é o meu gabinete
de trabalho:
uma despensa.
As outras dividiam-se
por sótãos,
eu movo-me em despensa
com presunto e arroz,
livros e detergentes.
Que a luz penetre
no meu sótão
mental
do espaço curto
E as folhas de papel
que embalo docemente
transformem o presunto
em carruagem!
Lknguagens
Pássaro nulo
a configuração da tua ausência
o corpo a preencher-se
em ressalvas de medo
ao meu lado
doìdamente longe
Dir-te-ia do sólido
confronto que imagino
ou do conforto de te poder ter
em figura de estilo
Coisas de luz antigas
Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos.
Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão.
Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:
um namorado sem falar
de amor
(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão
no mesmo corredor)
Qualquer coisa de intermédio
"Eu não sou um nem outro:
Sou qualquer coisa de intermédio".
M. de Sá-Carneiro
Se eu fosse o outro,
o do chapéu macio e do bigode
eternizado em cúbico arremedo,
angústia dividida em tantas partes
e óculos redondos
podia-te contar eu guardador e sonhos.
Se eu fosse o outro,
o delicado e bêbedo génio de nós todos,
o que amou estranho e sabia dizer
coisas enormes numa pequena língua
e fraco império,
se eu fosse aquele inteiro
ditado de exageros e exclusões,
falava-te de tudo em ingleses versos.
E mesmo se não foi ele quem disse
(e até podia ser, que eram amigos
e o século a nascer arrepiava como já não
o fim) há razão nessa história do pilar
e do tédio a escorrer de um
para o outro
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| Julio Pomar |
Intertextualidades
Microscópica quase,
uma migalha entre as folhas de um livro
que ando a ler.
uma migalha entre as folhas de um livro
que ando a ler.
Emprestaram-me o livro,
mas a migalha não.
No mistério mais essencial,
ela surgiu-me recatadamente
a meio de dois parágrafos solenes.
Embaraçou-me o pensamento,
quebrou-me o fio (já ténue) da leitura.
Sedutora, intrigante.
mas a migalha não.
No mistério mais essencial,
ela surgiu-me recatadamente
a meio de dois parágrafos solenes.
Embaraçou-me o pensamento,
quebrou-me o fio (já ténue) da leitura.
Sedutora, intrigante.
Fez-me pensar nos níveis que há de ler:
o assunto do livro
e a migalha-assunto do leitor.
(era pão a matéria consumida no meio
de dois parágrafos e os olhos
consumidos: virar a folha, duas linhas lidas
a intriga do tempo quando foi
e levantou-se a preparar o pão
voltando a outras linhas)
o assunto do livro
e a migalha-assunto do leitor.
(era pão a matéria consumida no meio
de dois parágrafos e os olhos
consumidos: virar a folha, duas linhas lidas
a intriga do tempo quando foi
e levantou-se a preparar o pão
voltando a outras linhas)
Fiquei com a migalha,
desconhecida oferta do leitor,
mas por jogo ou consumo
deixei-lhe uma migalha minha,
não marca de água, mas de pão também:
um tema posterior a decifrar mais tarde
em posterior leitura
alheia.
desconhecida oferta do leitor,
mas por jogo ou consumo
deixei-lhe uma migalha minha,
não marca de água, mas de pão também:
um tema posterior a decifrar mais tarde
em posterior leitura
alheia.
Escrito à régua
Ancorar o sentir
em instrumento certo e
objectivo:
um quilómetro agora de palavra,
depois a solidão enumerada,
e em frente:
o quase abismo
Sem guia modelar,
Subir a pulso os mil degraus do verso,
E não voltar
Atrás:
Pela última vez,
medir periferia do olhar:
quarenta mil centímetros,
o mesmo que dizer
quarenta metros
de uma escala exacta
No fim,
lançar a régua contra o vento,
lançá-la em direcção
à nuvem mais distante
E ter aos pés
coisas que tinha antes:
mandrágoras, dragões,
ligeiríssimo grifo arrebatado,
uivante
sílaba –
em instrumento certo e
objectivo:
um quilómetro agora de palavra,
depois a solidão enumerada,
e em frente:
o quase abismo
Sem guia modelar,
Subir a pulso os mil degraus do verso,
E não voltar
Atrás:
Pela última vez,
medir periferia do olhar:
quarenta mil centímetros,
o mesmo que dizer
quarenta metros
de uma escala exacta
No fim,
lançar a régua contra o vento,
lançá-la em direcção
à nuvem mais distante
E ter aos pés
coisas que tinha antes:
mandrágoras, dragões,
ligeiríssimo grifo arrebatado,
uivante
sílaba –



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