Noite no bar
Atravessei tantas
proibições
e sentei-me em desamparado bar
da rua morta.
O letal vírus da ordem imposta
condenou os bêbados
os loucos
os insubmissos
à assepsia dos protocolos oficiais.
O homem com cara de pesadelo
ficou mais assustado
que feliz
com o estranho freguês
cantarolando um samba
de Nelson Sargento
e batucando na mesa.
Cerveja aberta,
caminhos fechados.
Desce a terceira.
Maiakóvski vem.
Senta-se à mesa em
frente.
"Caipirinha é
melhor que vodka",
diz ao melancólico
proprietário.
Puto com o poeta do
passado,
digo-lhe algo que
convém:
"Khlébnikov é
melhor que Maiakóvski".
Chove,
e eu não estou muito
bem.
Há mais de 60 anos
não consigo respirar.
Só vivo
porque comigo a
anatomia ficou louca,
e sem aspas
sem vísceras
sem glândulas.
Ela,
a anatomia,
amante de
transplantes
no mundo onde as
aparências
enganam.
Vallejo entrou
resmungando
maldições em quéchua.
Celan veio assustado,
fugindo de fantasmas
nazistas da Avenida
Paulista.
Cruz e Sousa todo
machucado
por bando de playboys
racistas
chorava por não ter
conseguido
salvar o Machadinho,
vendedor de balas,
das garras da
polícia.
Só Augusto dos Anjos
chegou
com um largo sorriso
vindo das regiões dos
vírus
e do desamparo.
Me incomodava um bar
sem nenhuma alma
feminina
atė que vieram em
bando
Silvia Plath,
Pizarnik, Orides, Hilda
e outras que a miopia
e a embriaguez
não me permitiram
reconhecer.
Sarcástica, Hilda me
provocou:
"E aí, Zé. Já
conseguiu escrever algo que preste".
Hora de fechar a
conta.
Saí da penumbra.
Desliguei os cantos
gregorianos
e fui para o outro
quarto.
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